Por que contar história de mulheres despedaçadas? O legado de Inês Etienne

    Por  e  (Publicado no ConJur: https://www.conjur.com.br/2021-mar-15/ines-soares-caroline-lemos-legado-ines-etienne

    Sob o mote do Dia Internacional das Mulheres, o mês de março tem sido usado para lembrar os direitos civis e políticos arduamente conquistados pelas mulheres e dos diversos avanços que ainda precisam ser consolidados. Nessa perspectiva, aproveitamos para (re)contar histórias de mulheres que contribuíram para a justiça, a democracia e a consolidação de direitos no cenário brasileiro e, por isso, não podem ser esquecidas ou ter suas memórias fragmentadas em pedaços, porque estes não se colam sozinhos.

    O assentamento do passado recente da ditadura brasileira (1964-1985) tem mostrado, por exemplo, que as vozes femininas fizeram e fazem diferença na elaboração da memória coletiva e na busca da verdade. As narrativas e os testemunhos das mulheres perseguidas pelo governo autoritário deixaram clara a importância de se perceber diferenças das violações de acordo com o sexo da vítima e de se constatar que havia uma exploração da condição feminina, como fragilidade.

    A narrativa de Inês Etienne, por sua vez, contribuiu para o esclarecimento da utilização de uma das formas mais nefastas da máquina repressora da ditadura: a existência e manutenção de Centros Clandestinos de Detenção e Tortura (CCDT) no Brasil. A Casa da Morte foi criada em 1971 pelo CIE e desativada em 1974. Foi um local que serviu de apoio ao DOI-Codi-RJ, com prisioneiros de vários Estados enviados para lá, fazendo desse CCDT um dos principais do país [1]. O Deops-SP e o DOI-Codi-SP também mandavam presos para a Casa da Morte esporadicamente [2].

    Boa parte do que se sabe sobre seus agentes e sobre o que aconteceu com alguns dos presos políticos que foram levados para lá se deve à denúncia que Inês Etienne Romeu fez ao Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil em 1979, depois que foi solta [3].

    Inês Etienne era dirigente da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e foi presa pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury em 5 de maio de 1971, na cidade de São Paulo. Na capital paulista, passou pelo Deops-SP, onde recebeu choques elétricos na cabeça e espancamento no pau-de-arara. Em seguida, foi transportada para o Rio de Janeiro, ficou em uma delegacia e no dia seguinte foi levada vendada a uma casa na região serrana do Estado, posteriormente conhecida como Casa da Morte, onde permaneceu por 96 dias sem prisão formalizada e sem que seus familiares soubessem de seu paradeiro.

    Inês deixou a casa com 20 quilos a menos de seu peso normal, denunciando seu suplício assim que saiu do cativeiro, em 1971. Não porque fosse mais corajosa do que outras vítimas, mas porque a denúncia era a única chance de não ser assassinada, era a oportunidade de ser detida formalmente, de estar sob custódia do Estado (como presa) e, por consequência, de ser submetida a um "devido processo legal", com todos os vieses que caracterizavam os processos judiciais respondidos pelos opositores políticos do regime, nos anos de 1960 e 1970. Ou seja, o julgamento, mesmo injusto, preservou a vida de Inês Etienne.

    A condenação de Inês pelo Judiciário foi dura: 77 anos. Em 1979, era a única mulher na história do Brasil a ter sido condenada a um tempo de prisão que, na prática, correspondia à prisão perpétua. E mais: ela não foi incluída na lista de pessoas que seriam anistiadas, embora fosse uma presa política. Sua liberdade condicional está marcada pela sororidade e pelo olhar feminino.

    A jornalista Márcia Almeida conheceu a irmã de Inês e teve ciência de sua história em Paris, na casa da atriz Norma Bengell, que estava exilada na França desde 1971, após ter sido capturada no Teatro de Arena e levada ao DOI-Codi do Rio, onde foi interrogada pela prática de "subversão na classe teatral" e detida por dois dias. Ao perceber que Inês poderia ficar de fora da lista dos possíveis anistiados, resolveu começar um movimento para que ela não fosse esquecida na prisão, começando por uma entrevista dela veiculada no Pasquim em agosto de 1979. Nessa entrevista, Inês Etienne revelou publicamente, pela primeira vez, sua experiência na Casa da Morte. Não contou pormenores; só o faria dois anos depois, no próprio Pasquim [4].

    Entre as décadas de 1960 e 1970, as mulheres se engajaram mais no mercado de trabalho; investiram na obtenção de uma escolaridade mais ampla e passaram a se posicionar de maneira mais altiva nos espaços públicos, nas suas relações sociais, econômicas e políticas. De certa forma, essas inovações acabaram por modificar suas relações com os homens e até mesmo com outras mulheres, alterando, portanto, a dinâmica social.

    Diante desse cenário de novas relações, apesar de ainda ser embrionário o movimento feminista, que só se firmaria no cenário brasileiro no final dos anos de 1970 e nos anos 1980, uma parcela de mulheres participava das organizações clandestinas que resistiam ao regime ditatorial. Nessa ótica, as mulheres militantes dos anos 1960 e 1970 ainda lutavam por igualdade dentro das próprias organizações políticas, regulares ou clandestinas das quais integravam. No caso das clandestinas, a participação feminina nessas entidades era na realização de atividades de cuidado (cozinhar, limpar, fazer compras para abastecimento do equipamento) e de pouca liderança, geralmente "para garantir a infraestrutura das ações políticas e militares" [5]. Marcelo Ridenti destaca uma média de 18% de mulheres nos grupos armados no final da década de 60, ressaltando que essa "(...) participação feminina nas esquerdas armadas era um avanço para a ruptura do estereótipo da mulher restrita ao espaço privado e doméstico, enquanto mãe, esposa, irmã e dona-de-casa, que vive em função do mundo masculino" [6].

