Escola sem Partido faz leitura errada da Convenção Americana de Direitos Humanos

Por Paulo Gustavo Guedes Fontes* 

Publicado originalmente no site Conjur em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-01/paulo-fontes-escola-partidoe-moral-familiar#author

Em artigo anterior publicado aqui na ConJur, tratei da concepção de laicidade defendida pelo Escola sem Partido. Sustentei que, diferentemente do que pretende o movimento, o princípio da laicidade não inclui suposto dever do Estado de "não contrariar" a moralidade religiosa.

Neste artigo, pretendemos abordar, e igualmente refutar, a posição do movimento a respeito da "educação moral" transmitida pela escola. O movimento invoca o artigo 12, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que dispõe: "Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções". A partir daí, retira conclusões rígidas no sentido de que os professores devem sempre se abster de entrar em choque com a moralidade familiar.

A concepção foi adotada pelo substitutivo ao PL 7.180/2014, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e inclui entre os princípios da educação: art. 3º, XIV - respeito às crenças religiosas e às convicções morais, filosóficas e políticas dos alunos, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa.

Portanto, no projeto de lei em questão, o dispositivo da convenção traduz-se na forma de uma “precedência” dos “valores de ordem familiar” sobre a educação escolar, no tocante à educação moral, sexual e religiosa.

O suposto dever do Estado de respeitar a “moralidade religiosa”, de que tratamos no artigo anterior, transforma-se aqui em dever de respeitar os valores de ordem familiar ou a moralidade familiar. Vai sem dizer que um dos alvos do movimento, proibida expressamente pelo referido projeto de lei, é a chamada “ideologia de gênero” e a própria “educação sexual” que, na concepção dos seus autores, estariam em desacordo com a moralidade familiar.

A primeira dificuldade encontrada é a concepção, embutida no projeto, de que a moralidade familiar ou os valores de ordem familiar seriam homogêneos e iguais para todas as famílias. A configuração familiar hoje é bastante diversa, incluindo casais homossexuais que adotam crianças, como admitido pela jurisprudência pátria (por exemplo, STJ, HC 404.545/CE e STJ, REsp 1.540.814/PR), de maneira que, justamente nos aspectos enfocados pelo movimento, os “valores de ordem familiar” podem ser bastante diversos e heterogêneos. Portanto, não se pode derivar da convenção a postura restritiva pretendida pelo movimento em termos da educação moral e sexual.

A abordagem do professor, ao tratar de uma questão como a homossexualidade, em atendimento aos próprios ditames da convenção, não estaria limitada da forma desejada pelo movimento, pois na sala de aula existirão potencialmente alunos oriundos de famílias, assim reconhecidas pelo ordenamento jurídico, com configurações e valores diversos e por vezes discrepantes a respeito do tema.

Vale aqui também, em parte, o que foi dito sobre a moral religiosa no artigo anterior. O Estado, em seu projeto educacional, deve respeito e tolerância, mas não reverência absoluta às concepções morais e religiosas dos pais. A educação, nos termos do artigo 205 da Constituição, é um projeto social que visa ao “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Apesar do respeito devido à família e da necessidade do diálogo, intrínsecos à prática pedagógica, a educação é direito do indivíduo e meio de florescimento da personalidade, das aptidões e potencialidades de cada um, não se resumindo a uma ratificação acrítica das concepções familiares.

Pense-se numa família que promova valores discriminatórios: estariam os pais no direito de exigir que a seus filhos não sejam ministrados os conteúdos referidos no artigo 2º, X, do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), de “promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental”?

Outro aspecto a ser observado é que o artigo 12 da Convenção Americana trata de forma geral da “liberdade de consciência e de religião”. E o próprio artigo 12, 3, admite restrições à liberdade de religião “que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas”.

Assim, ao contrário do que transparece nas formulações do movimento, a liberdade religiosa e a moralidade decorrente da religião não são absolutas nem estão em posição de supremacia em relação a outros direitos fundamentais e princípios do ordenamento jurídico. Assim, devem ser conciliadas com os princípios que regem a educação e com outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de cátedra (ADPF 548), direitos das minorias etc. Com efeito, é característica dos direitos fundamentais não estabelecerem entre si hierarquia prévia, isto é, não guardam relação de precedência um sobre o outro, como afirma Robert Alexy[1], o que repeliria justamente a menção do projeto de lei a uma precedência dos valores familiares.

