O Projeto “Conhecendo as Juízas Federais” traz ao público uma imagem de quem são as juízas federais e ajuda a saber como elas percebem a carreira quando se trata de questões de gênero. As histórias são contadas por meio entrevistas com as magistradas federais.

Conhecendo as Juízas Federais #4 - Valéria Caldi

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Continuando o projeto “Conhecendo as Juízas Federais”, a AJUFE apresenta nesta edição a história de vida da juíza federal Valéria Caldi, titular da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, especializada no julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, há 18 anos.

Valéria tomou posse na Justiça Federal, no ano de 1997, aos 26 anos, e atuou em diversos casos de grande repercussão nacional.

Sobre as dificuldades enfrentadas na magistratura, ela destaca a dificuldade de incorporar o peso da responsabilidade de ser juíza federal e decidir a vida das pessoas. “Eu sofria muito. E sofro até hoje, mas de uma forma mais madura”. Além disso, ela aponta também a necessidade de se policiar para não se iludir com o tratamento diferenciado dado aos juízes. “Dosar a autoridade, sem perder o humanismo e a sensibilidade, é fundamental na nossa profissão”, completou.

Valéria lembra também de dificuldades referentes à sua própria área de atuação. “Na jurisdição criminal, enfrentei dificuldades bem maiores, decorrentes de processos de grande complexidade, envolvendo, inclusive, enfrentamentos à minha autoridade e ameaças veladas”, compartilhou.

Quando questionada sobre as dificuldades enfrentadas pelo fato de ser mulher, ela explica que levou algum tempo para perceber que a questão de gênero lhe impôs alguns obstáculos. Valéria conta que, na época, atribuía isso a “confusões” das pessoas, achando que eram desafios normais da profissão.

A juíza federal finaliza a conversa com um convite para reflexão sobre igualdade de gênero. “Eu deixo aqui o meu agradecimento a cada colega que, com seu exemplo ou com sua fala, me despertou para a questão da igualdade de gênero. E convido aqueles e aquelas que nunca pensaram sobre isso a conhecerem os trabalhos e dados objetivos a respeito desse tema tão relevante”, enfatizou.

 

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Registro da magistrada Valéria Caldi, titular da 8ª Vara do Rio de Janeiro. FOTO: Acervo pessoal.

1) Onde a Senhora começou e exerce a sua jurisdição?

Sempre exerci minha jurisdição no Rio de Janeiro. Sou do concurso de 1997, época em que a 2ª Região tinha muito poucos juízes e estava apenas começando seu processo de interiorização.

Tive a possibilidade de atuar como substituta e me titularizar na capital, não tive a experiência de jurisdição no interior.

Sou juíza titular da 8ª vara federal criminal no Rio de Janeiro, especializada no julgamento de crimes praticados por organizações criminosas, há 18 anos.

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Juízes federais Adriana Cruz, Osair Victor e Valéria Caldi, supervisora Iris de Faria, Paulinho da Viola, bailarina e músicos do Grupo Afoxé Filhos de Gandhi, durante o seminário“Intervenções na Zona Portuária: um novo olhar”. FOTO: Acervo JFRJ.

 

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Nas varas cíveis em que atuei tive muitos casos de impacto, era época das privatizações, então éramos demandados frequentemente a respeito de temas muito relevantes para o país do ponto de vista político. Paralelamente, as demandas de servidores públicos, direito tributário, saúde e responsabilidade civil  pululavam. Tínhamos, ainda, todo o previdenciário e execução fiscal. Em suma, embora eu não tenha trabalhado fisicamente no interior, eu atuei mais de três anos em varas que, na essência, eram como as varas mistas do interior.

Mas acho que na jurisdição criminal, onde estou há tanto tempo, é que minha atuação foi mais relevante. Casos de grande repercussão sempre se colocam à nossa frente em varas desta natureza.

 

3) Quais as dificuldades que a Senhora já enfrentou?

Muitas. As dificuldades de ordem objetiva talvez tenham sido as mais fáceis de administrar.

Tomávamos posse e éramos imediatamente colocados para trabalhar numa vara com mais de uma dezena de servidores que não conhecíamos, 20, 30 mil processos de todas as matérias, um sistema de informática jurássico, enfim, não havia a cultura institucional de hoje na qual recebemos os jovens juízes, lhes apresentamos a Justiça Federal, oferecermos um belíssimo curso de ambientação que os prepare para a árdua tarefa que vão encontrar. Logo, tive dificuldades básicas como não saber realizar tarefas no sistema informatizado, além de não ter a mínima ideia de como era gerenciar um espaço de trabalho.

Eu, por exemplo, tive a sorte de ser lotada em uma vara bem estruturada, com uma equipe de funcionários maravilhosos e um juiz que me acolheu muito bem. Mas, logo em seguida, ele foi convocado para o TRF e eu fiquei ali, sozinha, pensando: "meu Deus! O que faço agora?". Arregacei as mangas para trabalhar, cheia de boas intenções, deu tudo certo, mas hoje tenho certeza de que poderia não ter dado.

Na jurisdição criminal, enfrentei dificuldades bem maiores, decorrentes de processos de grande complexidade, envolvendo, inclusive, enfrentamentos à minha autoridade e ameaças veladas.

