Poder Judiciário, regulação e concorrência: análise dos enunciados do II FONACRE

Limites e possibilidades de intervenção judicial na política regulatória norteou discussões do evento

Por: Clara da Mota Santos Pimenta Alves e Pedro Felipe de Oliveira Santos 

(Artigo originalmente publicado no JOTA!)

Quais são os limites e as possibilidades de intervenção judicial na política regulatória?

Essa pergunta norteou os debates do II Fórum Nacional da Concorrência e da Regulação da AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil), ocorrido em Campinas, oportunidade em que juízes federais dialogaram com a academia, com entes reguladores e com entes regulados, condensando em enunciados e recomendações algumas diretrizes sobre as relações recíprocas que se estabelecem entre direito, economia e processo político-democrático1. Por óbvio, o produto desse trabalho não dispõe de eficácia vinculante nem constitui fonte formal do direito. No entanto, são proposições que pretendem incentivar os juízes a analisar criticamente a própria atuação em casos nos quais o Poder Judiciário é provocado a realizar o controle de juridicidade sobre atos regulatórios.

Nos últimos anos, um giro discursivo permitiu o avanço do debate acerca da intervenção do Poder Judiciário na regulação. A pergunta “os juízes podem intervir nas políticas públicas regulatórias?” foi gradativamente substituída por “uma vez verificada quebra de juridicidade, como os juízes devem intervir nas políticas públicas regulatórias?”. A questão da legitimidade democrática, que antes fomentava uma discussão dicotômica acerca da postura ideal e abstrata que os magistrados deveriam assumir – absenteísta ou intervencionista –, funciona atualmente mais para guiar a construção de injunções interventivas, fornecendo aos juízes parâmetros racionais de justificação e de limitação da atuação jurisdicional, a qual pode assumir maior ou menor intensidade a depender do caso concreto. Afinal, à luz de uma Constituição que assevera que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV), bem como que inclui no rol de competências desse mesmo braço estatal o controle sobre atos administrativos e legislativos, padece de consistência a visão de que posturas judiciais absenteístas consistem na resposta adequada para todo e qualquer caso.

Nesse sentido, a reflexão que a Constituição sugere não é se o Judiciário pode intervir, mas decerto como, uma vez verificado imprescindível, ele pode intervir de modo eficiente no ambiente regulatório, considerados i) os inúmeros outros interesses juridicamente protegidos que precisam ser justapostos, bem como ii) os incentivos e os desincentivos que cada intervenção, ainda que mínima, provoca no comportamento dos agentes estratégicos – empreendedores, agentes reguladores, consumidores etc. Nesse ponto, os desafios brasileiros na seara da regulação são de especial envergadura. As circunstâncias socioeconômicas estruturais peculiares dos países em desenvolvimento acentuam os dilemas práticos e teóricos sobre a justa medida a ser estabelecida entre eficiência e redistribuição2. Num país marcado por desigualdade e insuficiência de serviços públicos essenciais, faz-se necessária uma política regulatória que permita a existência de um ambiente de segurança, mas que, ao mesmo tempo, não seja infensa a questionamentos e à participação da sociedade civil, ainda que ela tenha que se manifestar através do Poder Judiciário. Não nos basta a visão smithiana de garantia da estabilidade e livre funcionamento dos mercados3, pois o papel do Estado entre nós se expande para a mobilização de recursos, de investimentos e de inovação4, demandando outras lógicas por parte da Justiça que não a simples reiteração de um modelo adversarial excessivamente omisso ou ativista na resolução de controvérsias.

Considerando todas essas variáveis que tensionam o debate, bem como o conteúdo das palestras e oficinas do evento5, a tônica de alguns dos enunciados aprovados foi a de, mesmo reconhecendo a impossibilidade de definição apriorística de um parâmetro de intensidade de controle, fomentar uma intervenção mais procedimental do que substantiva, sugerindo-se às juízas e aos juízes que adotem, entre outros pontos, i) mecanismos de incentivo à interação interinstitucional; ii) mecanismos de incentivo à participação de agentes interessados que eventualmente tenham sido alijados do processo regulatório; e iii) mecanismos de exercício de jurisdição empiricamente informada, formando acervo dos elementos técnico-científicos que embasaram as decisões administrativas e legislativas, bem como, quando possível, colhendo indicadores que permitam ao magistrado intuir eventuais consequências de suas decisões judiciais.

A Plenária do FONACRE aprovou os seguintes enunciados a propósito do eixo temático da oficina sobre “limites e possibilidades para a intervenção judicial em regulação e concorrência”:

1. Embora o controle de juridicidade dos atos regulatórios não obedeça a uma parametrização fechada, o Poder Judiciário deve privilegiar intervenções procedimentais em vez de intervenções resolutivas, de modo a verificar a observância, entre outros pontos, i) da transparência e da publicidade das decisões administrativas, ii) da legitimidade e da efetiva participação dos atores juridicamente interessados, inclusive da sociedade civil, iii) da realização do estudo de Análise de Impacto Regulatório (AIR); e iv) do atendimento das balizadas legais e constitucionais autorizativas da regulação, bem como dos seus motivos determinantes”.

