O Projeto “Conhecendo as Juízas Federais” traz ao público uma imagem de quem são as juízas federais e ajuda a saber como elas percebem a carreira quando se trata de questões de gênero. As histórias são contadas por meio entrevistas com as magistradas federais.

Conhecendo as Juízas Federais #8 – Therezinha Cazerta

 

Retorne ao sumário do "Conhecendo as Juízas Federais"

 

O “Conhecendo as Juízas Federais” deste mês traz a desembargadora federal Therezinha Cazerta, atual presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Therezinha iniciou a carreira na magistratura em 1988, quando foi aprovada no último concurso nacional para a Magistratura Federal, substituídos hoje por concursos regionais.

Reunindo mais de 30 anos no exercício da magistratura, a desembargadora começou a atuar desde o início como titular da Vara de Santos (SP). “Naquela época, a carreira era bem mais breve do que é hoje, e, depois de dez anos em Santos, fui promovida por antiguidade para o Tribunal, onde estou há quase vinte e um anos”, contou.

A magistrada, além da ampla bagagem administrativa - já foi coordenadora de Subseção e de Juizados, Corregedora e agora ocupa o cargo máximo do TRF3 - também possui ampla experiência na atividade jurisdicional. “Santos é uma cidade portuária e lá eu trabalhei com questões aduaneiras muito interessantes e com grandes apreensões de mercadorias”, destacou.

Das experiências compartilhadas pela magistrada, uma chama mais atenção: a participação dela na primeira grande operação da Justiça Federal. “Eu fui relatora de um caso que foi realmente muito marcante na minha carreira, a Operação Anaconda, que foi a primeira grande operação da Justiça Federal. Não se tinha nenhuma experiência anterior, já que nenhum dos Tribunais Federais havia julgado uma ação penal originária”, descreveu.

Finalizando a conversa, Therezinha Cazerta externa uma vontade sobre o futuro. “Eu pretendo voltar à jurisdição, porque acredito que ainda tenho muito a fazer. Há sempre novos casos interessantes e algo novo a aprender. Como magistrada no exercício da jurisdição, quero voltar a ter mais tempo para estudar e me dedicar aos livros”, concluiu.

Leia a entrevista completa.

 

1) Onde a senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

Eu iniciei em São Paulo, capital, em 1988, aprovada que fui no último concurso nacional para a Magistratura Federal. Naquela época, o juiz federal ingressava na carreira como juiz titular ou auxiliar, conforme a classificação no concurso. Iniciei como titular da 2ª Vara de Santos. Contudo, como a vara ainda não estava instalada, iniciei minhas atividades em função de auxílio na capital, onde permaneci seis meses em uma vara criminal. Quando instaladas as varas em Santos, eu assumi naquela subseção uma vara de competência mista. Naqueles tempos, a carreira era bem mais breve do que é hoje, e, depois de dez anos em Santos, fui promovida por antiguidade para o Tribunal, onde estou há quase vinte e um anos.

 Foto 1 Cazerta
Em 26 de fevereiro de 1988, a então juíza auxiliar toma posse na Magistratura Federal, no Tribunal Federal de Recursos (TFR), em Brasília; foto: Acervo pessoal.

 

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Quando se fala em atuação, geralmente se pensa em casos jurisdicionais, mas eu não posso deixar de mencionar a experiência administrativa que, para mim, foi muito rica.

Eu fui diretora de subseção em Santos, Coordenadora dos Juizados Especiais Federais da 3ª Região, Corregedora Regional e agora sou Presidente do Tribunal. Em todas essas atividades, me deparei com muitas situações extremamente complexas e bastante interessantes. Foi uma fase importante da minha vida profissional. É uma experiência inigualável trabalhar na administração da Justiça, porque nos traz uma vivência totalmente diferente da jurisdicional, que nos obrigada a desenvolver habilidades novas e nos propicia um conhecimento singular da estrutura da instituição.

