O Projeto “Conhecendo as Juízas Federais” traz ao público uma imagem de quem são as juízas federais e ajuda a saber como elas percebem a carreira quando se trata de questões de gênero. As histórias são contadas por meio entrevistas com as magistradas federais.

Conhecendo as Juízas Federais #3 - Adriana Cruz

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Dando sequência ao projeto “Conhecendo as Juízas Federais”, apresentamos nesta edição a história de vida da juíza federal Adriana Cruz, que atua como titular da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, especializada em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro.

Adriana tomou posse na Justiça Federal, em Brasília, no ano de 1999 e, desde então, enfrentou grandes desafios na magistratura. Das experiências na carreira, destaca o processo de titularização, em Colatina, no Espírito Santo, em 2009, como “um momento muito especial”. Em 2015, foi convocada como magistrada instrutora no Gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso.

Sobre as dificuldades que já enfrentara na vida por questões de gênero, Adriana Cruz destaca que todas as mulheres vivem “em ambientes hostis. Umas mais, outras menos. A diferença para a superação e sobrevivência é o aumento da nossa resiliência, ciência de nós mesmas, nosso empoderamento interno e nossa rede de proteção e apoio”, explicou.

Adriana Cruz esclarece também que quando as mulheres conseguem acesso a postos de poder, os mecanismos institucionalizados do machismo e do racismo “apenas se alteram e sofisticam, mas estão lá do mesmo jeito. Às vezes grosseiros da mesma forma.  Nossa presença incomoda, traz desconforto, e temos que ter consciência desses mecanismos. Convivemos com pessoas que negam nossas dores”, compartilhou. E continuou. “Na impossibilidade de nos invisibilizar com os mesmos mecanismos utilizados em outros espaços, já que estamos em uma posição empoderada, o confronto se dá pela tentativa de silenciamento das nossas pautas ou de nos etiquetar como militantes, conferindo a essa referência um tom pejorativo”.

Citando a acadêmica brasileira Djamila Ribeiro, com base em seu recente livro, “O que é lugar de fala?”, Adriana ainda faz um panorama da sociedade moderna. “A existência de indivíduos reacionários no meio das minorias, a atenção que se dá a esse dado da realidade, não apaga a estrutura de opressão que incide também sobre essa subjetividade capturada. Mesmo que não tenha consciência disso. O fato de uma  pessoa sequestrada ser acometida da ‘síndrome de Estocolmo’ não a torna livre, apenas fortalece os muros da sua prisão”, ressaltou.

A juíza federal conclui a conversa deixando a seguinte questão para reflexão: “A desigualdade de gênero e raça é uma realidade e o juiz ou juíza contemporâneo que nega esse dado não está prestando atenção corretamente ao trabalho que precisa ser feito”.

 

1) Onde a Senhora começou e exerce a sua jurisdição?

Tomei posse na Justiça Federal em Brasília em 1999 e atualmente atuo no Rio de Janeiro, capital.

A juíza federal Adriana Cruz em registro da assessoria de comunicação da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (SJRJ), durante o seminário “Intervenções na Zona Portuária: um novo olhar”. FOTO: ASCOM/SJRJ.

 

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Em 2001 me removi para o Rio de Janeiro e atualmente sou titular da 5ª Vara Federal Criminal da Capital, especializada em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro. A minha titularização em Colatina/ES, em 2009, foi um momento muito especial da minha carreira, um período de grandes desafios e muito aprendizado. Em 2015 estive convocada como magistrada instrutora no Gabinete do Ministro Luís Roberto Barroso.

Adriana Cruz (de vermelho) com palestrantes do seminário “Intervenções na Zona Portuária: um novo olhar”, uma iniciativa da Justiça Federal do Rio de Janeiro que contou com a organização e colaboração da magistrada, realizado no último dia 21 de agosto. FOTO: ASCOM/SJRJ.

 

3) Quais as dificuldades que a Senhora já enfrentou?

Sob o aspecto material, meus pais me deram todas as condições necessárias para estudar com tranquilidade. Eles, sim, enfrentaram muitas dificuldades e principalmente meus avós. Minha bisavó, que nasceu no ano da abolição da escravatura, foi faxineira na Assembleia Legislativa da Bahia e repetia como um mantra que o estudo era o único caminho para pessoas como nós.

