O Projeto “Conhecendo as Juízas Federais” traz ao público uma imagem de quem são as juízas federais e ajuda a saber como elas percebem a carreira quando se trata de questões de gênero. As histórias são contadas por meio entrevistas com as magistradas federais.

Conhecendo as Juízas Federais #21 – Cristiane Conde Chmatalik

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A juíza federal Cristiane Conde Chmatalik, com mais de 20 anos de carreira, é a nova entrevistada do projeto Conhecendo. No bate-papo, a magistrada ressaltou atuações relevantes, como um dos primeiros pleitos contra a União para a realização de operação de mudança de sexo, além do exercício da jurisdição em vários mutirões da Justiça.

Sobre esses mutirões, a juíza conta que a participação a “ensinou a ver cada processo como uma pessoa e uma família real, precisando de justiça, e não apenas mais um número ou processo a ser baixado”.

Para Cristiane, o ofício de julgar demanda “não apenas habilidade jurídica, mas conhecimento social, cultural e psicológico”, o que torna o ato de decidir bastante singular.

Para o futuro, a magistrada salienta que enquanto juíza está trabalhando “há alguns anos por uma magistratura mais plural e inclusiva”. Diante disso, ela tem certeza que quem entrar na carreira atualmente vai se sentir muito mais acolhido.

Leia a entrevista.

 

1) Onde a Senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

Eu comecei a trabalhar no serviço público muito nova. No ano em que me formei na PUC-Rio passei para Fiscal do Município do Rio de Janeiro. Por anos, fui cedida a vários órgãos jurídicos do Governo do RJ, fiz mestrado em Direito Público na UERJ e, depois, fui Procuradora do Estado do RJ. Quando assumi na PGE, já estava fazendo o concurso da Magistratura Federal, por ter um viés mais de direito público. Quando eu passei na Justiça Federal, achei que valeria a pena trocar, aconselhada por três colegas que estavam na mesma situação que eu: o saudoso Luiz Eduardo Pimenta, e os colegas Paulo Espirito Santo e Valter Shuenquener.

Meu início na Justiça Federal foi na Avenida Venezuela, no Rio. Cerca de 6 meses após minha chegada, em 2001, foram instalados os Juizados Especiais Federais, e o titular da Vara que eu atuava preferiu virar Juizado e eu fui junto, tornando-me a primeira juíza substituta dos 5 Juizados então recém instalados na Capital do Rio.

Era tudo muito novo e havia muito trabalho envolvido, mas foi de grande aprendizado. Permaneci 14 anos em Juizado e eu gostava muito da atuação mais efetiva e com grande cunho social.

 

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A sessão inaugural da 1ª Turma Recursal permanente capixaba – e em todo o Brasil – foi conduzida pelos juízes federais Boaventura João Andrade (presidente), Pablo Coelho Charles Gomes (membro efetivo), Bruno Dutra e Cristiane Conde Chmatalik (suplentes). (outubro de 2012 - Acervo magistrada)

 

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Ao longo dos mais de 20 anos de carreira, atuando em Juizado, Turma Recursal, Vara Cível Previdenciária, Tributária e de Servidor Público, tive alguns casos bem interessantes. Foram questões que envolveram as matérias tributária, previdenciária, alfandegária, saúde e até mesmo criminal, competência que só atuei em plantões.
Posso destacar, por exemplo, um dos primeiros pleitos contra a União para realização de operação de mudança de sexo; outra ação que para mim teve relevância foram as primeiras ações de trabalhador rural que eu realizei no Espírito Santo; também alguns casos de dano moral, um envolvendo uma acusação de racismo de um professor da UFES e outra envolvendo assédio moral, também de um professor da UFES com suas alunas. São situações que envolvem não apenas habilidade jurídica, mas conhecimento social, cultural e psicológico na hora de decidir, portanto de bastante singularidade e que geram uma repercussão social grande.

Recentemente, tive uma questão que envolveu direito previdenciário e tributário questionando o afastamento das grávidas do local de trabalho durante a pandemia e a possibilidade do INSS cobrir esses salários e não o empregador, como forma de compensação pelo Governo Federal.

