A demonização dos servidores públicos e a reforma da Previdência

Por Antônio José de Carvalho Araújo
Diretor da Ajufe

Este artigo originou-se da preocupação acerca do tratamento que vem sendo dado por sucessivos governos aos servidores públicos, com ênfase na tentativa de aprovação da reforma da Previdência. Para angariar apoio à reforma, o atual Governo repete a estratégia do anterior, confirmando a cruel tentativa de dividir os trabalhadores, uma vez que seleciona um alvo a ser combatido: os servidores públicos, como se fossem estes os responsáveis pela “quebra” da Previdência.

Durante a tramitação da PEC 287 (Governo Temer), a propaganda governamental criou um jargão para classificar os servidores públicos: “ganham muito, trabalham pouco e se aposentam cedo”. Também não é incomum a tentativa de fragilizar a credibilidade das representações das categorias profissionais do serviço público, já que naturalmente resistem à retirada de direitos, promovida pela reforma da Previdência. Assim, sindicatos e associações dos servidores públicos são acusadas publicamente de defenderem “privilégios”, apenas pelo fato de apresentarem contraponto aos retrocessos da reforma.

Passemos à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 06/2019. Em tramitação no Congresso Nacional, a PEC pretende modificar radicalmente a Previdência, a contragosto do desejo do constituinte originário, que insculpiu amplo leque de proteção social na Constituição Federal de 1988.

A então rotulada “Nova Previdência” consiste em aumentar a idade mínima, extinguir a aposentadoria por tempo de contribuição, alterar a forma de cálculo da pensão por morte, instituir alíquotas progressivas, revisar regras de transição de emendas já aprovadas, reformular o modelo da Previdência dos segurados especiais, criar nova sistemática em relação aos benefícios de prestação continuada, entre outros. Há ainda, não menos pior, a implantação da capitalização, bem como a desconstitucionalização de regras previdenciárias.

Segundo o Governo, um dos princípios da reforma é um “sistema justo e igualitário (rico se aposentará com a mesma idade do pobre)”. Sim, é exatamente isso que informam em um dos slides! Os argumentos são os mesmos! Basicamente, alega-se déficit da seguridade social e aumento da expectativa de vida do brasileiro, o que interfere na pirâmide etária.

É dever dos servidores públicos esclarecer que além da PEC 06 pretender a transformação profunda do atual modelo de Previdência, ocasionando grave insegurança jurídica e social, vai além, agravando quadro de enorme prejuízo, que reverterá fatalmente na qualidade dos serviços públicos, indispensáveis a milhões de brasileiros.

Sob justificativa de “cobrar mais dos que ganham mais”, a PEC 06/19, no art. 14, §1o impõe aumento injustificável na contribuição previdenciária dos servidores públicos, instituindo alíquotas progressivas. Atualmente, os servidores que ingressaram no serviço público antes de 2013 pagam 11% sobre o total de suas remunerações, mesmo que recebam salários superiores ao teto do regime geral, no valor de R$ 5.839,45. Dessa forma, enquanto o valor máximo de contribuição dos trabalhadores do regime geral é de R$ 642,34, no regime próprio as contribuições podem chegar até R$ 4.312,00, quase sete vezes mais!

O governo pretende aprovar aumento de até 22%, em oposição aos atuais 11% cobrados! A alíquota efetiva será na prática 16,8%. Para a renda de R$ 39.200,00, a contribuição total chegará a R$ 6.589,83. A justificativa aparenta ser razoável a princípio, afinal quem ganha mais deveria pagar mais?! Sim, claro, no entanto, a base de cálculo atualmente tributada dos servidores é visivelmente maior e assim, uma vez que o valor cobrado é superior, proporcionalmente o benefício previdenciário também será maior, havendo por consequência equilíbrio.

Resta evidente por isso que o aumento da alíquota previdenciária, da forma como proposta na PEC 06/19, trata-se de flagrante inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio da vedação da utilização de qualquer tributo com efeito confiscatório (art. 150, VI CF). Corroborando esse entendimento, o Ministro Ricardo Lewandowski deferiu em dezembro de 2017 liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5809 contra a Medida Provisória 805/2017, a qual instituía aumento da alíquota previdenciária para 14% para servidores públicos federais, com salários acima do teto do regime geral.

Esse aumento de alíquota viola os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, visto que a configuração da hipótese de confisco não decorre da incidência isolada apenas da alíquota de contribuição previdenciária, mas sim da soma dessa com o IR (deduzindo o valor da contribuição da base de cálculo do IR, que pode chegar até a 27,5%), ultrapassando assim o limite da razoável capacidade contributiva do servidor. Portanto, a elevação de 11% para 16% ou mais da alíquota não pode ser vista apenas como elevação em cinco pontos percentuais. Observa-se que o aumento não implica em recebimento de mais nada do Estado em contrapartida.