Estudar em um colégio particular, de referência na minha época, foi marcante em minha trajetória, sob vários aspectos. Por um lado, fiz amigos de vida inteira e tive acesso a um ensino de qualidade a que a maior parte das mulheres negras não tem no país. Registro que o ensino de qualidade não é negado apenas às mulheres negras, mas definitivamente nós estamos submetidas a diversas camadas de exclusão, que agravam a falta de acesso à educação.  Por outro lado,  convivi como única negra entre meus colegas por muito tempo. Em um determinado momento, se fomos dois ou três alunos negros na escola, foi muito. Crescer ouvindo que seu cabelo é ruim, que seus traços são feios. Ver a história dos seus ancestrais  comprimida em meia hora de um currículo de anos e circunscrita ao fato de que parte deles foi escravizada é extremamente perverso na construção da subjetividade de qualquer ser humano. Certa vez um professor, ao me ver rindo no recreio, perguntou que graça a vida podia ter pra mim, já que eu era mulher, negra e tijucana.

Juntamente a Adriana Cruz, magistrados prestigiam a instalação na sede da Corte de um dispositivo para distribuição de material de divulgação do programa SOS Crianças Desaparecidas. Na foto, juiz federal Osair Victor de Oliveira Junior – representando a diretora da SJRJ, juíza federal Helena Elias Pinto; juíza federal Aline Araújo; a diretora geral do TRF2, Lúcia Pedroso; o presidente do TRF2, desembargador federal André Fontes; Lenivanda de Souza Andrade, mãe de Gisela Andrade de Jesus, que desapareceu em 2010, aos oito anos de idade; o gerente do SOS Crianças Desaparecidas, Luiz Henrique Oliveira; e a juíza federal Natalia Tupper. FOTO: ASCOM/SJRJ.

 

4) A Senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

Todas nós, mulheres, vivemos em ambientes hostis. Umas mais, outras menos. A diferença para a superação e sobrevivência é o aumento da nossa resiliência, ciência de nós mesmas, nosso empoderamento interno e nossa rede de proteção e apoio.

Quando acessamos postos de poder os mecanismos apenas se alteram e sofisticam, mas estão lá do mesmo jeito. Às vezes grosseiros da mesma forma.  Nossa presença incomoda, traz desconforto, e temos que ter consciência desses mecanismos. Convivemos com pessoas que negam nossas dores. Na impossibilidade de nos invisibilizar com os mesmos mecanismos utilizados em outros espaços, já que estamos em uma posição empoderada, o confronto se dá pela tentativa de silenciamento das nossas pautas ou de nos etiquetar como militantes, conferindo a essa referência um tom pejorativo. Eu poderia mencionar episódios concretos aos quais, certamente, meus colegas homens nunca foram expostos, como questionamentos públicos no ambiente de trabalho sobre minha capacidade reprodutiva, já que não tenho filhos, referências depreciativas aos meus cabelos crespos trançados ou ao fato de eu ser solteira. Mas não quero jogar luz sobre isso, porque são sintomas de um mal mais profundo e danoso e que transcende o plano individual. É essa a reflexão que nós, como juízes e juízas, e como Poder Judiciário, precisamos fazer.

Magistrados do Rio de Janeiro receberam a visita de Mariana Alexandre Almeida, diretora da Unidade Materno Infantil (UMI) – que funciona dentro da penitenciária feminina Talavera Bruce, em Bangu – e de Ana Christina Faulhaber, coordenadora de Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBT. A reunião ocorreu no Foro da Seção Judiciária do Rio de Janeiro (SJRJ), onde as visitantes puderam conhecer a estrutura e funcionamento da Justiça Federal. Na foto, da esquerda para a direita: juíza federal Adriana Cruz, as visitantes Mariana Alexandre e Ana Faulhaber, o juiz federal Osair Victor, a juíza federal Valéria Caldi e o juiz federal substituto Frederico Montedonio. FOTO: ACOI/TRF2.

 

5) O que é, a partir da experiência da Senhora, ser juíza federal?

Ser juíza federal, para mim, é exercitar a escuta, a alteridade. É ter a consciência permanente de que meus erros não são só meus. É me questionar e duvidar de minhas certezas continuamente, em prol de prestar a melhor jurisdição possível a serviço da cidadania. E lembrar, sempre, que o ser humano e a preservação de sua dignidade são o fim primeiro e último de fazer o que fazemos.

A juíza federal Adriana Cruz em reunião da Procuradoria-Geral da Justiça que discutiu a luta da mulher, sobretudo a negra, por postos de trabalho e pela ocupação de espaços de poder. Foto: MPBA.

 

6) Como é administrar uma Seção ou Subseção Judiciária?

