Conhecendo as Juízas Federais #19 – Katia Balbino

A Ajufe e a Comissão Ajufe Mulheres dão continuidade ao projeto “Conhecendo as Juízas Federais”, em capítulo especial que destaca a atuação das magistradas federais e o que mudou em suas rotinas durante o período de isolamento social, provocado pela Covid-19. 

A entrevistada desta edição é a juíza federal Katia Balbino, que tomou posse em 1995 e, atualmente, está lotada na 3ª vara, em Brasília, especializada em saúde pública. Além disso, Katia é convocada ao TRF1 para auxílio na COJEF, COGER e atuação em mutirões e exerceu a Diretoria do Foro entre 2016 e 2018.

A magistrada, que já passou por varas cíveis, criminais, de execução e juizados especiais, se mostra uma apaixonada pela carreira, mesmo diante dos desafios. Katia Balbino foi peça fundamental no plantio da semente que culminou na Resolução 343, de setembro de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, que institui condições especiais de trabalho para magistrados(as) e servidores(as) com deficiência, necessidades especiais ou doença grave ou que sejam pais ou responsáveis por dependentes nessa mesma condição e dá outras providências. 

“Muito embora seja um direito de todos os magistrados, é certo que a idéia nasceu da realidade vivida por algumas mães magistradas que precisavam compatibilizar o exercício profissional com os cuidados com seus filhos, portadores de necessidades especiais, realidade na qual me imaginei nos 21 dias de vida do meu filho Caio Enrico”, afirma a juíza federal.

Certa de que a profissão é mais um papel social, a magistrada diz sentir-se como “uma andorinha, sei que sozinha não farei verão, mas posso me unir a um coletivo que acredita que ainda há muito a ser feito para se prestar a jurisdição ideal e garantir Justiça, inclusive no que diz respeito a gênero”. 

Leia a entrevista completa abaixo! 

foto Katia Balbino juiza 1 

1) Onde a senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

Ao tomar posse, em 25 de novembro de 1995, fui lotada em Macapá/AP, e, em virtude da desistência de um colega que havia optado pelo cargo de Procurador da República, fui relotada em Goiânia/GO, onde entrei em exercício no dia 18 de dezembro de 1995, assumindo logo em seguida os primeiros dias de plantão judicial de final de ano.

Passei um ano e meio em Goiânia numa vara cível e de execução fiscal, depois um ano em mutirão no TRF1 em Brasília, seguindo em 1998 para uma vara criminal em Salvador, onde posteriormente assumi a 9ª vara (cível). De volta para Brasília em 2006, atuei no JEF (25ª vara) e na minha atual 3ª vara, especializada em saúde pública, além de convocações ao TRF1 para auxílio na COJEF, COGER e atuação em mutirões e auxílios e Diretoria do Foro (2016-2018).

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Aqui pergunto o que não é relevante na atuação de uma magistrada? Para cada jurisdicionado, importante é o devido acesso à justiça e a entrega da prestação jurisdicional. Nestes quase 26 anos de magistratura federal, sempre me coloquei à disposição para além da jurisdição regular nas minhas varas, tendo atuado em vara cível, criminal, execução e juizados especiais, em mutirões, comissões, projetos de inovação, organizando cursos, participando de outros tantos, representando a 1ª Região, auxiliando COJEF, COGER e Presidência no que estivesse ao meu alcance. Na esfera associativa também fui delegada da AJUFE na Bahia, participei de algumas comissões, e, em especial, da coordenação do Encontro Nacional de Juízes Federais no ano de 2005. São muitas as frentes que trouxeram grande aprendizado, como por exemplo na condução do Comitê Técnico da ACJUS, na Presidência da Cominf/CJF, ajudando a formatar sistemas e a enfrentar os desafios da modernidade. Hoje, entre outros, o Comitê de Saúde do Distrito Federal e a titularidade de uma vara especializada em saúde pública trazem os desafios de interagir com os responsáveis pela saúde pública e de pensar na saúde complementar, fazendo parte de um diálogo em proveito da sociedade, que evite a judicialização excessiva, ao mesmo tempo em que aprendo diuturnamente novos conceitos a serem colocados na balança da Justiça.

Algo que destaco como muito relevante não se refere à atuação em processos, mas a ter plantado a semente da qual brotaram a RESOLUÇÃO N. 570/2019 - CJF, DE 07 DE AGOSTO DE 2019, que dispõe sobre a realização de teletrabalho e de trabalho em regime de auxílio de magistrado federal em localidade diversa de sua lotação, em caso de deficiência ou por motivo de saúde, em interesse próprio ou no interesse de cônjuge, companheiro ou dependentes, e a Resolução  CNJ 343, DE 9 DE SETEMBRO DE 2020 que Institui condições especiais de trabalho para magistrados(as) e servidores(as) com deficiência, necessidades especiais ou doença grave ou que sejam pais ou responsáveis por dependentes nessa mesma condição e dá outras providências.

