Sobre a igualdade na crise da Covid-19

    Artigo publicado originalmente no ConJur

    Por Carmen Silvia de Arruda

    Um dos maiores desafios do Estado brasileiro é assegurar o direito à saúde a todos os brasileiros, de forma igualitária, universal e integral, garantia consagrada em nossa Constituição Cidadã. Para dar conta dessa missão, o Serviço Único de Saúde foi concebido e, atualmente, é reconhecido como o maior sistema público de saúde do planeta pela Organização Mundial de Saúde.

    Ao longo dos anos, convivemos pacificamente com a dura realidade das intermináveis filas para os mais diversos tipos de atendimento, desde os primeiros cuidados na atenção primária, a cargo dos municípios, até para os procedimentos mais complexos, cirurgias e tratamentos de alto custo prestados pela União. Uma assistência deficitária, insuficiente, ineficiente, de má qualidade, sem planejamento ou critérios claros, a despeito de consumir um terço do orçamento total do país.

    Em 2015, o Conselho Federal de Medicina divulgou a avaliação do Instituto Datafolha sobre o atendimento da saúde, em que constatou-se que para 93% dos usuários os serviços do SUS são péssimos, ruins ou regulares [1]. Mais recentemente, o Tribunal de Contas da União divulgou minucioso relatório em que consta a falta de digitalização e critérios objetivos para apuração de eficiência na saúde pública, sujeita a burocracia e regimes de gestão obsoletos, propiciando opacidade e malversação de recursos públicos [2].

    Tamanha insatisfação provocou substancial aumento da judicialização. A saúde pública se defende, agarrada ao arcaico conceito de infalibilidade, the king could do no wrong. Contra a impenetrabilidade e insindicabilidade da saúde, avançamos nas teses jurídicas, firmaram-se os precedentes pela solidariedade na prestação do serviço, no fornecimento de remédios, e na garantia da universalidade aos usuários do SUS.

    Em paralelo, a saúde privada seguia bem e tranquila, complementando o atendimento para 30% da população mais afortunada, um mercado em plena expansão, sob os cuidados da Agência Nacional de Saúde.

    Em uma sociedade acostumada a privilégios, em que "os direitos humanos não são iguais para todos" [3], o vírus, mais uma vez, como uma lente de aumento, evidencia o problema: diante da impossibilidade de aquisição de vacina pela rede privada, vimo-nos todos submetidos a um cenário de igualdade nunca antes experimentado. Todos, ricos ou pobres, diplomados ou analfabetos, empresários ou desempregados, do dia para a noite, tornamo-nos iguais, e sujeitos aos padrões das longas filas sem transparência, corrompidas pelo compadrio. Igualdade indesejada num país de desiguais.

    Com menos de um mês do início da vacinação, assistimos a um festival diário de absurdos e escândalos. Um número crescente de denúncias de fura-filas, vacinas desviadas para a mulher amada, para filhas queridas, ou simplesmente desaparecidas para um mercado negro, privando os mais vulneráveis do seu legítimo direito à prioridade na vacinação, pelo elevado risco de morte. Falta de ética peculiar de um país acostumado à corrupção endêmica, que ocupa, desavergonhadamente, o 94º lugar no Índice da Corrupção da Transparência Internacional, ao lado de Etiópia, Cazaquistão, Peru, Servia, Sri Lanka, Suriname e Tanzânia, no principal indicador de corrupção do mundo.

    O Congresso Nacional elabora soluções por meio de leis mais severas, imposição de multas; o Ministério Público mobiliza-se para abertura de inquéritos e ações de improbidade. Novamente desloca-se o problema para esfera judicial, em que a lentidão peculiar se contrapõe à rapidez do vírus, que mata em 48 horas. Não há condenação judicial que restitua a uma vida perdida.

    Já se ouve alardear outras saídas, mais imediatas, porém condizentes com a perpetuação da desigualdade, como autorização para compras e distribuição das vacinas na rede privada, ainda que sob o discurso de eficiência e promessa de equidade. Louva-se a boa intenção do empresariado, preocupado com os níveis de produção e consumo, até então alheio à realidade do SUS.

    A solução imediata é a conscientização que estamos todos no mesmo barco, "ninguém se salva sozinho"; pois o pior vírus é o "individualismo radical" e a indiferença pelo sofrimento do outro, cotejando o papa Francisco [4].

    O artigo 196, III, da Constituição Federal brasileira prevê a participação comunitária como diretriz das ações e serviços públicos de saúde, consagrando não apenas um direito de participação, mas também a responsabilidade social pelo controle da saúde. Significa dizer, a corresponsabilidade da sociedade, não pontualmente, para solucionar a vacina contra a Covid-19, mas sobretudo assumindo um compromisso ético com a governança e transparência, possibilitando a gestão participativa em todas as esferas públicas, visando à diminuição das desigualdades sociais.

    Garantir igualdade é assegurar "a todos os indivíduos o acesso a um sistema adequado de liberdades fundamentais que permita o pleno desenvolvimento da personalidade humana", leciona Binenbojm [5]. O controle social da vacinação representa a oportunidade para uma verdadeira mudança de paradigma na construção uma sociedade mais justa, com menos desigualdades, mais solidariedade e sem privilégios.

    [1] Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25807:2015-10-13-14-55-36&catid=3>.Acesso em: 15 mai. 2015.

    [2] Acordão n° 1108/2020. Plenário do TCU. Relatório de Levantamento do TCU n°. 015.993/2019-1.Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/etcu/AcompanharProcesso?p1=15993&p2=2019&p3=1>. Acesso em: 16 mai. 2020.

    [3] Francisco. Fratelli tutti. Vaticano, 2020, paragrafo 22. Disponível em <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html>. Acesso em 2 de fev 2021.

    [4] Francisco, Fratelli tutti, parágrafos 32 e 105.

    [5] Binenmbojm, Gustavo. Liberdade igual: O que é e por que importa. Ed. Historia Real. Rio de Janeiro, 2020. p. 16.

    Carmen Silvia de Arruda é juíza federal no Rio de Janeiro, PhD em Direito Público pela Università di Pavia e doutora em Sociologia e Direito pela UFF.

    Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2021, 17h15

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