Do contrário, a tarefa educacional restaria tolhida, correndo o risco de empobrecer-se sempre que conteúdos de cunho ético, político, histórico, artístico e científico possam de alguma forma conflitar com a moralidade, religiosa ou não, dos pais e alunos. Poderíamos recair numa espécie de censura obscurantista que em algum momento se voltou contra o pensamento iluminista, com especial zelo em Portugal e mesmo no Brasil colônia, com o governador de Minas Gerais no período da Conjuração Mineira, o visconde de Barbacena, vetando na capitania o ensino de anatomia, cirurgia e parto[2].

A suposta “precedência” dos valores familiares poderia nos arrastar ainda para discussões estéreis já conhecidas no Direito norte-americano, como aquela envolvendo o ensino do darwinismo. Naquele país, a Suprema Corte, baseando-se do princípio da laicidade (establishment clause), e mantendo assim separados os domínios da fé e do ensino público, afirmou a preponderância e a obrigatoriedade do ensino do darwinismo, ao tempo em que refutou o ensino do criacionismo como teoria científica (Epperson v. Arkansas, 1968; Edwards v. Aguilard, 1987; Kitzmiller v. Dover Area School District, 2005).

A previsão do artigo 12, 4, da convenção não exige nem admite as vedações encampadas pelo projeto de lei, pois as preocupações ali contidas já estão contempladas pelo artigo 210, parágrafo 1º, da nossa Constituição, que prevê o ensino religioso facultativo nas escolas públicas, no horário regular. A finalidade de tal dispositivo não é outra senão incluir a religião e a moralidade familiar de cunho religioso na educação do aluno. Essa sempre foi uma preocupação das democracias desde o advento do ensino público e do Estado laico; na França, as escolas públicas não funcionam nas quartas-feiras à tarde, justamente para que as famílias possam fornecer, caso queiram, educação religiosa a seus filhos. Nosso dispositivo constitucional foi além e prevê que tal componente da educação do aluno possa se dar no horário regular e ter caráter propriamente confessional, como decidiu o STF na ADI 4.439.

Levando em conta que o artigo 12, 4, insere-se, na Convenção Americana, no tópico da liberdade de religião e que a educação moral e sexual estão associadas a preceitos religiosos, como defende o próprio movimento, a previsão constitucional do ensino religioso revela-se apta e suficiente para tutelar os interesses em questão. No lugar, contudo, de conferir supremacia a certos direitos em detrimento de outros, a Constituição logra assim conciliar os princípios da educação nacional, da laicidade e da liberdade de expressão e de cátedra com as crenças religiosas e morais dos alunos e responsáveis. Situando-se hierarquicamente abaixo da Constituição da República, os termos da convenção estão atendidos pela referida previsão constitucional.

Já o projeto de lei referido, ao estabelecer a "precedência" dos valores familiares — noção, como já vimos, heterogênea e que não autoriza as vedações constantes do projeto — padece de inconstitucionalidade, por ferir os princípios da educação nacional e demais princípios e direitos fundamentais citados, entre os quais a liberdade de expressão e de cátedra, impondo uma forma de supremacia da liberdade de religião e da moralidade religiosa.

Por fim, de um ponto de vista da Filosofia do Direito, temos uma vez mais que bem distinguir o Direito e a moral[3]. A proteção de uma esfera moral própria do indivíduo, indevassável pelo Estado, a partir das revoluções liberais, implica também que cada um tem a sua e que a moral de outrem não pode ser imposta ou constituir-se em fator limitante da conduta — só o Direito é obrigatório para todos. A moral privada e religiosa também não pode ser imposta à coletividade, condicionando e limitando o projeto educacional. O dever que temos diante da moralidade e da religiosidade alheias, repita-se, é sempre o de tolerância e respeito, nunca o de obediência e abstenção.

*Paulo Gustavo Guedes Fontes é desembargador do TRF-3, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Público pela Universidade de Toulouse (França). 

[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 96.
[2] FIGUEIREDO, Lucas. O Tiradentes: uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 176.
[3] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Filosofia do Direito. São Paulo: Método, 2014. Também o meu Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição constitucional. 2a. edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

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