O presidente americano se retratou rapidamente, afirmando que cumpriria os tratados internacionais. A forte e imediata reação contra a ameaça de violência feita pelos Estados Unidos surtiu efeitos não apenas pelo aporte normativo existente, do qual o país é signatário, mas também porque a comunidade internacional se baseou na experiência mais recente da combinação de instrumentos punitivos e normativos para lidar com situações de ataques aos sítios e artefatos arqueológicos como tática de guerra e afirmação de poder.
O arranjo regulatório atual, de tutela do patrimônio cultural pela comunidade internacional, decorre dos malsinados conflitos armados passados, especialmente das duas sangrentas Grandes Guerras Mundiais. Grife-se, a Segunda, de triste memória, com proporções atômicas. A devastação das cidades, portanto, com a perda de bens culturais únicos e insubstituíveis, foi determinante para a criação e a implantação de normas e medidas precautórias aptas para tutela dos bens representativos da identidade da comunidade global e para a fruição desse patrimônio cultural pelas próximas gerações. No entanto, nas últimas décadas, os casos de destruição dos budas de Bamiyan e de patrimônios culturais da humanidade situados no Afeganistão, na Líbia, na Síria, em Mali e no Iraque mostraram que o aparato normativo produzido pela comunidade internacional pós-Segunda Guerra Mundial não foi suficiente para proteger efetivamente o legado cultural da humanidade. As práticas nefastas ao patrimônio cultural de séculos mais remotos não foram empreendidas apenas por grupos terroristas. Os Estados Unidos protagonizam, de 2003 a 2011, considerável devastação a acervo cultural da humanidade, com o dito ataque preventivo ao Iraque, sob o falso argumento, como sabido e consabido hoje, deste país estar produzindo armas nucleares de destruição em massa.
Esses episódios recentes indicaram que a comunidade internacional precisava continuar a trabalhar na construção de uma abordagem que, de algum modo, impedisse ou desestimulasse a estratégia de ataque aos bens culturais nas situações de conflitos.
Pela primeira vez, em 2015 e 2017, o Conselho de Segurança da ONU emanou duas normativas que vinculavam a proteção do patrimônio cultural aos conceitos de paz e segurança mundial. Assim, de maneira inédita e como sinal de novos tempos, a preservação dos bens culturais foi considerada pela ONU como essencial para a segurança e paz mundial, lançando luzes para a necessidade de pensar e de tratar os bens culturais da humanidade como pilares estabilizadores das relações entre Estados.
A posição do Conselho de Segurança da ONU é mais uma pedra assentada no mosaico protetivo dos bens culturais como bens preponderantes para a compreensão da trajetória, da história e da sobrevivência da humanidade.
Importante anotar que, em 1972, a Conferência Geral da Unesco adotou a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. O documento, considerado um dos principais marcos regulatórios para a proteção de bens culturais e naturais do planeta, estabeleceu diretrizes para definição dos patrimônios da humanidade a serem tutelados e protegidos, de modo que, no âmbito do Direito internacional, não pode existir dúvida sobre a tutela destes, em especial, considerando-se os consagrados princípios da prevenção e da precaução como efetivos instrumentos de tutela jurídica.
Passados 40 anos, em 2003, a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco veio destacar a profunda interdependência que existe entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural e natural, reconhecendo que os processos de mundialização e de transformação social, ao mesmo tempo em que criam as condições propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, também trazem consigo os fenômenos de intolerância e graves riscos de deterioração, desaparecimento e destruição do patrimônio cultural imaterial.
Novamente, a Agenda 2030 da ONU, ao trazer os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), consagrou, com todas as letras, em seu ODS 11, o compromisso de tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis, tendo o Brasil adequado a meta 11.4 deste ODS para fortalecer as iniciativas para proteger e salvaguardar o patrimônio natural e cultural do Brasil, incluindo seu patrimônio material e imaterial; e em seu ODS 16 a paz, a justiça e instituições eficazes. Como referido pelo professor da Columbia University Jeffrey Sachs, um dos grandes artífices dos ODS, em sua recentíssima obra, "The Ages of Globalization", as guerras são graves e definitivos entraves para o desenvolvimento sustentável. Aliás, ponto que já havia ressaltado, no ano de 2015, quando do lançamento do festejado livro "The Age of Sustainable Development", no qual refere, igualmente, sobre a relevante e necessária relação entre os pilares do desenvolvimento sustentável (inclusão social, tutela ambiental e desenvolvimento econômico) com a boa governança.
Ao mesmo tempo, e como não poderia deixar de ser, em um período histórico em que a ciência alforriou a humanidade do obscurantismo, a ligação entre o desequilíbrio ambiental e os impactos aos direitos e bens culturais tem merecido atenção da ONU. Nesse cenário, Karima Bennoune, relatora especial das Nações Unidas no campo dos direitos culturais, apresentou relatório sobre direitos culturais e mudanças climáticas neste mês de outubro de 2020. No relatório, certamente temido por céticos, utilitários e negacionistas, são enfatizados dois pontos principais.
O primeiro consiste na escala da ameaça que a emergência climática representa para as culturas. Embora a maioria dos direitos humanos seja afetada pelas alterações climáticas, os direitos culturais são particularmente afetados de forma drástica, na medida em que correm o risco de serem simplesmente dizimados em muitos casos. A realização cultural humana produzida ao longo dos séculos, criadora de patrimônio cultural, de práticas e de modos de vida, corre sério risco em virtude do aquecimento global. Essa realidade não tem sido devidamente reconhecida pelas políticas governamentais das nações e, tampouco, pela comunidade internacional quando o tema refere-se às alterações climáticas de causas antrópicas. Importante, segundo Bennoune, que a tutela dos direitos culturais seja reconhecida como uma obrigação legal internacional vinculante e abordada como uma prioridade. Nesse sentido, fundamental é a análise e a documentação adequada — incluindo uma cartografia completa dos danos ao patrimônio cultural e das violações aos direitos culturais no mundo — e a fixação de respostas estratégicas abrangentes para a prevenção dos danos ao patrimônio cultural.
