Por
• HERLEY DA LUZ BRASIL
• INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES
17/08/2021 08:38
Publicado originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/paisagens-sensoriais-como-patrimonio-cultural-conexao-franca-acre-17082021
Na França, após disputas judiciais na zona rural, dentre as quais se destacam uma contra o barulho dos sinos que tocavam às sete da manhã (travada em 2018, na região de Doubs) e outra sobre o direito do galo Maurice a continuar a cantar nos horários de seu instinto animal (ação decidida em 2019 pelo tribunal de Rochefort), foi promulgada, em janeiro de 2021, uma lei que altera o código ambiental francês, para reconhecer os sons e os cheiros dos campos como características dos espaços naturais, pertencentes ao patrimônio cultural nacional, ao lado das paisagens, da fauna, flora, biodiversidade e demais elementos que caracterizam a sadia qualidade de vida.
A notícia sobre a lei francesa, com a abertura para a proteção normativa de paisagens sensoriais, trouxe instigantes reflexões para o cenário brasileiro que, além de uma política nacional de proteção ambiental com uma legislação ambiental robusta, que completa 40 anos neste ano de 2021, também tem aporte constitucional para o reconhecimento de patrimônios culturais imateriais portadores de referência à identidade, memória e ação dos grupos formadores da sociedade brasileira, como as formas de expressão e dos modos de criar, fazer e viver (art. 216) e para a proteção dos componentes do meio ambiente, ecológicos ou culturais, que são essenciais para a sadia qualidade de vida para a presente e as futuras gerações (art. 225).
A atenção legal para os sons e cheiros da zona rural francesa, no entanto, vai além da proteção dos traços característicos da vida campestre e da necessidade de se preservar hábitos que não encontram lugar no contexto urbano.
Ao lançar luzes para barulhos e odores originários de propriedades ou de espaços de acesso restrito – que ecoam no âmbito público perturbando alguns vizinhos e despertando elos afetivos e sensoriais em outros, o debate se desloca para a horizontalidade dos direitos culturais coletivos, que devem ser respeitados e protegidos, mesmo quando exercidos em relações ou lugares privados; bem como para a necessidade ou não de se lançar mão de instrumentos protetivos do patrimônio cultural para reconhecer experiências e paisagens sensoriais como bens culturais.
A Constituição brasileira adotou a referencialidade como base para a livre manifestação cultural e para tutela e caracterização do patrimônio cultural (art. 215 e 216).
Assim, a proteção das experiências e paisagens sensoriais como bens culturais imateriais decorre do significado cultural diferenciado que possuem, de acordo com as necessidades ou aspirações de cada comunidade.
Cecília Londres ressalta que, no campo das práticas simbólicas, a identificação dos valores de referência de um grupo exige uma postura “curativa”, porque, em suas palavras, “trata-se de identificar, na dinâmica social em que se inserem bens e práticas culturais, sentidos e
valores vivos, marcos de vivências e experiências que conformam uma cultura para os sujeitos que com ela se identificam.”[1]
Embora a experiência sensorial – como direito cultural – e a paisagem sensorial – como patrimônio imaterial – sejam temas que precisem de maior debate e reflexão no cenário brasileiro, já há iniciativas em curso. É que algumas experiências e paisagens sensoriais estão tão arraigadas na comunidade que passam a ser merecedoras de tutela jurídica por serem portadoras de valores de referência ligados à memória, à identidade e à ação da comunidade.
No cenário brasileiro, além do reconhecimento, como patrimônio, de práticas culturais que acontecem apenas uma vez por ano, mas que se repetem por décadas ou séculos, como, por exemplo, o Círio de Nazaré (Belém do Pará), há também casos de patrimonialização de saberes que integram o cotidiano da comunidade e caracterizam a paisagem sensorial do local ou da região.
Desde 2009, o Toque dos Sinos e o Ofício de Sineiro foram registrados como Patrimônio Cultural brasileiro pelo IPHAN. A importância desse bem está na sobrevivência, nos dias atuais, da linguagem sonora emitida por 40 tipos de toques de sino que permitiam, entre os séculos XVII e XIX, a comunicação de moradores de nove cidades de Minas Gerais e que hoje são memória e traços sonoros característicos da região.
No site do IPHAN, é explicado que o ofício de sineiro é “uma prática tradicional, vinculada ao ato de tocar os sinos das igrejas católicas para anunciar rituais e celebrações religiosas, atos fúnebres e marcação das horas, entre outras comunicações de interesse coletivo”.
Também em terras mineiras, na cidade de Caxambu, a Coleta de Águas Minerais no Parque das Águas Lysandro Carneiro Guimarães foi registrada, por decreto municipal, como bem cultural imaterial. Conforme noticiado, “o hábito de coletar água nos parques integra a identidade cultural da região e perfaz a memória histórica e afetiva com as águas minerais, desde os povos originários sul- americanos que viveram na região, nos períodos pré e pós- colonial, dos troncos etnolinguísticos Tupi e Jê. Segundo os saberes locais, as águas têm o poder de cura e traz o bem-estar.”