Minha experiência nesse sentido foi breve, na ocasião em que estive em uma vara única no interior. Na minha vivência o maior desafio foi lidar, de forma ampliada, com as mesmas dificuldades que temos na gestão das varas: o gerenciamento de pessoas. Os servidores da Justiça Federal são altamente qualificados e dedicados, mas muitas vezes trabalham sob condições adversas e sem o reconhecimento devido.

 

7) Na opinião da Senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

Recentemente assisti a uma palestra sobre gerenciamento do tempo e a especialista dizia que o tempo é flexível e se acomoda conforme nossas prioridades. A conciliação é possível, na minha opinião até certo ponto de equilíbrio. Sempre com atenção ao estabelecimento de prioridades. Para mim, a atividade acadêmica é essencial para que eu possa desenvolver reflexões que não são próprias ao exercício da jurisdição, embora com ela se relacionem. Tenho a necessidade vital de circular em ambientes que me estimulem a pensar para além da minha zona de conforto. Minha família é meu chão. Sem eles, não vou a lugar algum. Portanto, na minha vivencia, não é propriamente uma questão de conciliação, mas uma condição de existência.  

 

8) O que a Senhora sonha enquanto mulher magistrada?

Eu sonho um Judiciário plural e impregnado do sentido de alteridade. Eu trabalho para isso.

 

9) Qual a mensagem a Senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

A mensagem que eu deixaria seria: reflitam sobre a razão pela qual sonham esse sonho. E lembrem que, parafraseando Simone de Beauvoir,  nós nos tornamos juízas. É um processo contínuo, não um fim em si mesmo.

 

10) Este é um espaço livre para a Senhora deixar alguma mensagem ou falar sobre algo que acredite que não tenha sido contemplado nas perguntas anteriores.

Eu gostaria de sublinhar o processo de invisibilização e silenciamento de alguns a que já me referi antes. Penso ser importante pontuar isso de forma bem marcada, porque externa ou mesmo internamente ao Judiciário, pode haver aqueles que pensam que por estarmos nós, mulheres, brancas e negras, em posição de poder, estamos a salvo e imunes de determinados ataques à nossa subjetividade e forma de estar no mundo. Não é assim, infelizmente.

É importante jogar luz sobre as armadilhas que se prestam a diminuir o valor de nossa presença utilizando o discurso de mulheres, brancas e negras, que deslegitimam a luta feminista e antirracista ou, ainda, que ratificam os mecanismos de opressão existentes. O combate a universalização redutora do discurso das pessoas negras também é uma frente de reflexão, pois a diversidade nos habita, como nos demais.  Como acentua Djamila Ribeiro em seu mais recente livro, O que É Lugar de Fala, a existência de indivíduos reacionários no meio das minorias, a atenção que se dá a esse dado da realidade, não apaga a estrutura de opressão que incide também sobre essa subjetividade capturada. Mesmo que não tenha consciência disso. O fato de uma  pessoa sequestrada ser acometida da “síndrome de Estocolmo” não a torna livre, apenas fortalece os muros da sua prisão.

Não é incomum, também, que as pessoas busquem nos acomodar em um espaço de conforto para elas. Assim, nos colocam uma etiqueta de mulher ou de mulher negra e nos reduzem a isso. No meu caso, ser mulher negra me constitui, mas não me define ou reduz. Sou mulher negra e muitas outras coisas. Falo de racismo nos espaços que escolho, mas meus interesses não se circunscrevem a isso e não autorizo que me pautem e limitem nessa temática.   Toda essa dinâmica requer de nós, mulheres, em especial mulheres negras magistradas, uma sabedoria muito grande para confrontar, quando necessário, mas também para construir pontes e identificar aliados, que existem e estão prontos e dispostos a caminhar conosco. É um desafio diário, que demanda energia e cansa. Mas quando penso em desistir, em viver uma vida de avestruz e negação, constato que isso não é uma opção. Porque essa opção seria a do aniquilamento e morte. Portanto, repito, precisamos nos fortalecer internamente e construir nossas redes de fortalecimento e apoio mútuo. A desigualdade de gênero e raça é uma realidade e o juiz ou juíza contemporâneo que nega esse dado não está prestando atenção corretamente ao trabalho que precisa ser feito.

Como palestrante do “II Seminário Mulheres no Sistema de Justiça – Trajetórias e desafios”, realizado pela Ajufe entre os dias 7 e 8 de março de 2018, no auditório do Conselho da Justiça Federal (CJF). Na ocasião, Adriana apresentou diversos dados sobre a atuação das mulheres negras no sistema Judiciário do País. FOTO: André Coelho/ASCOM Ajufe

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