Atuei, também, como juíza convocada pelo TRF2 para coordenar o Núcleo de Soluções de Conflitos e Cidadania, com o intuito de sedimentar a conciliação como forma de resolução adequada de conflitos e vi a solução através de negociação assistida de muitos casos complexos, como, por exemplo, a questão da moradia e o Sistema Financeiro de Habitação, em situações bem emocionantes para as partes envolvidas, assim como mutirões de benefícios de aposentadoria rural.

A participação em inúmeros mutirões me ensinou a ver cada processo como uma pessoa e uma família real, precisando de justiça, e não apenas mais um número ou processo a ser baixado.

Outra atuação na minha carreira, bastante relevante, foi na Justiça Eleitoral, compondo o Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. A função de magistrada eleitoral é muito importante para a sustentação da democracia e, ao meu ver, ser da Justiça Federal e de fora do Estado, possibilitou-me uma atuação bem independente, sendo a experiência de atuar num colegiado enriquecedora.

 

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A magistrada durante o período em que atuou junto ao Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. (2018 - Acervo magistrada)

 

3) Quais as dificuldades que a Senhora já enfrentou?

O início da carreira é de felicidade quando se passa num concurso tão concorrido, mas envolve muitas dificuldades na prática. A Justiça Federal do Rio de Janeiro estava crescendo com grande dificuldade orçamentária. Fui trabalhar numa vara que, apesar de ter o espaço para receber um juiz substituto, nunca tinha tido um, então não havia computador, por exemplo, tive que levar de casa o meu pessoal. Ainda não havia divisão de servidores ou de processos automaticamente a serem distribuídos.

As regras de substituição também eram confusas e às vezes eu recebia, por fax pela Corregedoria, uma designação para atuar no dia seguinte no interior e fazer várias audiências com réus presos. Não dava para se comprometer, por exemplo, com outros compromissos locais, como dar aula com compatibilidade de horário, pois a qualquer momento eu poderia ser lotada em auxílio em outros locais.

Algumas outras dificuldades ao longo do tempo estão relacionadas com a forma como a carreira se desenvolve. Começamos em determinado local, próximo de casa, e quando titularizamos, vamos para locais bem afastados.

Hoje eu percebo que essas questões de movimentações na carreira refletem o fato da Magistratura Federal ter sido, e continuar sendo, apesar de menos na primeira instância, uma carreira eminentemente masculina, em que por uma questão cultural a esposa acompanha o marido e não o contrário.

Há uma grande dificuldade para se compatibilizar vida pessoal com a profissional e os primeiros anos são os piores.

 

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Posse na Direção do Foro, com o Desembargador aposentado Cruz Neto, Min Benedito Gonçalves, Desembargador Luis Antonio Soares,
Juiz Federal Fernando Mattos e Desembargador Ferreira Neves. (2017 - Acervo magistrada)

 

4) A Senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

Passo, então, a responder mais objetivamente a essa questão. Eu não tinha a consciência de sofrer discriminação, mas hoje, com tudo que venho estudando e graças a Comissão Ajufe Mulheres, parece que caiu o véu. Percebo, agora, várias situações advindas de nossa cultura patriarcal, desde as mais incorporadas ao sistema, até as mais graves.

Para ilustrar um pouco o que eu estou dizendo, no início eu nunca era a juíza, e sim “minha flor”, “querida”, “minha filha”, até por colegas em um debate, em um congresso, uma vez fui chamada assim, mas isso vem mudando.

Quando eu fui titularizar, no Espírito Santo, local que eu sequer conhecia, mas adotei pela excelente qualidade de vida, eu estava amamentando minhas filhas trigêmeas. Na época, a licença era de apenas 4 meses e eu estava pleiteando um mês de férias. O TRF não queria aprovar, porque eu iria assumir uma vara criminal. Se não fosse a Desembargadora Tania Heine apontar esse fato com indignação, eu não teria conseguido.