Por exemplo, quando coordenadora da Subseção de Santos, o Poder Judiciário ainda não estava informatizado, então conseguimos junto à Receita Federal – procedimento inusual à época - um lote de equipamentos eletrônicos apreendidos, contendo várias peças de computador. Havia uma única máquina montada, bastante moderna, e que acabou sendo requisitada pela Diretoria do Foro. Diante da situação, criamos um laboratório no Fórum, onde um funcionário com algum conhecimento técnico (não havia setor de informática e, menos ainda, servidores especializados), montou vários computadores a partir das peças apreendidas. Os juízes se cotizaram e pagaram as peças faltantes e, assim, conseguimos disponibilizar vários computadores para as secretarias da Justiça Federal de Santos, que foi a primeira subseção a trabalhar com essa tecnologia.

Na atividade jurisdicional, também tive experiências marcantes. Santos é uma cidade portuária e lá eu trabalhei com questões aduaneiras muito interessantes e com grandes apreensões de mercadorias em trânsito ilegal.
Lembro-me de um caso de apreensão de contêineres com significativa quantidade de carne congelada prestes a ser exportada irregularmente, em que tivemos que realizar o leilão do produto apreendido, em razão do iminente risco de deterioração. Foi um processo complexo, com vários recursos interpostos. Eu ainda não tinha muita experiência e não havia precedentes na matéria. Tanto tempo atrás, a alienação antecipada de bens não era um procedimento comum, não existia regulamentação a propósito e, na base da coragem, realizamos um trabalho inovador. Ocorriam também apreensões das mais variadas mercadorias, além de estupefacientes em tráfico internacional, escamoteados no interior das mercadorias, das formas mais inusitadas e inimagináveis, e consequentes prisões e processos criminais.

Também em Santos atuei no caso de um pequeno lobo-marinho, que encalhou na praia, arrastado pelas correntes marítimas, longe do seu habitat natural. Pouco tempo antes, coincidentemente, havia morrido o leão-marinho Macaé, que vivera muitos anos no Aquário de Santos. A população, então, adotou aquele animalzinho, de espécie semelhante, logo apelidado Macaezinho, levando-o ao tanque antes ocupado por Macaé. Ação ajuizada para que o mamífero pinípede fosse devolvido ao mar, contra o clamor popular, realizei a primeira inspeção judicial da minha carreira. Decisão difícil, nem fui eu que prolatei a decisão final, mas o animal foi mantido no Aquário de Santos por 16 anos, até sua morte, pouco tempo atrás. Os dois animais estão expostos, taxidermizados, no Museu de Pesca de Santos.

Já no Tribunal, eu fui relatora de um caso realmente marcante na minha carreira, a Operação Anaconda, que foi a primeira grande operação da Justiça Federal. Não havia precedentes, já que nenhum dos Tribunais Federais havia julgado uma ação penal originária. Foi um aprendizado para todos, um processo complexo, rumoroso, trabalhoso; eram muitos réus, entre juízes federais, delegados da polícia federal, policiais federais, advogados... Como havia muitas prisões, a ação teve que ser processada com celeridade, e em um ano concluímos a instrução e julgamos a ação penal.

O processo foi extremamente cansativo, já que foram muitas as medidas cautelares determinadas, havia grande acervo probatório a examinar, entre apreensões e interceptações telefônicas, foram tomados cerca de cem depoimentos, houve a interposição de inúmeros recursos e habeas corpus e o julgamento pelo Órgão Especial durou três dias e uma noite inteira. Além disso, a presença de juiz como réu torna o processo extremamente delicado, difícil e doloroso.

 

3) Quais as dificuldades que a senhora já enfrentou? A senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

A bem da verdade, na Justiça Federal, ao menos na 3.ª Região, não posso dizer que haja qualquer tipo de discriminação em detrimento da mulher. Nunca senti e nem tive notícia.

Nós, magistradas federais, enfrentamos as dificuldades próprias da mulher profissional – e, especialmente, da profissional magistrada –, já que não é fácil conciliar as atividades profissionais com a vida familiar, social e acadêmica. Além do estresse e da intensa dedicação que são próprios da Magistratura, normalmente se ingressa na Justiça Federal em uma idade em que se está constituindo família. Assim, muitas vezes com filhos pequenos, somos levadas pela profissão a trabalhar em regiões distantes. Essa é uma fase difícil da carreira.