    Além de identificar a Casa da Morte, Inês também denunciou atos de violência sexual que lá sofreu, inclusive estupros, identificando seus agressores.

    Apesar dos primeiros relatos de Inês serem da década de 1970, somente em 2014 as denúncias ligadas às violências de gênero sofridas por Inês tiveram repercussão legal. Em 2016, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou "Camarão" à Justiça Federal em Petrópolis, acusando-o de sequestro e estupro, tendo como base o depoimento de Inês à OAB, no qual ela menciona que foi estuprada duas vezes por ele quando estava presa na Casa da Morte [7]. A denúncia do MPF foi rejeitada exatamente no dia 8 de março de 2017 pelo juiz Alcir Luiz Lopes Coelho, da 1ª Vara Federal de Petrópolis, tendo como fundamento a Lei da Anistia.

    O MPF recorreu da decisão. Em 2019, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região reverteu a decisão e aceitou a denúncia [8]. Essa decisão também contou com o olhar feminino, já que o voto divergente, que ao final prevaleceu e foi o voto condutor, foi dado pela desembargadora Simone Schreiber. Entre os relevantes argumentos apresentados no voto divergente, a desembargadora lembrou que recentemente, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou, em sua jurisprudência, a necessidade de uma oitiva sob a perspectiva de gênero nos casos de violência contra mulher: "(...) A palavra da vítima, como espécie probatória positivada no art. 201 do CPP, nos crimes praticados — à clandestinidade — no âmbito das relações domésticas ou nos crimes contra a dignidade sexual, goza de destacado valor probatório, sobretudo quando evidencia, com riqueza de detalhes, de forma coerente e em confronto com os demais elementos probatórios colhidos na instrução processual, as circunstâncias em que realizada a empreitada criminosa" [9].

    A ação penal ainda tramita e não é possível saber se haverá punição. Mas o andamento do processo já é um alento e indica mudanças no tratamento da questão de gênero, inclusive em relação aos crimes do passado.

    Enquanto aguardamos os desdobramentos das narrativas de Inês Etienne, tomamos emprestadas suas palavras para lembrar do que não podemos esquecer:

    "Eu os via como se fosses bestas, instrumentos de um sistema cruel e violento. (...) Você pode imaginar todas as maldades e sadismos possíveis, mas quando você enfrenta esse sadismo pessoalmente é algo inacreditável. E eu pensava, dentro do que chamo de pensamentos infantis, o seguinte, que meus irmãos todos — e a família é muito grande, são sete irmãos, pai, mãe, primos — pagavam impostos para sustentar aquelas pessoas que estavam me torturando; (...) Quando se fala na tortura não é para comover ninguém, provocar lágrimas, as pessoas têm que ter uma consciência muito profunda do que é a tortura e termos de instituição. (…) Não podemos deixar que a bestialidade seja institucionalizada; é uma coisa anti-humana" [10].

    Obrigada, Inês Etienne. Sua voz ecoa e as mulheres brasileiras travam, diuturnamente, inúmeras lutas para que a "bestialidade" não seja institucionalizada.

     

    [1] CNV, Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. v. I. Brasília: CNV, 2014, p. 976.

    [2] GODOY, Marcelo. A Casa da Vovó: uma biografia do DOI-CODI (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar. 2ª Ed. São Paulo: Alameda, 2015, p 612.

    [3] CNV (2014); CMV (2018).

    [4] Ibidem, p. 295.

    [5] TELES, Maria Amélia de Almeida. “Violações dos Direitos Humanos das Mulheres na Ditadura”. In: Estudos Feministas, v. 23(3): 406, setembro-dezembro/2015, p. 1001-1022.

    [6] RIDENTI, Marcelo Siqueira. “As Mulheres na Política Brasileira: os Anos de Chumbo”. In: Tempo Social, v. 2, 1990, p. 113-128.

    [7] CMV, Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis. Relatório da Comissão Municipal da verdade sobre os crimes e graves violações de direitos humanos cometidos na cidade de Petrópolis entre 1964 e 1985. Petrópolis: CMV. 2018. 400 pp.

    [9] STJ, AgRg no AREsp 1275084/TO, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 28/05/2019, DJe 05/06/2019.

    [10] Pasquim. Entrevista com Inês Etienne Romeu. Pasquim. Arquivo da Associação Brasileira de Imprensa. 27 de julho de 1979 a 02 de agosto de 1979, p. 6.

     é desembargadora federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

     é arqueóloga, mestre em Antropologia pela UFMG, doutora em Arqueologia pela UFS, membro do Programa Arqueológico Brasileiro no Egito (BAPE) que executa o Projeto Amenemhat em Luxor, nas Tumbas Tebanas TT123 e TT368 e foi agraciada com Prêmio Capes de Teses, edição 2020, na área de Arqueologia.

    Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2021, 9h12

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