Essa situação demonstra duas coisas: a importância de termos mais mulheres nos tribunais, inclusive superiores, e o fato de que no mundo dos homens a maternidade não vinha em primeiro lugar, mas a carreira, mesmo quando é direito a licença maternidade e as férias.

Quantas vezes eu mesma caí nessa armadilha de julgar colegas que tiravam muitas licenças para cuidar da família, e de como muitas vezes adotamos o discurso machista e nem paramos para pensar o quanto essa questão de gênero nos afeta a todo momento.

Sofri dificuldades, também, quando estive na Justiça Eleitoral por ser a única mulher atuando, mas que consegui superar com o apoio dos outros membros que me acolheram. Tenho certeza de que minha presença fez toda a diferença no julgamento de várias demandas que envolviam a questão de gênero, como por exemplo, o Partido da Mulher, que não tinha mulher na sua composição de líderes e queria registro, ou na análise da prestação de contas quanto à verba reservada para as mulheres, dentre outros temas.

 

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A magistrada com a toga utilizada enquanto membro do TRE. (2018 - Acervo magistrada)

 

5) O que é, a partir da experiência da Senhora, ser juíza federal?

A Magistratura Federal é uma carreira excepcional, que traz inúmeras possiblidades de se fazer justiça e transformar o mundo para melhor. Por ser uma carreira nacional, envolve questões de impacto federal e, como toda a magistratura, traz poder, mas traz uma grande responsabilidade social e política.

 

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Inauguração do Laboratório de Inovação do ES com a presença do Presidente do TRF2, Desembargador federal André Fontes. (2018 - Acervo magistrada)

 

6) Como é administrar uma Seção ou Subseção Judiciária?

Atuei como Diretora do Foro do Espírito Santo por 4 anos, mas antes já tinha sido vice-Diretora por alguns anos. Quando estive na Ajufe, conheci alguns colegas e juntos criamos o FONAGE, o Fórum Nacional de Administração e de Gestão Estratégica, que foi fundamental para meu preparo como Diretora do Foro.

Foram anos de muito trabalho com orçamento restrito pós EC95/2018, que demandaram uma atuação mais profissional para se continuar garantindo o acesso e a melhor prestação jurisdicional. Minha preocupação foi fazer uma gestão participativa, ouvindo a todas e todos que trabalham na justiça e a comunidade jurídica que frequenta o ambiente.

Assim, com muito orgulho, eu ajudei a criar o terceiro laboratório de inovação do Brasil da Justiça Federal em que tivemos que aprender as novas metodologias de design thinking, em parceria com outros laboratórios como o de São Paulo (com os colegas Paulo Cezar Neves e Luciana Ortiz), primeiro a ser criado e de Natal (com o colega Marco Bruno), nos preparando para inovar e ressignificar a Justiça.

Na época, ainda não imaginávamos que tudo mudaria com a pandemia, e a busca pela inovação teve de ser ainda mais intensificada. Estive à frente da Direção do Foro nessa etapa tão difícil e minha maior dificuldade era como garantir o acesso à Justiça nesse momento de trabalho não presencial, principalmente à população mais carente? E como atender à enxurrada de demandas relativas ao auxílio emergencial oferecida pelo Governo?

Foi assim que nosso laboratório de Inovação da Seccional – o recém denominado InovarES – encontrou uma solução aos novos desafios apresentados. Chegou-se à conclusão de que uma alternativa seria o celular, pois existem planos mais baratos de telefonia que permitem que você tenha acesso a WhatsApp e a alguns outros aplicativos. A equipe apostou no Chatbot “Fale com a Ju” – atendimento ao usuário pelo WhatsApp. Por meio dele, conseguimos fazer milhares de atendimentos remotos aos cidadãos que desejam entrar com essas ações nos juizados do Espírito Santo ou buscar informações gerais, geralmente relacionadas ou com nosso sistema eletrônico, o e-Proc, ou em relação ao próprio atendimento geral da Justiça. A Ju é uma representação da Justiça e são essas várias mulheres.