Mas, antes de entrar na Magistratura Federal, eu sofri a discriminação que era muito própria da época, em outros concursos. As mulheres não passavam nos concursos para Magistratura, para o Ministério Público... Eu e outras colegas da época fizemos concursos em que ficava claro – e até dito abertamente – que seria muito improvável a aprovação de uma mulher – mais ainda se fosse casada. Se fosse casada com juiz ou promotor, simplesmente não passaria, cheguei a ouvir isso diretamente de alta autoridade de instituição da área jurídica.

Como eu não tinha a idade mínima para o concurso da Justiça Federal, eu me inscrevia em outros concursos. Não ser aprovada por questões de gênero gerava muita frustação, inconformismo e sensação de injustiça, sabendo-se preparada e capaz.

As pessoas me perguntavam por que eu insistia, se não seria aprovada, e eu respondia que, ainda que eu não colhesse os frutos daquela batalha, as futuras gerações de mulheres poderiam viver num ambiente menos desigual. Se nós não tivéssemos travado essa luta, nada mudaria. E eu acredito que, de lá para cá, muita coisa mudou, ainda que nós saibamos que, em alguns setores e em algumas regiões, ainda existe resistência ao ingresso ou à promoção de mulheres na carreira. Porisso é preciso estarmos sempre alertas e ativas.

 

Foto 2 CazertaTherezinha Cazerta durante a cerimônia de posse na qual foi promovida por antiguidade para compor o Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região; foto: Acervo pessoal.

 

4) O que é, a partir da experiência da senhora, ser magistrada federal?

É clichê dizer que a magistratura é um sacerdócio, mas é praticamente isso mesmo. É uma vida de muita dedicação, de muito sacrifício e de muita autovigilância, porque é uma atividade que acarreta muito estresse e que exige demais. Nós, mulheres, devemos ter cuidados próprios pela nossa condição de mulher, de mãe, de esposa, de gestora do lar e de magistrada. Devemos procurar nos manter em equilíbrio, imprescindível ao exercício da função jurisdicional.

É importante encontrar alguma válvula de escape – que seja música ou alguma outra manifestação artística, que seja o prazer de uma viagem, uma boa leitura... É muito difícil se sustentar com dedicação total ao trabalho sem esses momentos de lazer.

Mas, por outro lado, é uma carreira extremamente gratificante, uma profissão encantadora. Cada decisão que proferimos, buscando levar justiça aos que têm direito, principalmente aos mais carentes, nos dá a força para continuar.

E, muitas vezes, nós acabamos nos encontrando nesta função quando menos esperamos. Eu, por exemplo, não queria ser juíza, eu queria ser pianista. Ingressei na Faculdade de Direito por acaso, para continuar a estudar enquanto não concluía o Conservatório – a ideia era, depois de concluídos os estudos de piano, seguir para a Faculdade de Música. Porém, no primeiro ano, fiquei encantada pelo Ministério Público e, ao final, segui a carreira da Magistratura. E não me arrependi um só segundo: já no primeiro mês de atividade eu estava apaixonada pelo que fazia e nunca mais pensei em fazer outra coisa.

 

5) Como foi administrar a Subseção Judiciária de Santos?

Não foi uma tarefa fácil, especialmente àquela altura em que, como eu disse, não contávamos com computadores - na verdade, nem mesmo boas máquinas de escrever. Nós trabalhávamos com muitas restrições. A Justiça Federal não possuía a infraestrutura de hoje, e, especialmente nas subseções – que à época eram apenas três, no estado de São Paulo –, nós tínhamos muita dificuldade de obter o mínimo necessário para nosso trabalho diário. Então faltava tudo. E, onde falta tudo, deve sobrar disposição e criatividade. Era basicamente como se trabalhava e especialmente com uma união muito forte entre os juízes e os servidores, todos trabalhando em prol da Justiça Federal. Até mesmo por essas enormes dificuldades, foi uma experiência ímpar, porque é na dificuldade que realmente aprendemos e evoluímos.

