Matéria originalmente publicada pelo Vortex Media.
A discussão do chamado pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, na Câmara provocou o ressurgimento de antigas ideias engavetadas. Uma delas é a criação da figura do juiz de garantias, prevista na proposta de Novo Código de Processo Penal, aprovado em 2010 no Senado e desde então em análise na Câmara.
Pelo projeto, o processo judicial que hoje é tocado por um magistrado seria dividido entre dois. O juiz de garantias seria responsável pela fase inicial, encarregado de supervisionar a investigação, analisar se os direitos e garantias dos indiciados são assegurados, entre outras atribuições. A análise final do processo e a sentença ficariam a cargo de outro magistrado.
POR QUE ISSO IMPORTA?
O projeto pode criar mais uma frente de confronto entre o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público. Se aprovado, pode causar impacto nos gastos públicos, pela necessidade de criação de mais cargos para juízes.
Na visão dos defensores do modelo, isso evitaria que o juiz final fosse “contaminado” pela investigação e aumentaria a imparcialidade. Não é à toa que a ideia volta à Câmara logo após a aprovação da lei contra o abuso de autoridade, uma reação à Operação Lava Jato.
O projeto também é parte de um conjunto de medidas que o Congresso prepara e desagrada ao Judiciário e ao Ministério Público.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) lançou uma nota técnica contra a implementação dos juízes de garantia. Além de recusar a premissa de que o juiz que supervisiona a investigação estaria “contaminado pelas provas”, a entidade afirma que o modelo é inviável na prática:
cerca de 40% das comarcas estaduais têm apenas um juiz titular; portanto, seriam necessários novos concursos
com apenas um juiz para cada caso, faltam cerca de 4.500 juízes no país, de acordo com o relatório Justiça em Números 2019, do Conselho Nacional de Justiça
O projeto desagrada não apenas o Judiciário, como também o Ministério Público. Para promotores e procuradores, a criação do juiz de garantias pode enfraquecer o papel de procuradores e promotores. Isso porque, a depender do modelo adotado, esse magistrado assumiria atribuições na instrução processual que atualmente são competência da categoria, interferindo mais diretamente na coleta de provas, por exemplo.
Para integrantes do MPF, a atual proposta, sem modificação no modelo de investigação, com mais acordos, mais oralidade no processo, por exemplo, transformaria o juiz de garantia em um ‘juiz de instrução’.
Membros da instituição tem aproveitado a discussão sobre o juiz de garantias para reafirmar a posição de que a adoção do modelo só faria sentido em um ambiente menos burocrático para as investigações. Medidas como a extinção do inquérito policial – agentes de investigação fariam a coleta de provas e as enviaram diretamente para promotores e procuradores – e uma maior liberdade para o MP fazer acordos de não persecução (hipótese regulamentada, em 2017, em que o MP arquiva a investigação quando a defesa cumpre certos requisitos) têm sido defendidas pela instituição.
Na fase judicial, a maior ênfase em procedimentos orais em audiências e aumento de espaço para a defesa de réus e investigados fazerem “contra-investigações” são outras medidas lembradas.
Um levantamento do procurador regional da República Vladimir Aras mostrou que, entre os 21 países da América Latina, apenas Brasil e Cuba não aprovaram reformas em seus Códigos de Processo Penal para implementarem o modelo acusatório – em que as funções de acusar e julgar são separados. O último país a fazer uma mudança desse tipo foi a Argentina, em 2016.