Longe das Minas Gerais, mas ainda sob a perspectiva da característica principal da paisagem cultural, que é “a ocorrência, em determinada fração territorial, do convívio entre a natureza, os espaços construídos e ocupados, os modos de produção e as atividades culturais e sociais, numa relação complementar capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida por qualquer um desses elementos isoladamente”, bem como das experiências sensoriais que circulam e marcam uma cidade, facilmente se observam nas ruas de Rio Branco, capital do estado do Acre, uma paisagem voltada à cultura ayahuasqueira, com igrejas e templos dedicados ao culto associado à Ayahuasca, bem como seus adeptos a circular nos espaços urbanos elegantemente fardados, uniformizados em dias de cerimônia religiosa.
A cultura ayahuasqueira é multifacetada e portadora dos valores de referência ligados à memória, identidade e ação do povo acreano, para usarmos a expressão constitucional que caracteriza um bem como patrimônio cultural (art. 216).
A vinculação com a memória se dá pela própria história do uso urbano da Ayahuasca, que é uma história de resistência, permeada de lutas, perseguições, preconceito, discriminação. Os fundadores das primeiras religiões ayahuasqueiras do século XX eram negros, filhos de escravos, em uma época em que o racismo não era velado. Havia perseguição aos membros das igrejas e a seus familiares.
Cita-se, por exemplo, o caso de crianças que há algumas décadas foram proibidas de continuar frequentando suas escolas porque seus pais faziam uso religioso de ayahuasca, em Rio Branco. Tal fato motivou os adeptos a baterem tijolos, construírem sua própria escola e se revezarem no ensino, não só a seus filhos, mas a todas as crianças da comunidade, de qualquer credo. Trata-se da Escola São Francisco I, fundada pelos membros do Centro Espírita e Culto de Oração – Casa de Jesus, Fonte de Luz, que sob direção dessa instituição religiosa, atingiu um nível de qualidade no ensino que a situa entre as melhores de todo o etado do Acre, com nota no IDEB/2019 de 7,4 pontos, superior à média nacional.
O uso religioso da Ayahuasca em contextos urbanos, além de carregar uma memória de conflitos, tensões e preconceitos, ainda veicula, no presente, ideias equivocadas e com viés discriminatório, como a que equipara, equivocadamente, a prática de beber o chá ao uso de drogas; ou a que propala dano à saúde causado pelo consumo da bebida mesmo que responsavelmente em rituais religiosos. A discriminação e o erro no argumento ficam latentes quando não se difunde as mesmas opiniões em relação ao uso da Ayahuasca pelos povos indígenas, que o fazem há milênios.
Embora os preconceitos e divulgação de equívocos em torno do uso da Ayahuasca em rituais religiosos mereçam repúdio, por serem uma forma de discriminação religiosa e de desrespeito às liberdades, inclusive à liberdade cultural, é preciso situar o debate sobre a Ayahuasca como tema afeto à saúde e as restrições que daí decorrem[2].
A Ayahuasca é uma bebida psicoativa, que temporariamente altera a função cerebral, o estado de consciência, o humor, a emoção e a percepção do indivíduo sob seu efeito, que geralmente dura cerca de 4 horas. Seu princípio ativo é a molécula DMT (N, N-dimetiltriptamina), substância de uso proibido pela legislação de diversos países, apesar de presente em diversas espécies vegetais, a exemplo do tomate, e em mamíferos, inclusive nos seres humanos, naturalmente.
No entanto, quando a DMT é ingerida por via oral, a molécula é metabolizada, desmantelada pelo organismo, e não chega a produzir efeitos. Porém, substâncias contidas na Ayahuasca se conectam à outra enzima, que digere a DMT, a monoaminoxidase – MAO. Isso permite que a DMT entre na corrente sanguínea e aja no sistema nervoso central. Daí porque há a necessidade essencial de elaboração do chá com duas plantas diversas, pois, sozinhas não produzem o resultado característico.
A Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas realizada em Viena, na Conferência das Nações Unidas, em 1971, um dos marcos legais do combate internacional às drogas, listou o DMT como substância que deveria ser proibida pelos países signatários (art. 7o). Entretanto, fez uma ressalta, com o seguinte teor (art. 32, inciso 4), in verbis:
“Qualquer Estado em cujo território cresça no estado selvagem plantas contendo substâncias inscritas na lista 1 e utilizadas tradicionalmente por certos grupos restritos bem determinados na ocasião de cerimônias mágicas ou religiosas pode, na altura da assinatura da ratificação ou da adesão, fazer reservas sobre estas plantas no que se refere às disposições do artigo 7o, exceto nas relativas ao comércio internacional.”