Também tenho muito orgulho de ter instalado as placas fotovoltaicas em duas seções da Justiça Federal do ES, o que vai trazer para os próximos anos muito economia de energia elétrica.

Concluindo, eu gostei muito de administrar a Seção, envolveu muito estudo e trabalho, mas também fortaleci as relações institucionais com todas as esferas de governo e pude fazer parcerias que vão trazer muitos benefícios para a Seção do ES. Apesar de ser uma atuação em que muitas vezes eu era a única mulher presente representando o Poder Judiciário, reuni forças e alianças que possibilitaram minha atuação. Ressalto a importância de se formar uma rede de pessoas que ajudam na tomada de decisões e na atuação. Pude contar aqui, em muitos momentos, com o colega Fernando Mattos.

Card veiculado pela Ajufe sobre a "Ju", o chatbot de atendimento por Whatsapp da JFES (matéria disponível aqui). 

 

7) Na opinião da Senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

É com muito sacrifício e trabalho que as mulheres conciliam as atividades profissional, acadêmica e familiar. Logo quando eu passei, ainda consegui conciliar a atividade profissional com a acadêmica. Eu dava aulas em vários cursos e faculdade. Depois do nascimento das trigêmeas, em 2004, parei de dar aula e adiei o projeto do doutorado. Até hoje ainda não voltei para a vida acadêmica. Meu foco é o profissional e minha família. Estar no Espírito Santo, ter meu marido, que divide as tarefas da casa e do cuidado com as meninas, também permitiram que eu fosse convocada por dois anos no TRF, que é no Rio, com minha família em Vitória. São escolhas difíceis na hora de aceitar uma promoção/convocação.

Quando concorri a um cargo na Diretoria da Ajufe, recebi o “conselho” de um colega homem de desistir da minha candidatura porque eu iria ter que ir muito a Brasília em prejuízo de minha família. Na nossa sociedade ainda se espera que o cuidado com os filhos seja da mãe/esposa com a “ajuda” do pai.

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Em visita à sede da ONU, com magistradas federais. Na ordem: Livia Peres, Daniele Maranhão, Maria Tereza Uille,
Clara Mota, Priscilla Corrêa e Cristiane Conde. (2018 - Acervo magistrada)

 

8) Qual a mensagem que a Senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

Estamos trabalhando há alguns anos por uma magistratura mais plural e inclusiva e, tenho certeza que quem entrar na carreira atualmente vai se sentir muito mais acolhida através de nossa rede de relacionamentos.

A Comissão Ajufe Mulheres, mais que uma comissão, se tornou um verdadeiro coletivo, com objetivo de forte acolhimento. Está sendo um aprendizado constante fazer parte da comissão.

 

9) O que a Senhora sonha enquanto mulher magistrada?

Fiz parte de alguns laboratórios do LIODS, que é o Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável do CNJ, e que tem por objetivo trazer a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Poder Judiciário. Meu projeto é continuar ajudando a tornar o Judiciário mais sustentável, transparente, inclusivo, que nossas decisões enquanto diretores(as) do foro ou atuando como magistrados e magistradas no exercício da jurisdição, tenham como premissa os objetivos do desenvolvimento sustentável, num trabalho em rede, seja através dos laboratórios ou dos Centros de Inteligência.

 

10) Esta última questão na verdade é um espaço livre para a Senhora deixar alguma mensagem ou falar sobre algo que acredite que não tenha sido contemplado nas perguntas anteriores.

A Justiça federal sempre foi a mais bem equipada e com tecnologia avançada. O processo eletrônico foi iniciado há muitos anos atrás, mas não podemos esquecer que mais importante do que termos todos os aparatos tecnológicos, o fundamental é estarmos atentos para as demandas que chegam todos os dias, com pessoas reais, problemas reais e que esperam uma resposta rápida e efetiva da justiça.

Espero que os espaços de poder sejam efetivamente ocupados por mulheres e homens, e que fotos como essas sejam exceção.

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Ajufe Mulheres