Os nefastos efeitos das mudanças climáticas sobre os direitos culturais, de acordo com o relatório, são visíveis. Durante sua missão às Ilhas Maldivas, Bennoune relatou ter visitado um cemitério secular que abriga as sepulturas das pessoas que levaram o Islã para a referida nação ilha. Esse cemitério, de evidente valor histórico, fica a menos de cem metros do oceano e o nível do mar está a subir rapidamente. Os habitantes temem que o local desapareça dentro de dez anos e que o próprio país possa sucumbir às elevações dos oceanos em um futuro próximo. Em outra missão, em Tuvalu, Bennoune visitou a única biblioteca do país, que fica a 20 metros da costa. Referido prédio, referência da cultura local, está ameaçado pela aparente elevação do nível do mar. Referida biblioteca contém documentos históricos, como a carta que reconheceu oficialmente a independência do país, mas também registros meteorológicos e de marés, que são instrumentos de grande relevância para a investigação histórica do aquecimento global.
O segundo ponto é que enquanto a emergência climática ameaça a humanidade na sua totalidade e todas as culturas humanas, os impactos atingem povos e lugares específicos de forma desproporcional, colocando em maior perigo as culturas das populações que vivem em ambientes vulneráveis, tais como os pequenos Estados insulares em desenvolvimento, o Sahel e o Ártico, bem como as pessoas com necessidades especiais e os jovens. As mulheres e as adolescentes já enfrentam muitos obstáculos para o gozo e a concretização dos seus direitos culturais, e as alterações climáticas agravam estas desigualdades, inclusive no acesso à educação. A destruição do patrimônio cultural induzida pelas alterações climáticas tem efeitos particularmente significativos também nos povos indígenas, para os quais as ligações à terra e aos ecossistemas desempenham um papel tão importante, para não dizer vital.
O relatório aponta para a necessidade de um engajamento global em torno de uma justiça da cultura climática, uma vez que os mais afetados pelo aquecimento global sequer contribuíram para este. As nações pobres e em desenvolvimento, por sua vez, têm parcos recursos para proteger as suas culturas — não raras vezes pertencentes, também, a toda a humanidade — das externalidades negativas das mudanças climáticas. Desse modo o relatório, em boa hora, aponta para a imprescindível cooperação e o financiamento internacional, em parceria com a capacitação e participação local, para prevenir riscos de danos, muitos irreparáveis, ao patrimônio cultural da humanidade já de muito tempo ameaçado por guerras e agora, como salta às escâncaras, pelo aquecimento global.
Bennoune não faz referência ao Brasil neste importante relatório. Mas vale lembrar que, quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU criou, em 2009, o procedimento especial chamado de perito independente na área dos direitos culturais (Resolução 10/23, de 26 de março de 2009), com a finalidade de fortalecer os direitos culturais como direitos humanos, o Brasil foi escolhido como destino da primeira visita oficial da perita independente Farida Shaheed, que exerceu sua missão de 2009 a 2015.
A visita de Shaheed aconteceu em novembro de 2010 e, no relatório apresentado à ONU em 2011, foram destacados avanços no cenário brasileiro, com menção expressa ao Plano Nacional de Cultura, atualmente sem funcionamento digno de registro. A perita ressaltou, entre outros pontos, a necessidade de o Brasil: "continuar adotando todas as medidas necessárias para garantir destinação de recursos e de bens culturais a pequenas cidades e regiões menos desenvolvidas; a importância de ações governamentais que garantam os direitos dos povos indígenas a viverem em seus territórios; e a necessidade de intensificar esforços para combater a discriminação e intolerância em relação aos afrodescendentes, com menção expressa à proteção às religiões de origem africana e à proteção do patrimônio linguístico dos afrodescendentes, complementando as medidas já existentes para implementar as Leis 10.639/2003 e 12.288/2010".
O relatório de Karima Benounne sobre direitos culturais e mudanças climáticas dialoga facilmente com as recomendações feitas para o Brasil, há uma década, por sua antecessora, Farina Shaheed. Os afrodescendentes, os povos indígenas, as populações das cidades e regiões menos desenvolvidas e as comunidades tradicionais são mais afetadas pelo desequilíbrio ambiental e pelas alterações do clima, pelo risco aos bens materiais, mas, principalmente, pela destruição silenciosa de seu modo de ser, viver e fazer.
Por isso, os atores locais e também a comunidade global devem estabelecer como tarefa primordial a adoção de um plano de ação baseado na tutela dos direitos humanos para salvar as culturas da humanidade e proteger os direitos culturais das mudanças climáticas e dos seus nefastos efeitos, priorizando a tutela precautória e preventiva, para evitar a extinção cultural das populações que vivem nos ambientes mais vulneráveis. Outro passo relevante é o reconhecimento do direito humano a um ambiente saudável, ou a um clima estável, uma condição sine qua non para o gozo dos direitos culturais nesta era de catástrofes e de desastres.
Inês Virgínia P. Soares é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em Direito pela PUC-SP, com pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da USP, autora e coordenadora de livros jurídicos, dentre os quais, "Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro" (Editora Fórum, 2009).
Gabriel Wedy é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg — Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht e diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde.
Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2020, 7h12