Muito embora seja um direito de todos os magistrados, é certo que a idéia nasceu da realidade vivida por algumas mães magistradas que precisavam compatibilizar o exercício profissional com os cuidados com seus filhos, portadores de necessidades especiais, realidade na qual me imaginei nos 21 dias de vida do meu filho Caio Enrico.

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3) Quais as dificuldades que a senhora já enfrentou? Houve alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

Aprendi com a Desembargadora Neuza Maria Alves da Silva que as pedras do caminho servem para pavimentar a estrada. Estudar para o concurso, compatibilizando trabalho e filho em fase de amamentação foi um desafio. Relatar estas coisas parece tão simples, porque imagino que são o cotidiano da maioria das mulheres que querem ser profissionais e ter uma família. Em algum momento, apenas esquecemos de nós mesmas e nos sentimos exaustas. Mas registro que olhar para meu filho era um incentivo para alcançar meus objetivos.

Ao passar no concurso, estava disposta a colocar o filho nas costas e seguir, tentando equilibrar os pratos da vida enquanto o meu mundo girava. Cheguei em Goiânia, mantivemos a residência de Brasília, e ficávamos para lá e para cá nos fins de semana. Meu filho começava a escola e eu debutava na Justiça Federal. Ao tempo em que assumi a jurisdição como substituta de três das seis varas em janeiro de 1996, plantão integral naquele mesmo mês, procurava apartamento, escola e fui montando a nova vida. Até aí, vida normal. Todos os meus deslocamentos entre as cidades nas quais exerci jurisdição tiveram esta característica de tentar equilibrar os diversos eus.

Na chegada em Salvador para atuar em uma vara criminal, o voo atrasou e, no próprio aeroporto, me vesti de Juíza, deixei o filho e as malas com minha mãe e segui direto para a Justiça Federal fazer minha primeira audiência criminal, tendo apenas alguns minutos para me inteirar do processo.  Dá um frio na barriga, mas ninguém consegue ver e depois as abóboras se acomodam no andar da carruagem.

Recordo-me do quanto me senti honrada pelo convite feito pelo então Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, Juiz Federal Tourinho Neto (era Desembargador mas sempre preferiu ser chamado de Juiz), em 2000, para participar de um mutirão no TRF. Do ponto de vista profissional, com certeza, um reconhecimento da minha competência como magistrada. A cada processo antigo que colocava em pauta, eu me sentia resgatando um pouco da dignidade do Poder Judiciário. Do ponto de vista familiar, terminou virando um pesadelo. Era mãe SSD (sexta, sábado e domingo), sem contar que levava para casa malas de processos (eram físicos e muito antigos). Com três meses morando de segunda a sexta no Hotel Nacional e trabalhando das 7h30 às 23h, declinei da honraria e, em troca, aceitei ficar na titularidade integral de duas varas na SJBA por um longo período. Ali eu conseguiria melhor exercer meus papéis de mãe, mulher e ainda assim dar a minha contribuição em dobro para o Poder Judiciário.

Lembro também que no retorno a Brasília, já removida em 2005, meu filho indagou se seria possível desta vez compatibilizar o ano escolar, uma vez que ficava entrando e saindo de escolas no meio do ano. Coração de mulher faz ginástica para compatibilizar os interesses familiares com os profissionais, mas consegui assumir substituições e tirar férias acumuladas para só nos mudarmos em janeiro de 2006. 

São pequenos grandes detalhes. Na hora, não há um plano B. Só depois é que olhamos para trás e vemos o quanto todo dia ajustamos o nosso universo feminino a novos desafios, focadas em manter um espaço conquistado com bastante orgulho e dedicação.

No mais, conviver em um mundo moldado pelo olhar masculino é o que as mulheres sempre fizeram, sorrindo amarelo para o comentário desagradável, fazendo-se de desentendidas para o que não convém reclamar, respirando fundo e engolindo palavras que possam ser tidas como sinal de fraqueza. O nosso eventual e ocasional silêncio não é sinal de concordância, mas de que sabemos que a realidade que queremos é transformada por meio do nosso trabalho. Ainda há muito a caminhar para a igualdade de oportunidades, mas paro por aqui porque isto é uma entrevista, não um livro (risos).  

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4) Como a senhora avalia a pequena proporção de juízas exercendo a jurisdição, em especial nas instâncias superiores?

A igualdade de oportunidade na ocupação de espaços hierarquizados de poder não é uma questão social que afeta apenas o Poder Judiciário. Diria até que, como a porta de entrada da magistratura na primeira instância ocorre pela via de concursos públicos, estabelecer uma rotina de estudos e demonstrar competência para a ocupação do cargo é uma porta aberta a todos.