Mas as dificuldades de ordem subjetiva foram as mais complexas. A primeira delas foi a de incorporar o peso da responsabilidade de ser juiz, decidir a vida das pessoas é uma coisa muito séria. Eu sofria muito. E sofro até hoje, mas de uma forma mais madura. A segunda foi aprender a me policiar o tempo todo para não me iludir com a importância do cargo. O mundo do Poder Judiciário é regido por uma lógica muito hierarquizada, à qual eu não era acostumada. Somos bajulados o tempo inteiro. É "Excelência " pra cá, "Excelência" pra lá, elevador privativo, etc.  Se você não presta atenção, você começa a achar que você realmente é uma pessoa especial, diferente dos outros, superior aos funcionários e aos jurisdicionados. Este, talvez, seja um dos piores defeitos que um juiz pode ter. Dosar a autoridade, sem perder o humanismo e a sensibilidade, é fundamental na nossa profissão. A terceira foi aprender a trabalhar "sob pressão". A jurisdição criminal, especialmente, nos exige isso: administrar as demandas de prazo, as críticas severas e a exposição pública do trabalho quando ela é inevitável. É preciso criar uma casca para continuar caminhando.

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Na foto, a juíza federal Valéria Caldi media mesa de debates sobre o tema “Inter-relação entre o direito penal e a formação da sociedade brasileira: o controle das manifestações culturais no início do século XX”. FOTO: Acervo JFRJ.

 

4) A Senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

Sim, mas, por incrível que pareça, não tive essa percepção no momento em que os fatos ocorreram. Só hoje, olhando retrospectivamente, é que tenho consciência de que sim, minha condição de mulher me impôs dificuldades profissionais, embora eu as tenha enfrentado como naturais.

Quando tomei posse, tinha apenas 26 anos. Já era casada e tinha dois filhos pequenos, mas era uma menina. Não tinha nem tempo para pensar em outra coisa que não fosse: estudar Direito, trabalhar, tomar conta dos filhos e da casa. Inserida num mundo de cultura machista, eu era o exemplo clássico da mulher que fazia dupla, tripla jornada. E fazia bem porque era jovem, tinha muita disposição, boa formação, capacidade de trabalho e nenhuma consciência feminista.

No trabalho, a necessidade de reafirmação da minha posição era uma constante. Era chamada de "minha filha" em audiência, era frequentemente questionada em minha autoridade em circunstâncias nas quais jamais isso poderia acontecer, e eu não percebia. Sabe, eu achava que aquilo fazia parte do trabalho. Que era assim mesmo com todo o mundo. Atribuía isso a "confusões" das pessoas, que não entendiam como eu podia ser juíza tão jovem. No fundo, era uma forma de sublimar a questão e, ao mesmo tempo, me valorizar: “Ora, como eu, que já tinha conseguido entrar tão jovem numa carreira, ainda queria ser reconhecida de plano como a juíza, sem nenhum questionamento?".

A própria escolha de uma vara criminal foi pautada pela minha condição de mulher e pela ausência de qualquer política institucional de acolhimento feminino.  Era a última opção de escolha na capital, era um ambiente masculino (havia poucas juízas mulheres em varas criminais), eu nunca tinha visto um processo criminal na minha frente, tinha pânico da matéria. Não tinha nenhum desejo por aquilo. Tirei um mês de férias não para ficar com meus filhos, mas sim para reestudar direito penal e processo penal antes de assumir a vara e não fazer feio. A cobrança por qualidade no desempenho, além da esperada dos homens, era uma coisa que eu vivenciava sem maiores questionamentos. Por sorte, me apaixonei pela matéria e hoje me dou muito bem com o Direito Penal.

Durante anos, fiz o discurso de que "nunca sofri discriminação nem nunca tive dificuldades na profissão pelo fato de ser mulher". Ou seja, eu era um E.T. Ou uma deusa, né?  Porque, infelizmente, se ainda hoje isso é simplesmente impossível, imagina 10, 15, 20 anos atrás.

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A juíza numa das aulas que ministra online. FOTO: Reprodução Youtube.

 

5) O que é, a partir da experiência da Senhora, ser juíza federal?

 Ser juíza federal é exercer um papel de pacificação social importantíssimo, distribuindo justiça de forma humanista. .

 

6) Na opinião da Senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

Sim, desde que as instituições públicas e privadas compreendam a necessidade de estabelecer políticas para isso e que nós, mulheres, também consigamos espraiar para os ambientes familiar e acadêmico a cultura da igualdade de gênero. 

 

7) O que a Senhora sonha enquanto mulher magistrada?

Sonho com um mundo sem desigualdades em todos os aspectos. Só assim a Justiça se faz plena.

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Os magistrados Valéria Caldi, Adriana Cruz, Osair Victor e Frederico Montedonio recebem as representantes da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP-RJ) Mariana Almeida e Ana Faulhaber. FOTO: ACOI/TRF2.

 

8) Qual a mensagem a Senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

Que não desistam. Que as instituições estão muito mais evoluídas do que quando eu entrei. Que o grupo de juízas mulheres é cada vez mais numeroso e consciente da sua importância no trabalho de erradicação da desigualdade de gênero e na realização da Justiça.

 

9) Este é um espaço livre para a Senhora deixar alguma mensagem ou falar sobre algo que acredite que não tenha sido contemplado nas perguntas anteriores.

Eu deixo aqui o meu agradecimento a cada colega que, com seu exemplo ou com sua fala, me despertou para a questão da igualdade de gênero. E convido aqueles e aquelas que nunca pensaram sobre isso a conhecerem os trabalhos e dados objetivos a respeito desse tema tão relevante.

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