2. Sempre que possível, o Poder Judiciário deve estimular o diálogo entre os agentes reguladores e econômicos, provendo-os com os incentivos e os parâmetros de legalidade necessários para que corrijam a juridicidade violada, inclusive mediante a adoção de mecanismos alternativos de resolução de controvérsias.

3. O Poder Judiciário deve deferir tutelas que restabeleçam a juridicidade violada com o menor grau de impacto interventivo possível, também atentando para as consequências políticas, econômicas e concorrenciais de suas decisões.

4. O Poder Judiciário deve primar pelo controle de juridicidade empiricamente informado, incentivando as partes e terceiros interessados a apresentarem dados técnicos e científicos que subsidiem a verificação lógica entre as premissas, as metodologias e as conclusões que embasam os atos regulatórios.

5. O Poder Judiciário deverá prestigiar a participação dos agentes reguladores e econômicos, seja convocando audiências públicas, seja convidando terceiros interessados para integrar a lide na condição de amicus curiae, entre outras medidas que promovam a ampliação democrática do debate.

Em suma, esses enunciados conduzem os magistrados a três diretrizes gerais.

Primeiro, sob a perspectiva da separação de poderes e da impossibilidade de o Poder Judiciário se substituir ao agente regulador, os enunciados evidenciam a preocupação com o iter percorrido pelo regulador para alcançar as suas conclusões. Foram ouvidas as partes interessadas, assegurando-se um processo administrativo transparente e público? Foi realizada a adequada análise do impacto regulatório? Essas perguntas ganharam, através das propostas, uma conotação mais prática e procedimentalizada.

Segundo, sem impor o consequencialismo como vetor prioritário de julgamento, as propostas incentivam que seja adotada a forma de intervenção judicial que apresente menor impacto dentre as juridicamente possíveis, bem como que sejam mensuradas as consequências das decisões judiciais, na linha preconizada pelos artigos 20 e 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.Terceiro, a despeito de a sugestão prioritária direcionar o magistrado para intervenções procedimentais, o Poder Judiciário não deve se furtar de aplicar intervenções substantivas e resolutivas sempre que o restabelecimento da juridicidade violada assim o exigir, especialmente quando perceber que todas as demais soluções juridicamente possíveis são ineficientes. Não havendo fórmula universal para o controle dos atos administrativos, o grau e a substância da intervenção judicial são definidos pelo compromisso do Poder Judiciário de garantir a normatividade do ordenamento jurídico e a efetividade dos direitos fundamentais.

Além dos enunciados, foram aprovadas duas recomendações. Primeiro, recomendou-se a circulação entre os juízes da publicação “Diretrizes Gerais e Guia Orientativo para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório (AIR)”, editado pela Casa Civil da Presidência da República. Segundo, recomendou-se a promoção de treinamentos pelas escolas de magistratura envolvendo temas de regulação, economia e concorrência.

As conclusões extraídas dos debates do II FONACRE foram resumidas pela “Carta de Campinas”, que, além de ressaltar a importância do respeito aos direitos fundamentais e à independência dos poderes, reafirmou o papel do Poder Judiciário como co-partícipe essencial para a construção de relações econômicas éticas, livres e eficientes.

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1- Os autores coordenaram o Grupo de Trabalho temático do FONACRE sobre “Intervenção judicial em regulação e defesa da concorrência: limites e possibilidades”. As demais Oficinas, integradas por juízas e juízes federais, versaram sobre “Poder Judiciário, regulação e internet”, “Arranjos institucionais do mercado de combustíveis” e “Atuação judicial e regulação do Setor elétrico”.

2- Diogo Coutinho desenvolve a ideia de que não são necessariamente excludentes eficiência e equidade na atividade de regulação. Cf. Direito e Economia Política na Regulação de Serviços Públicos, São Paulo: Saraiva, 2014.

3- Cf. Matthew M. Taylor, “O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil”, Dados [online]. 2007, vol.50, n.2, pp.229-257.

4- Apontamentos sobre as possibilidades de atuação do Estado no desenvolvimento são encontrados no texto de David Trubek, Diogo Coutinho e Mario Schapiro, “Towards a New Law and Development: New State Activism in Brazil and the Challenge for Legal Institutions”, 2012, Univ. of Wisconsin Legal Studies Research Paper nº. 1207. Disponível em: SSRN: https://ssrn.com/abstract=2144939.

5- Foram palestrantes no II FONACRE os Professores Eduardo Gianetti da Fonseca, Diogo Rosenthal Coutinho, Ana Frazão, Mario Schapiro, Alexandre Veronese, Eduardo Magrani, Beatriz Kira, Márcio Luiz Freitas, Carlos Ragazzo, Hélio Robeschimi, Luciano Godoy, Dirceu Amorelli e André Pepitoni Nóbrega.

 

CLARA DA MOTA SANTOS PIMENTA ALVES – Juíza Federal. Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB). Doutoranda em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP).

PEDRO FELIPE DE OLIVEIRA SANTOS – Juiz Federal. Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Doutorando em Direito pela Universidade de Oxford.

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