O que, com certeza, enseja maiores reflexões é o porquê da redução percentual tão grande nas instâncias superiores. Admitir que isto ocorre já é uma etapa que vem sendo objeto de estatísticas e de debate. Acredito que o próximo degrau é encontrar critérios que realmente garantam maior oportunidade de participação feminina nos diversos espaços decisórios.  

5) O ano de 2020 foi marcado pelo início da pandemia de Covid-19, acarretando e acelerando diversas alterações na rotina de trabalho em todas áreas. Nesse contexto, quais os desafios que a senhora enfrentou para se adaptar a essa nova realidade, seja na rotina doméstica ou na prestação jurisdicional? A senhora, inclusive, enfrentou perseguições neste período de calamidade por suas decisões. Como foi atuar nesta seara?

Atualmente estamos vivenciando uma intensificação do número de ACPs e Ações Populares questionando atos de gestão. Embora ache que temos que agir com cautela na seara de políticas públicas, entendo que o Judiciário não pode se abster de avaliar qualquer pleito que lhe é formulado e os princípios da legalidade e moralidade, sem dúvida, atingem a todos e em especial aqueles que cuidam da coisa pública. Por ser um tema sensível, na atuação neste período de pandemia, cheguei a receber comentários em redes sociais que sem dúvida refletiam não só a crítica do inconformismo respeitoso, mas opiniões muitas vezes inflamadas por informações falsas divulgadas, acrescidas de detalhes que visam atingir ou diminuir o conteúdo decisório em razão do gênero. Isto acompanhado de conta fake criada no instagram com montagem de fotos e teorias da conspiração que em nenhum momento tratavam das decisões proferidas ou dos fatos apresentados no processo.

Por outro lado, foram postadas muitas mensagens de apoio nas mídias sociais, tendo havido manifestação de diversas pessoas que confiam no processo democrático e no Poder Judiciário como instância garantidora de direitos. Havia até mesmo o receio de que pudesse ser alvo de violência, tendo havido o devido trato institucional para o assunto. Recebi lindas flores de um grupo de juízas em solidariedade aos ataques indevidos.

Nada disto muda ou mudou minha forma de atuar, mas gera aquela certeza de que a sociedade ainda tem muito a evoluir no que diz respeito à participação feminina nas esferas de poder. Melhor realmente seria que tudo se limitasse ao salutar desenrolar processual. 

Quanto à rotina doméstica, acumulamos num único ambiente as relações familiares e profissionais, o que às vezes dá aquela sensação de sufoco; mas sigo relembrando o que dizia a minha avó em dias quentes quando reclamávamos do calor: isto não é privilégio seu. Assim encaro a pandemia, atinge a todos e o importante é não perder a empatia com a dor alheia e achar que só a nossa é que tem significado. 

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 6) O que é ser juíza federal, para a senhora?

Ser juíza federal significa para mim o cumprimento do meu papel social, contribuindo para um mundo mais justo e mais solidário. Sinto-me como uma andorinha, sei que sozinha não farei verão, mas posso me unir a um coletivo que acredita que ainda há muito a ser feito para se prestar a jurisdição ideal e garantir Justiça, inclusive no que diz respeito a gênero.

Ser juíza com certeza não é ser uma barsa jurídica ou acreditar que sei mais do que qualquer ator processual. Estou sempre ciente de que o respeito ao papel do outro é o que me permite entregar um resultado mais próximo possível do que entendo por Justiça.

7) Quais as suas aspirações enquanto magistrada federal?

A minha aspiração diária é a cada dia acordar pronta para os novos desafios e os aprendizados de um mundo em constante mudança. E seguir em frente até aonde for o meu caminho.

8) Como faz para conciliar as atividades profissional, pessoal e familiar?

Já fiz até curso de gestão de tempo durante meu mestrado na Universidade de Montreal, para entender a organizar melhor a vida de forma a reduzir a ansiedade. E não posso deixar de registrar que a terapia sempre foi um fator essencial para manter o equilíbrio e evitar a síndrome de burnout, possibilitando os perdões que preciso me dar para aquilo que termino colocando debaixo do tapete.

Acredito que a ordem deveria ser pessoal, familiar e profissional, mas esta ordem costuma ser atropelada e muitas vezes fico a procurar onde foi parar a Katia.

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9) Que conselho a senhora daria às mulheres que sonham com a carreira da magistratura federal?

Nunca desistam dos seus sonhos ou os diminuam em razão de críticas nada construtivas daqueles que se incomodam com o seu brilho. Se a magistratura é o seu sonho, lute por ele e dedique-se a ele. O trabalho tem que ser bem feito não para reconhecimento dos outros, mas porque este é o caminho correto de alcançar o ideal de justiça.

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