Por Mariana Camargo Contessa - Juíza Federal Seção Judiciária do RS
Artigo publicado em: https://www.editorajc.com.br/a-magistratura-federal-no-espelho-do-genero/
A magistratura é carreira de Estado, instituição formal e profissional. Por profissionalismo, leia-se a ideologia que sustenta a lógica da especialização neutra, os códigos de auto-regulamentação de condutas e de ética profissional fixadas por classe de trabalho, os elementos de padronização e gerencialismo de atividades intelectuais. Essa construção de critérios e arquétipos atua como elemento de identificação comum para os membros do grupo, mas, em última instância, também implica poder de inclusão e exclusão. Quem representa o que deve ser o profissional da área e quem não o faz. Quem vai e quem fica.
O ingresso maciço de homens em momento histórico anterior imbuiu a atividade jurisdicional de elementos da ortodoxia masculina e daquilo que Bonelli e Oliveira chamaram de “profissionalismo cívico no mundo do Direito”. As autoras citam, a este propósito, inclusive os elementos simbólicos a exemplo do próprio modelo de vestimenta como forma de representação universal desta autoridade, já que a toga uniformiza e disfarça a individualidade de cada membro, tornando-o quase assexuado. Há, portanto, ao olhar do público externo, uma homogeneidade que visa a apagar a experiência subjetiva individual de cada integrante (mulheres, negros, índios, outros grupos culturais ou religiosos minoritários), criando-se uma invisibilidade daquilo que não corresponder ao standard já tradicionalmente associado à instituição.
Se a Justiça é representada normalmente como uma mulher, a mitológica Themis, o Judiciário ainda não o é. Mais: ao que tudo indica, não o é, nem tampouco o será em futuro próximo.
Em análise da cúpula do Judiciário, até 2015, a participação feminina nos órgãos de comando dos tribunais regionais federais não ultrapassou 26,6%. Parecia, porém, existir uma tendência de que as mulheres fossem chegar, com o tempo, aos órgãos de cúpula. No entanto, entre os anos de 2013 até 2018, o percentual de juízas mulheres aumentou em apenas 2% (de 36% para 38%), sendo que, na Justiça Federal, estas ainda são apenas 32%. O ano é 2021 e existe tribunal regional federal que sequer conta com mulheres no cargo de desembargador. Assim, à luz dos dados mais recentes, o mero transcurso do tempo não tem se revelado suficiente para a superação da desigualdade na participação feminina no Judiciário, em especial, no âmbito federal, que apresenta uma representatividade inferior aos índices da Justiça do Trabalho e da Justiça Comum Estadual.
Ou seja, se alguns anos atrás anunciava-se que o crescimento do ingresso de mulheres nas faculdades de Direito, nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil OAB e em concursos públicos as levaria à cúpula do Judiciário, hoje, o que se constata é que, aparentemente, este momento se converteu em mitologia mais figurativa do que a deusa Themis: o período de maior ingresso de mulheres ocorreu entre os intervalos de 2000 até 2010, com diminuição do ritmo de feminização dos quadros da magistratura a contar deste ano em diante. Em acréscimo, permanece a ocorrência de retenção das magistradas federais nos níveis de ingresso da carreira federal, com maior concentração de mulheres nos cargos de juíza federal substituta. Pior: a Nota Técnica nº 02/2019 da Comissão Ajufe Mulheres permite inferir que os critérios de promoção por merecimento, quando se afastam da mera antiguidade, conquanto previamente estabelecidos em termos genéricos e supostamente imparciais, ainda resultam, na prática, na promoção majoritária de homens.
De lado outro, a Nota Técnica nº 02/2019 indaga o porquê das mulheres também se candidatarem menos à promoção na Justiça Federal. Conquanto existam certamente peculiaridades da carreira federal brasileira, igual questão é proposta por Schultz e Shaw na obra “Women in the World’s Legal Professions”, o que evidencia que alguns padrões obstrutivos parecem estar presentes na ascensão funcional feminina na magistratura de forma geral.
De toda sorte, é um dos elementos a se considerar na Justiça Federal brasileira a influência da esfera pessoal sobre a decisão de inscrição à promoção, na medida em que esta importa em novo deslocamento geográfico para assunção da nova lotação, normalmente em cidades do interior distantes dos grandes centros. Tal situação exige uma reflexão sobre a existência de estrutura escolar e hospitalar na nova localidade; se há possibilidade de recolocação profissional do cônjuge; se é viável a presença de rede de apoio para filhos pequenos. Não à toa em resposta à questão se “as mulheres enfrentam as mesmas dificuldades que os homens para ingressar na carreira da magistratura?”, a maioria (40,54%) respondeu que “não, a depender se têm filhos”. Seguindo o clichê, a cada escolha, uma renúncia.