Além disso, é comum que servidores públicos, em média, contribuam por tempo bem maior do que os trabalhadores do regime geral, cuja maioria se aposenta por idade após contribuir por apenas 15 anos. Ou seja, a maioria dos trabalhadores paga mensalmente valor menor e por tempo inferior, quando comparados aos servidores públicos.

Outro argumento repetido pelos defensores da reforma é a necessidade de igualar os dois regimes, o próprio e o geral, o que seria decisão justa e isonômica. Ocorre, todavia, que os servidores públicos já estão equiparados aos trabalhadores do regime geral desde 2013. Com a aprovação da Lei no 12.618/2012, ninguém que ingressou no serviço público federal após 2013 terá aposentadoria acima do teto do INSS. Ou seja, a aposentadoria máxima do servidor público será igual a do trabalhador da iniciativa privada. É claro que os resultados dessa conta nas finanças públicas precisam de mais tempo para transparecer. Evidente, por outro lado, que a arrecadação também diminuirá, uma vez que o valor máximo de contribuição desses novos servidores é de apenas R$ 642,34, limitada ao teto do regime geral. Destaca-se ainda que os servidores públicos continuam contribuindo à Previdência mesmo após aposentados ou sendo pensionistas.

Ademais, ao contrário do que se imagina, atualmente, desde a Emenda Constitucional 20/1998, o servidor público já possui uma idade mínima para se aposentar de 60/55 anos (homem/mulher) e deve contribuir por 35/30 anos.

Chamam ainda a atenção as mudanças sugeridas na PEC 06/19 a título de pensão por morte, uma vez que se pretende reduzir, através do cálculo por meio de cotas, o valor a alguns casos para apenas 60% do valor do benefício, criando ainda barreiras para atual percepção permitida de pensões e/ou aposentadorias, salvo pequenas exceções.

A PEC 06/19 não apresenta também solução equilibrada ao problema das regras de transição, especialmente a servidores que ingressaram no serviço público por ocasião das emendas 20/1998, 41/2003, 47/2005, ocasionando grave insegurança jurídica que certamente resultará em aumento da judicialização.

O perigo à Previdência Social possivelmente não será restrito à PEC 06/19, mas a total “imprevidência” deve vir, por estranho que possa parecer, no futuro breve. O disposto no §1o do art. 40, art. 1o da EC 06/2019 trata-se da desconstitucionalização da Previdência, o que significa que determinadas regras, que antes só poderiam ser modificadas por emendas constitucionais, cujo quórum é de 3/5 dos membros de cada Casa Legislativa (Câmara e Senado) poderão, caso seja aprovada a PEC 06/19, sofrer modificações através de leis complementares, ou seja, com quórum reduzido, o que promoverá facilmente futuras e possíveis novas reformas da Previdência, causando incertezas e grave insegurança à população.

Quebrando o longo período de ditadura, a Constituição de 1988 celebrou o Estado Democrático de Direito, com base no primado de que todo poder emana do povo, restabelecendo assim as eleições diretas presidenciais e mais, garantindo longo capítulo destinado aos direitos da seguridade social. Teve assim o objetivo de preservar um mínimo de segurança aos brasileiros, não sendo razoável fragilizar o pacto social aprovado democraticamente pelo constituinte originário.

Da mesma forma, é equivocada, sem estudo aprofundado e debate acurado com diversos setores representativos da sociedade civil, a instituição de regime de capitalização individual, prevista no § 6o do art. 40, art. 1o da PEC 06/2019. Em oposição ao atual regime de repartição, a capitalização pretendida poderá reduzir drasticamente o valor dos benefícios previdenciários no futuro, sujeitando a população ao recebimento, a título de aposentadoria e benefícios, de valores aquém de sua dignidade. Assim se manifestou recentemente, com bom senso e equilíbrio, o Ministro Luiz Fux: “Dentre os princípios constitucionais estão o contributivo e o da solidariedade. No meu modo de ver, são princípios que representam cláusulas pétreas, que não podem ser modificadas pelo poder constituinte derivado, e esse poder é que vai ser exercido por meio de uma emenda constitucional”.

Apesar da crise econômica, e com recorde de lucros, os bancos estão de olho na cereja do bolo, já que, com a possível aprovação da reforma, crescerá o mercado de seguros e previdência privada, sem contar que é de interesse a privatização do regime de previdência complementar dos servidores públicos. O capital financeiro age em conjunto, de forma coordenada. As ações e o preço do dólar oscilam, de acordo com os avanços ou não da reforma da Previdência.

Alerta-se para as conclusões da CPI da Previdência do Senado Federal, que de forma séria e balizada demonstrou um País de grandes devedores da Previdência, os quais se aproveitam das benesses estatais para quase nunca pagarem seus débitos.

A sanha do capital financeiro, cujos interesses prevalecem na PEC 06/2019, poderá fragilizar a democracia, com danos irreversíveis à Previdência dos trabalhadores e servidores públicos.

Publicado na Revista Justiça & Cidadania. Acesse: https://www.editorajc.com.br/a-demonizacao-dos-servidores-publicos-e-a-reforma-da-previdencia/ 

 

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