Nomes que consolidaram a magistratura brasileira

     

    Artigo originalmente publicado pelo ConJur, escrito pelo ex-presidente da Ajufe, Vladimir Passos.

     

    No Brasil, o Poder Judiciário é uma instituição forte e consolidada, situando-se entre as mais autônomas do mundo. Os magistrados brasileiros gozam de todas as garantias necessárias para que possam agir com imparcialidade e independência, inclusive as garantias constitucionais da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade devencimentos. Estas, aliadas a outras tantas, dá-lhes a segurança contra perseguições políticas e arbitrariedades.[i]

    Como se vê, o juiz brasileiro não é um funcionário graduado, mas sim um representante de Poder do Estado. Bem observa Mota Veloso, ao mencionar que no Brasil “O juiz não pode ser considerado um servidor público, mas um agente político, que profere decisões políticas para que a Constituição Federal sempre seja respeitada”.[ii]

    Óbvio que tudo isto não exclui dificuldades inerentes ao cargo, como, por exemplo, a falta de estrutura em algumas comarcas, ameaças aos que julgam crimes de facções criminosas e submeter-se a um nível de exigências inexistente para outras carreiras públicas. Mas tais dificuldades não arrefecem o ânimo dos realmente vocacionados.

    Mas a segurança funcional de que gozam os juízes brasileiros, como também os agentes do Ministério Público, cujas garantias são as mesmas, não lhes foi concedida por um ato de benemerência do Poder Executivo ou do Legislativo. Bem ao inverso, foi conquistada passo a passo.

    Na Constituição Republicana (1891), o art. 57 foi explícito, ao dizer que “Os Juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial”. Não se sabe quem introduziu a vitaliciedade na primeira Carta, mas é possível supor que tenha havido a ingerência de Rui Barbosa. Porém, esta garantia foi dada apenas aos juízes federais. Posteriormente, segundo Mário Guimarães, o Supremo Tribunal Federal estendeu-a aos juízes estaduais, “pois, desatender a elas fora violar o princípio da independência dos poderes, substancial nos regimes democráticos”.[iii]

    A inamovibilidade, muito embora não prevista explicitamente, passou a ser considerada como extensão da vitaliciedade, ou seja, a ela estava atrelada e, por isso, deveria ser reconhecida. Todavia, outras conquistas estavam por vir.

    Na Justiça Federal não havia carreira. O cargo de juiz federal, tal qual é ainda hoje nos Estados Unidos, era isolado. Mas, na Justiça dos Estados, as promoções nas entrâncias e depois o acesso ao Tribunal de Justiça eram, regra geral, feitos com base no merecimento. Como o ato era do Governador do Estado, as conexões políticas dos interessados ditavam as escolhas.

    Nos anos 1930, no Estado de São Paulo, o juiz de Direito Paulo Américo Passalacqua assumiu uma renhida luta para que o critério da antiguidade fizesse parteda forma de acesso, junto com o do merecimento. E isto só pode ser hoje afirmado, porque o referido magistrado descreveu sua luta em um livro.[iv]

    Naquele tempo, as Constituições Estaduais é que ditavam a forma de acesso e promoção na magistratura local. Em 1933, na ditadura de Getúlio Vargas, o Interventor Federalbaixou o Decreto 6.107 que, no art. 1º, mencionava que as promoções se dariam pelo critério único do merecimento.

    Passalacqua liderou um movimento contra aquele dispositivo, publicando artigos e escrevendo a magistrados, professores, políticos e advogados de méritos reconhecidos, incitando-os a defender a luta pela promoção por antiguidade. O livro traz pareceres e cartas favoráveis de pessoas de destaque à época, como o depois Presidente da República, Nereu Ramos (SC), Leonardo Macedonia, Presidente da OAB do Rio Grande do Sul, João Mangabeira, Deputado Federal pela Bahia, Bento de Faria, festejado criminalista do Rio de Janeiro, os juristas paulistas Goffredo T. da Silva Teles, Ataliba Nogueira ePedro Chaves (SP), além de dezenas de magistrados de sul a norte.

    Comunicador por excelência, em uma época em que as distâncias eram enormes e as estradas quase inacessíveis, a correspondência era trocada por cartas que demoravam para chegar ao seu destino. Ainda assim, conseguiu Passalacqua ver sua tese vencedora e,com isto,selou o destino de milhares de magistrados até hoje.

    Entretanto, se este é um caso emblemático, outros há que não ficaram perpetuados em um livro, mas que tiveram igual importância.

    As associações de magistrados, que conduzem a defesa da classe, devem muito ao idealizador da união nacional. A Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB, criada em 1949, foi imaginada antes: “em 1936, o juiz mineiro José Júlio de Freitas Coutinho lançou a semente do que, posteriormente, viria a ser a AMB, ao enviar cartas a colegas de todo o País, convocando-os para organizar uma entidade nacional que congregasse todos os juízes brasileiros”.[v]

    No regime militar, as associações atuaram com desenvoltura face à habilidade de seus líderes. Entre outros, Sydney Sanches na presidência da AMB, João Gomes Martins na Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e Ronaldo José Lopes Leal na Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra).

