Aspectos previdenciários da MP 808 também são inconstitucionais

Aspectos previdenciários da MP 808 também são inconstitucionais

 

Artigo escrito pelo juiz federal e membro da Comissão da Ajufe de acompanhamento da Reforma da Previdência, Leonardo Cacau, publicado pelo Conjur.

 

A Medida Provisória 808/17, datada de 14 de novembro do ano em curso, tem a finalidade de regulamentar a Lei 13.467/2017, conhecida como a Reforma Trabalhista, que alterou diversos dispositivos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

No tocante às alterações trazidas no Direito Previdenciário, que é o objeto do presente artigo, a referida Medida Provisória incluiu o artigo 911-A na CLT a fim de prever que o empregador efetuará o recolhimento das contribuições previdenciárias próprias e do trabalhador e o depósito do FGTS com base nos valores pagos no período mensal e fornecerá ao empregado comprovante do cumprimento dessas obrigações.

O §1º do referido artigo dispõe que os segurados enquadrados como empregados que, no somatório de remunerações auferidas de um ou mais empregadores no período de um mês, independentemente do tipo de contrato de trabalho, receberem remuneração inferior ao salário mínimo mensal, poderão recolher ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) a diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo mensal, em que incidirá a mesma alíquota aplicada à contribuição do trabalhador retida pelo empregador.

Por fim, o §2º do referido artigo, o mais emblemático, destaca que na hipótese de não ser feito o recolhimento complementar previsto no supracitado § 1º, o mês em que a remuneração total recebida pelo segurado de um ou mais empregadores for menor que o salário mínimo mensal não será considerado para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social nem para o cumprimento dos períodos de carência para concessão dos benefícios previdenciários.

A fim de entendermos a novel legislação, é necessário trazer à tona o conceito de salário de contribuição que representa a base de cálculo sobre a qual incidirá a alíquota prevista em lei para determinar o valor da contribuição previdenciária mensal dos segurados obrigatórios e facultativos.

Em se tratando do segurado empregado, objeto das mudanças trazidas pela Reforma Trabalhista, o salário de contribuição, nos termos do artigo 28 da Lei 8.212/91, corresponde à remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.

Verifica-se, assim, que o salário de contribuição do empregado corresponde a qualquer forma de remuneração pelo pagamento dos serviços prestados ou pelo tempo à disposição do empregador, incluindo tanto eventuais gorjetas quanto os ganhos habituais sob a forma de utilidades e também os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial. Quando a admissão, a dispensa, o afastamento ou a falta do empregado ocorrer no curso do mês, o salário-de-contribuição será proporcional ao número de dias de trabalho efetivo.

Sobre o salário de contribuição incidirá a alíquota que, no caso do segurado empregado, será de 8%, 9% ou 11%, a depender do valor do seu salário, conforme disposto na Portaria do Ministério da Fazenda (MF) 08, de 13 de janeiro de 2017[1], que é atualizada anualmente, gerando, assim, o valor da contribuição previdenciária que deve ser retida pela empresa, por meio do desconto no contracheque do obreiro, e repassada à Previdência Social.

Cumpre destacar que o salário de contribuição possui um limite mínimo, que nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 8.213/91 corresponde ao piso salarial, legal ou normativo da categoria ou inexistindo este, será o salário mínimo, definido por lei, tomado no seu valor mensal, diário ou horário, conforme o ajustado e o tempo de trabalho efetivo durante o mês.

Desta forma, no caso dos empregados contratados com jornada reduzida, chamados de “horistas”, como, por exemplo, o garçom que apenas trabalha três horas por dia durante o período do almoço, o salário de contribuição terá como base a remuneração calculada sobre o salário mínimo correspondente ao valor da hora trabalhada, podendo, assim, em termos de montante bruto, ser inferior ao salário mínimo.

Nos termos da MP 808/2017, nestas situações em que a contribuição do empregado a ser retida pela empresa e repassada à Previdência Social tiver como base uma remuneração inferior ao salário mínimo, o segurado terá que complementá-la, recolhendo a diferença entre a remuneração recebida e o valor do salário mínimo, incidindo a mesma alíquota aplicada à contribuição do trabalhador retida pelo empregador.

Ademais, a novel legislação destaca que caso não seja feita tal complementação, a contribuição recolhida em valor inferior ao salário mínimo não será considerada para fins de aquisição e manutenção de qualidade de segurado do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) nem tampouco para o cumprimento dos períodos de carência para a concessão dos benefícios previdenciários.

A justificativa trazida na Exposição de Motivos da MP 880/2017 para buscar legitimar a presente mudança é a seguinte:

A inclusão deste dispositivo visa disciplinar o recolhimento das contribuições previdenciárias para aqueles empregados que, em função da jornada reduzida ou da modalidade de contratação, como se dá com os trabalhadores contratados sob o regime de trabalho parcial ou intermitente, venham a receber, de uma ou mais empresas, remuneração mensal inferior ao valor do salário mínimo. Assim, fica garantida a possibilidade desses segurados contribuírem sobre a diferença entre o valor recebido de uma ou mais empresas e o valor do salário mínimo, com base na mesma alíquota utilizada para sua contribuição enquanto empregado, permitindo que a competência seja considerada para fins previdenciários. Igualmente, garante-se o adequado equilíbrio do custeio da Previdência Social.[2]

A presente justificativa, baseada na garantia do “adequado equilíbrio do custeio da Previdência Social”, não se sustenta para razões que passaremos a expor.