Hoje, como Presidente do Tribunal, eu também enfrento dificuldades – com muito mais recursos, é claro, mas também com desafios muito maiores. É necessária uma grande dose de paciência, de diálogo, de disposição, muito trabalho e muita criatividade. É preciso escolher as pessoas certas para o necessário assessoramento, mas estar presente a todo o momento em todas as atividades. Eu sou muito grata por ter tido a oportunidade de viver todas essas experiências na Justiça Federal.

 

6) Na opinião da senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

Eu acho que, a rigor, não é possível (risos). Eu sempre que tentei fazer muitas coisas, algumas delas eu não fiz muito bem. Então eu admiro muito as colegas que conseguem conciliar Magistratura, academia e família. Tenho muito respeito por elas, mas reputo extremamente difícil e eu efetivamente não tive condições de fazê-lo. No início da minha carreira como juíza, eu tinha um filho pequeno e, pela minha natureza de me entregar muito ao que eu estou fazendo, foi impossível conciliar as três funções. Eu tive um início de carreira acadêmica, fiz pós-graduação, gostaria de ter prosseguido, mas preferi declinar. Optei por me dedicar “somente” à carreira de magistrada e à família, com o máximo de empenho, e às viagens, que nunca dispensei porque alimentam a alma.

 

Foto 3 CazertaNa solenidade de abertura do 3º Fórum Nacional de Execução Fiscal (FONEF), realizado pela Ajufe, a desembargadora federal Therezinha Cazerta apresentou projeto que, por meio do sistema Processo Judicial Eletrônico (PJe), facilitará a extinção de execuções fiscais; foto: Fabio Risnic/Ascom Ajufe.

 

7) O que a senhora sonha enquanto mulher magistrada?

Eu pretendo voltar à jurisdição, porque acredito que ainda tenho muito a fazer. Há sempre novos casos interessantes e muito a aprender. Mas, como carreira, eu já fiz tudo que gostaria de ter feito. Eu não digo que fiz tudo, mas exerci todas as funções que me interessavam. Com a Presidência do Tribunal, esse ciclo se encerra, e me sinto plenamente realizada. Como magistrada no exercício da jurisdição, quero voltar a ter mais tempo para estudar e me dedicar aos livros, além de poder desfrutar de horas de lazer.

 

8) Qual a mensagem a senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

Entreguem-se totalmente. Só assim se consegue fazer um bom trabalho. Preocupem-se mais com a qualidade do que com a quantidade. Procurem fazer vocês mesmas o seu trabalho. Vivemos uma nova era, em que o juiz deve ser “gestor” e acaba por delegar muito – o que pode ser um erro grave e perigoso. O bom juiz deve saber fazer tudo o que é feito em uma vara. Ele tem que saber o que acontece dentro da sua unidade e como está o andamento dos seus processos, o clima organizacional e o desempenho de sua equipe. Isso parece óbvio, mas infelizmente não tem sido sempre assim. É preciso recuperar, em alguma dose, a metodologia antiga, em que o trabalho era mais artesanal.

Quando eu entrei na Justiça Federal, quando muito, nós tínhamos um servidor para atuar no gabinete, a quem cabia digitar sentenças e fazer poucas adaptações em sentenças prontas, mas eram os juízes os responsáveis por elaborar suas sentenças e decisões, por todo o seu trabalho intelectual. Hoje, em razão do volume, obviamente não pode mais ser assim, mas também não há que ser o oposto disso. O juiz deve realizar pessoalmente o seu trabalho, as suas decisões e as suas sentenças. Essa é uma mensagem que eu gostaria de deixar às futuras magistradas.

 

Foto 4 CazertaTherezinha Cazerta na sessão solene em que assumiu a presidência do TRF3, para o biênio 2018-2020; foto: ACOM/TRF3.

Tags:

Ajufe Mulheres