    As Escolas da Magistratura, hoje tão reconhecidas e prestigiadas, foram fruto da luta de valorosos pioneiros. Cláudio Vianna de Lima foi o primeiro diretor-geral da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro — Emerj, merecidamente homenageado com o título de patrono da entidade. Cristovam Daiello Moreira, fundador da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, percorreu o Brasil e países do Mercosul, pregando a importância das Escolas. José Fernandes Filho, desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, prestigiava encontros da classe de sul a norte, recebendo o Colar do Mérito Judiciário de nove Tribunais de Justiça.

    No Nordeste, Nildo Nery dos Santos, de Pernambuco, destacou-se não apenas pela luta a favor da Escola, mas também por ter sido, além de Presidente do Tribunal de Justiça, o responsável pela criação de diversos projetos sociais, em especial a Associação Beneficente Criança Cidadã.Fontes de Alencar, desembargador no Sergipe e depois ministro do Superior Tribunal de Justiça, teve luta permanente na difusão da cultura jurídica, em especial a história judiciária.

    Diocles Gellati, juiz de Direito no Rio Grande do Sul, liderou nos anos 1980 um movimento de desburocratização do Judiciário, que gerou um encontro nacional na cidade de Campo Grande (MS), nos dias 14 a 16 de dezembro de 1985, com a presença de magistrados de todo o país. Como resultado, muitas práticas foram mudadas e “editou-se livro denominado Racionalização da Justiça, com apoio do Programa Nacional da Desburocratização”.[vi]Papel essencial neste evento teve Rêmolo Letteriello (MS), como noticiava a imprensa local.[vii] Não sendo demais lembrar que Letteriello,depois,conseguiu a primeira lei estadual do Brasil sobre Juizados Especiais.

    Nos trabalhos da Constituinte, em 1987 e 1988, grandes líderes da magistratura participaram com grande habilidade e dedicação. Francisco de Paula Xavier Neto (PR), Miltom dos Santos Martins RS), Thiago Ribas Filho (RJ), Régis Fernandes de Oliveira (SP), sabiam como conduzir os temas em meio a um emaranhado conflito de interesses.

    Impossível falar em magistratura sem lembrar o magistrado mineiro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Líder nato, personalidade voltada para o interesse público, foi o precursor da realização de visitas a Escolas da Magistratura de outros países. Ensinou e Influenciou positivamente a carreira das grandes magistradas Eliana Calmon, Nancy Andrighi e Ellen Nortfleet.

    Outros magistrados merecem destaque pela disseminação da cultura jurídica e judiciária. No passado, Pedro Lessa, que Roberto Rosas chama de Marshal Brasileiro,[viii] com a clássica obra “Do Poder Judiciário” (1915), Mário Guimarães, já citado, Castro Nunes com “Teoria e Prática do Poder Judiciário” e Edgard Moura Bittencourt com “O Juiz”. Em tempos mais recentes, os magistrados Sidnei Beneti e José Renato Nalini contribuíram de forma decisiva na formação de milhares de magistrados, com livros, palestras e ações.

    Impossível lembrar de todos, certamente muitos foram esquecidos. Porém, sempre preferi errar por ação do que por omissão. Dos citados, à exceção dos que viveram na primeira metade do século XX, conheci todos. Aprendi, convivi, viajei, conversei, participei de eventos e comemorei com eles. Um privilégio único. O mínimo que posso fazer é homenageá-los com este registro, na esperança de que seus exemplos sejam lembrados e seguidos. Quanto aos atuais líderes, o espaço usado recomenda outro artigo.


     

    [i]Na França  o art. 64 da Constituição garante apenas a inamovibilidade dos magistrados. Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/le-bloc-de-constitutionnalite/texte-integral-de-la-constitution-du-4-octobre-1958-en-vigueur. Acesso em 27/5/2020.

    [ii]VELOSO, Antônio Rodolfo Franco Mota . JUIZ AGENTE POLÍTICO? UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO E SUAS INFLUÊNCIAS SOBRE O ATIVISMO JUDICIAL. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2afc4dfb14e55c6f. Acesso em 27/5/2020.

    [iii] GUIMARÃES, Mário. O juiz e a função jurisdicional. Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 141.

    [iv] PASSALACQUA, Paulo Américo. O Poder Judiciário na Constituição Federal e nas Constituições dos Estados. São Paulo: Saraiva, 1936.

    [v] Disponível em: https://www.amb.com.br/conheca-a-amb/?doing_wp_cron=1590239899.0168800354003906250000. Acesso em 28/5/2020.

    [vi] FREITAS, Vladimir Passos de. Justiça Eficiente. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/16013756.pdf. Acesso em 28/5/2020.

    [vii] Jornal da Manhã, Desburocratização: termina hoje reunião de magistrados. Campo Grande, 15-16/12/1985.

    [viii] ROSAS, Roberto. Pedro Lessa. O Marshal Brasileiro.  Brasília: Horizonte Ed.,1985.

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