Ou seja, apesar de relacionar a DMT como substância proscrita, fez a ressalva da possibilidade de permissão de seu uso religioso a partir de plantas que contenham a substância. O Congresso Nacional aprovou os termos da Convenção, por meio do Decreto Legislativo no 90/72, com depósito do instrumento de ratificação em 14/12/73, seguido do Decreto Presidencial no 79.388/77.
No mesmo sentido, a atual lei de antidrogas (Lei no 11.343/2006), já em seu artigo 2o, ressalva da proibição o que estabelece a Convenção de Viena a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico- religioso, reforçando a legalidade do uso.
O simples uso de um psicoativo, de forma segura e de acordo com as determinações legais, em reuniões religiosas para obtenção de efeitos incomuns já é traço cultural distinto. No entanto, como bem ligado à identidade e à ação do povo acreano – na região surgiram três religiões que fazem uso do chá, uma delas centenária –, os valores de referência dessa prática cultural ainda estão na combinação do uso tradicional da ayahuasca com cânticos, tanto entre indígenas quanto nas religiões urbanas, e constitui um dos traços que mais encanta seus participantes.
A musicalidade é indissociável do ritual. É que se descobriu uma simbiose interessante: o chá intensifica as percepções e impressões provocadas pela música e, ao mesmo tempo, a música potencializa os efeitos do chá. Esse tema despertou atenção de estudiosos da área de humanas, com a publicação, por Beatriz Caiuby Labate e Gustavo Pacheco, do interessante livro Música brasileira de Ayahuasca.
Entre os indígenas, as canções entoadas durante a utilização da bebida são denominadas de Ícaros. Na mais antiga das religiões ayahuasqueiras, o “Alto Santo”, são os Hinos que preenchem os rituais. Em outra delas, o “Centro Espírita e Culto de Oração – Casa de Jesus, Fonte de Luz”, Hinos, Salmos e Benditos tomam conta do ambiente. Na “UDV” (União do Vegetal) há orações cantadas, denominadas de “Chamadas”, além de vasto acervo musical.
Ritmo, melodia e harmonia são vetores hábeis para transmissão de ensinamentos da doutrina religiosa, evocação de sentimentos, reverência a Deus e à natureza. Assim, os louvores são veículos para o êxtase religioso; e característica marcante e essencial às cerimônias.
Nas igrejas da linha do Mestre Irineu (Alto Santo), soltam-se fogos nas sessões festivas, sempre realizadas à noite. Antigamente, as igrejas situavam-se na zona rural, mas hoje em dia são bairros e, por vezes, há reclamação do barulho dos fogos, que são usados há cerca de 80 anos em tais localidades. Dia de festejo, como dizem, as pessoas passam vestidas para o bailado e é anúncio de cantoria e fogos.
Em outra linha, a do Mestre Daniel, que funciona há 75 anos em bairro próximo ao centro de Rio Branco – mas que quando fundada, era zona de floresta –, as cantorias são ouvidas por toda a vizinhança. A vizinhança não parece se incomodar com o barulho das canções entoadas nas sessões ou não transforma esse incômodo em reclamação formal por haver uma compreensão de que morar naquela região significa conviver com essa paisagem sensorial, existente desde quando a vizinhança era apenas os animais da floresta que cercava o local.
O acervo musical próprio e diferenciado com rituais originais, além dos bailados, organização, doutrina e seus modos de transmissão, somam- se a um elemento muito especial para a paisagem sensorial: o fardamento, que distingue os religiosos de cada linha de Igrejas e que ilustram o cenário urbano, nos dias de culto.
Homens e mulheres elegantemente trajados de branco, com adereços verde bandeira, circulam na cidade de Rio Branco a caminho do Alto Santo. Também é possível ver homens vestidos de calças brancas e mulheres de saias e calças amarelas se dirigindo aos diversos núcleos da UDV. E ainda há o traje que muito lembra o de marinheiros, adotado pelos religiosos da linha do Mestre Daniel.
Na França ou no Acre, a paisagem sensorial tem valor afetivo e jurídico para a comunidade local; é um patrimônio repleto de cheiros, sons, cores, estética e sabores, que deve ser protegido e merece ser transmitido às futuras gerações. Para os que fazem e vivem a paisagem hoje, os versos de Fernando Pessoa dão um belo recado: “Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”.
[1] FONSECA. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio, p. 93. in IPHAN; in.: Inventário Nacional de Referências Culturais: Manual de Aplicação. Brasília: IPHAN/ Minc/DID. 2000.
[2] A Resolução 1/2010 do Conselho Nacional de Política contra Drogas (CONAD) estabelece os requisitos e condicionantes para o uso legal de Ayahuasca no Brasil, dentre eles o exclusivo uso religioso, a vedação de uso terapêutico e a proibição de uso associado a quaisquer substâncias ilícitas, bem como a proibição de comercialização da bebida.
HERLEY DA LUZ BRASIL – Juiz federal, Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba e vice-coordenador da Escola Superior de Magistratura na Seção Judiciária do Acre.
INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES – Desembargadora do TRF da 3a Região. Doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.