Ora, as instituições políticas e de exercício de poder foram construídas pela filosofia e pela ciência política moderna sobre bases daquilo que Susan Moller Okin chama de uma falsa neutralidade de gênero, fundamentada em uma divisão entre a esfera pública, em que o poder é exercido, e a esfera privada, familiar, pressuposta e não discutida (ainda que essencialmente estratificado de forma injusta dentro da privacidade e da santidade do lar). Tradicionalmente, atribuiu-se à primeira a característica do masculino, ao passo que, à última, os símbolos do feminino. O âmbito familiar não é pensado ou discutido corriqueiramente nas instituições políticas e profissionais, e o Judiciário Federal não é exceção. A estrutura simplesmente se organiza sob a lógica de que a esfera familiar não irá influenciar a decisão do membro, já que isso é pouco profissional. Ocorre que, se nenhuma pessoa é uma ilha, as mulheres tendem a ser arquipélagos. Para além do profissional, há o ser humano e suas contingências afetivas. E a escolha se a esfera pessoal deve ser adaptada à pública ou se esta deve ceder àquela também se liga aos papéis socialmente determinados ao feminino e ao masculino.
Em síntese, há uma pseudo neutralidade que perpetua a segregação e desequilíbrio institucional da presença feminina nos espaços públicos e em posições de poder. Ao inserirmos como regra não escrita que o espaço familiar (e os compromissos e as atividades domésticas decorrentes) não existe ou é irrelevante, a pessoa que o assumir será penalizada, é dizer, ficará com a chamada “dupla jornada”. Seguindo nesse viés, o espaço privado, alienado da estrutura democrática e igualitária em que resolvidos os negócios públicos, converte-se em estamento injusto.
Mas qual é a importância dessa discussão? A representatividade dos mais diversos grupos que compõem a sociedade é relevante para melhor desempenho dos Poderes Políticos, como é o caso do Judiciário? E, afinal de contas, se homens e mulheres são iguais, qual a diferença se uma decisão é tomada apenas por homens?
Em Duren vs. Missouri, o Juiz John Paul Stevens realizou a última pergunta acima para a então advogada Ruth Bader Ginsburg, ao que esta respondeu “é aquele elemento indefinível (…) nós a sentimos, mas não é algo fácil de definir, sim, há uma diferença” (nossa tradução).
Para dita questão, podemos ajudar Ginsburg arrolando diversos argumentos que, aparentemente, no calor dos debates orais, não lhe ocorreram: 1) o Judiciário, enquanto instância de poder, sempre foi masculinizado, sendo importante o rompimento das barreiras institucionais impostas às mulheres, também como elemento simbólico; 2) tribunais não são apenas corpos profissionais, como entes representativos da sociedade, de maneira que devem reproduzir a composição social; e 3) a mulher, enquanto ser social e político, detém uma experiência e voz própria, de maneira que, ao se tornar juíza, transpõe para sua interpretação jurídica essa situação; 4) cidadãs femininas podem se sentir melhor representadas e compreendidas quando perante juízas mulheres; e 5) o acréscimo de mulheres no processo decisório das cortes amplia os debates e melhora a qualidade de decisões colegiadas, e, inclusive, do processo decisório de seus colegas homens, pois impede que o raciocínio do Tribunal permaneça circunscrito a um único perfil, àquele old boys club.
A conscientização acerca da existência da insularização nos cargos de acesso e dos tetos de vidro sob os quais se encontram as juízas importa na medida em que se pretenda ter um Poder Judiciário efetivamente republicano, apto a encarar a sociedade sob todos os seus enfoques de forma pluralista e, de lado outro, de ser visto pela comunidade de jurisdicionados como reflexo representativo de um corte proporcional do tecido social. A discussão acerca dos modos de alcançar um Judiciário mais igualitário não perpassa apenas uma reflexão sobre a esfera pública, mas mesmo sobre como a instituição pode acolher e se conciliar com o âmbito familiar, com a acomodação equitativa destes dois lados da moeda.
Notas___________________________
1 “Mulheres Magistradas e a Construção de Gênero na Carreira Judicial”, 2020.
2 Nota Técnica 01/2017 da Comissão AJUFE Mulheres.