Primeiro, é preciso destacar que apesar da contribuição do empregado ser realizada com base em remuneração inferior ao salário mínimo, não se pode esquecer que há também sobre tal remuneração a cota previdenciária a cargo da empresa e das entidades a ela equiparadas (cota patronal) que, em regra, nos termos do artigo 22, I, da Lei 8.212/91, é de 20% sobre a folha de salários, o que garante a observância do Princípio do Equilíbrio Financeiro e Atuarial do RGPS, fundamento que, por si só, refuta a justificativa apresentada na Exposição de Motivos da referida MP.

Porém, há outras razões pelas quais sustentamos que o disposto nos §1º e §2º, ambos do artigo 911-A da CLT, incluído pela MP 808/2017, são manifestamente inconstitucionais. Vamos a elas.

Segundo, porque a aquisição da qualidade de segurado, em se tratando de segurado empregado, ocorre tão somente com a comprovação do efetivo exercício da atividade laboral remunerada, não sendo, assim, possível exigir que haja complementação de contribuição por parte do empregado para tal finalidade.

Cumpre destacar, neste ponto, que a redação do referido §2° do artigo 911-A da CLT introduzido pela MP 808/2017 colide com o artigo 15 da Lei 8.213/91, pois dispõe que caso não seja feita tal complementação por parte do empregado a contribuição não será considerada para fins de “manutenção” da qualidade de segurado. Isto porque a manutenção de tal qualidade sequer exige contribuição previdenciária, pois há o chamado “período de graça”, que corresponde ao lapso temporal no qual o segurado empregado não está sequer contribuindo para o RGPS, mas mantém todos os seus direitos previdenciários, nos termos do referido artigo 15 da Lei 8.213/91.

Terceiro, porque a comprovação da carência do segurado empregado é realizada de forma presumida, nos termos do artigo 34, I, da Lei 8.213/91, ou seja, basta que haja a comprovação do exercício da atividade laboral remunerada e do valor da remuneração, mesmo que eventualmente a empresa não tenha repassado as contribuições à Previdência Social, pois o empregado, neste caso, não terá os seus direitos previdenciários prejudicados, devendo a União proceder à respectiva cobrança em face do empregador, não cabendo, assim, que se exija a efetiva contribuição por parte do segurado, mesmo que a título de complementação quando a contribuição retida pela empresa for realizada com base em remuneração inferior ao salário mínimo.

Quarto, porque tendo em vista que o §2º do artigo 28 da Lei 8.212/91 expressamente dispõe que o salário de contribuição poderá ser calculado com base no valor horário do salário mínimo, não se pode desprezá-lo para fins de aquisição da qualidade de segurado nem tampouco para cômputo da carência, sob pena de se legitimar o enriquecimento sem causa do Estado.

É necessário destacar que a aplicação do princípio da solidariedade não pode ser utilizada para o fim de retirar legítimos direitos dos segurados, mas sim de buscar a higidez econômico-financeira do sistema previdenciário, que não pode ser feito a qualquer custo, devendo se observar o núcleo essencial intangível do direito a previdência, que foi desrespeitado pela Presidência da Republica ao editar a MP 880/2017 neste ponto, na medida em que ao desconsiderar as contribuições do empregado repassadas à Previdência Social pela empresa, mesmo que com base em remuneração inferior ao salário mínimo, acabou por atuar de forma a legitimar o enriquecimento sem causa do Estado.

Quinto, e por fim, tais empregados que possuem uma jornada de trabalho reduzida, recebendo remuneração mensal bruta inferior ao salário mínimo, não possuem capacidade econômica para complementar tal contribuição, razão pela qual desconsiderar as contribuições efetivamente recolhidas pela empresa e repassadas ao RGPS para fins de aquisição da qualidade de segurado e da carência significa colocá-los em situação de risco social, na medida em que ficarão impossibilitados de receberem os benefícios previdenciários, mesmo estando devidamente filiados ao RGPS e exercendo atividade laboral remunerada.

Por todas essas cinco razões, entendemos ser manifestamente inconstitucionais as normas previstas nos §1º e §2º, ambos do artigos 911-A da CLT, incluído pela MP 808/2017, razão pela qual nos casos em que a contribuição retida do salário do empregado e repassada pela empresa ao RGPS seja calculada com base em remuneração inferior ao salário mínimo deve ser efetivamente considerada para fins de qualidade de segurado e de carência.

Esperamos, assim, que os dispositivos previstos nos §1º e §2º, ambos do artigo 911-A da CLT, sejam rejeitados na tramitação legislativa da Medida Provisória 880/2017 no momento da sua conversão em lei.

[1] Nos termos da referida Portaria, referente ao ano de 2017, a alíquota da contribuição previdenciária do segurado empregado será de 8% para o salário de contribuição de valor até R$ 1.659,38; de 9% para valor de R$ 1.659,39 até R$ 2.765,66 e de 11% para valor de R$ 2.765,67 até R$ 5.531,31.

[2] Disponivel em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Exm/Exm-MP-808-17.pdf. Acesso em 17.12.2017.

 

 

*Leonardo Cacau Santos La Bradbury é juiz federal substituto em Florianópolis. Mestre em Estado, Políticas Públicas e Educação (UNIOESTE/PR). Especialista em Direito Processual (Unisul/SC). Professor de Direito Previdenciário da Escola da Magistratura do Parana (Emap). Membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma da Previdência da Associação dos Juízes Federais (Ajufe).