Artigo publicado originalmente pela Conjur, de autoria dos magistrados federais Débora Valle de Brito e Paulo André Espirito Santo Bonfadini
A Constituição de 1988 adotou um modelo de separação de poderes, estabelecendo, no seu artigo 2º, a independência e a harmonia entre eles. Como corolário da independência, temos a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário, que, revisitada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, estabeleceu que as custas e emolumentos serão destinadas exclusivamente ao custeio de seus serviços (artigo 98, §2º, da CF/1988).
Não apenas uma expressão da autonomia, a norma também tem caráter tributário. Trata-se da indicação clara de que o serviço judiciário se remunera por taxa, tributo destinado a remunerar os serviços específicos e divisíveis prestados efetivamente ou postos à disposição do contribuinte. Essa é exatamente a natureza do serviço jurisdicional: é prestado de forma individualizada, sob demanda, razão pela qual a sua retribuição, necessariamente, deve ser custeada por taxas. Do contrário, os processos sempre gratuitos e seriam instaurados independentemente do recolhimento de custas. Se elas existem para os que podem pagar, é porque o serviço deve ser remunerado para se investir na estrutura do Poder Judiciário (as custas não se destinam à remuneração de pessoal — é bom que se diga).
A Constituição foi precisa ao instituir a taxa como forma de custear serviços divisíveis: estabeleceu, com isso, que determinados serviços públicos devem ser arcados por quem os demanda e conforme a demanda, equilibrando gasto público e arrecadação, sem onerar a arrecadação de impostos e demais tributos não vinculados, os quais se revertem para todas as infinitas despesas públicas. Vale dizer que, ao menos para esses serviços — os específicos e divisíveis —, a Constituição previu tantos recursos quanto for a demanda, ante a natureza vinculada de sua forma de custeio.
A despeito de já terem se passado mais de 15 anos da Emenda 45/2004, as custas cobradas pela Justiça federal seguem em valor inferior às necessidades institucionais e não são, em sua totalidade, destinadas ao custeio do serviço prestado.
De fato, até o momento, o recolhimento das custas é realizado com base na Lei nº 9.289/1996 e elas são destinadas ao Tesouro Nacional, sendo repassadas sob a forma de duodécimos. Tal sistema de recolhimento limita o pleno exercício da autonomia financeira por parte do Poder Judiciário federal, dificultando a gestão dos recursos a ele destinados, especialmente após o advento da Emenda Constitucional 95/2016.
O atual cenário de limitação dos gastos da Justiça federal de forma global (e não apenas os gastos com pessoal ativo e inativo), e de não aprovação (ainda) do projeto do Fundo de Custas da Justiça Federal (PL nº 7.735/17), resulta em claro prejuízo ao serviço jurisdicional. O Judiciário federal tem sua demanda a cada dia aumentada, ante o princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, CF/1988) e possui custo unitário e individualizável (remunerado por taxa). Nesse contexto, aumentado o número de novos processos a cada ano, não pode a despesa da Justiça superar um patamar aleatoriamente estabelecido pelo constituinte derivado em 2016 (orçamento daquele ano), descolado da realidade de variação de demanda por serviço judiciário.
A título de exemplo, em 2016 o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, sediado no Rio de Janeiro, recebeu 276.016 novos processos de Juizado Especial Federal, ao passo que, em 2019, a demanda foi de 321.382. Já considerando a variável "casos novos de conhecimento", foram 266.568 em 2016 e 336.899 em 2019. Em outro ângulo, a primeira instância de toda Justiça Federal recebeu 1.834.822 novos processos em 2016; em 2020, o número subiu para 2.456.847 novos processos distribuídos. Observa-se um relevante acréscimo de demanda por serviço judiciário, sem a possibilidade de incremento proporcional das despesas da Justiça federal.
Com esses dados, a única matemática possível para compatibilizar a Emenda nº 95/2016 com o princípio da inafastabilidade da jurisdição é a redução dos valores individualmente gastos em cada processo judicial, o que, de forma pragmática, significa reduzir o valor pago a cada perícia realizada pela Justiça federal, em cada nomeação de advogado dativo ou de intérprete nos processos de pessoas pobres beneficiárias de assistência judiciária gratuita. Sem orçamento suficiente, muitas vezes se observa demora no pagamento de peritos, intérpretes, e advogados dativos, profissionais que justamente atuam em processos envolvendo pessoas (partes) mais vulneráveis.
Vale ressaltar que tais profissionais já percebem remuneração ínfima, que varia entre R$ 60 e R$ 400, com base em resolução do Conselho da Justiça Federal, o que dificulta sobremaneira a nomeação de peritos e intérpretes nos processos envolvendo as pessoas mais carentes economicamente. Esses valores pagos saem do próprio orçamento da Justiça federal.
De outro lado, grandes corporações seguem litigando na Justiça federal e pagando valores irrisórios a título de custas judiciais, a despeito de o custo individual do processo ser muito maior.
Não se discute que o novo regime fiscal impõe aumento da produtividade individual de cada magistrado e servidor, ante a inviabilidade do aumento de gastos. Mas não é possível admitir que a limitação de gastos afete as despesas que oscilam conforme a variável demanda por serviço judiciário, o que acaba por comprometer o direito fundamental de acesso à Justiça.
Nesse passo, a resistência à implementação do fundo de custas por suposta deferência ao regime fiscal instituído pela Emenda 95/2016 afronta a lógica de um sistema tributário pautado na capacidade contributiva, pois impõe aos mais pobres que suporte a precarização do serviço público, ao mesmo tempo em que desonera os mais ricos de arcar com os seus custos de forma proporcional à contraprestação do Estado.
Impõe-se destacar que também é do Rio de Janeiro o melhor exemplo de implementação de fundo de custas. A autonomia arrecadatória assegurada ao Tribunal de Justiça desde 1999, antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45/2004, permitiu-lhe ostentar não apenas posições relevantes no ranking de produtividade entre os tribunais de grande porte como também de acesso à Justiça. Tais dados revelam que a autonomia na arrecadação e gestão de fundo de custas são intrinsecamente ligados à melhoria da prestação jurisdicional, assegurando serviços públicos de qualidade aos mais pobres custeados pelos mais ricos.
Vale lembrar que a legislação brasileira, há muito tempo, na organização das finanças públicas, prevê a criação de fundos especiais.
Desde as primeiras Constituições da República, passando por diversas leis ordinárias, o Direito brasileiro é recheado de exemplos normativos que contemplam fundos especiais como forma de implementar finalidades públicas decorrentes de receitas específicas e vinculadas.
Para ficar apenas num exemplo marcante, basta lembrar a famosa e antiga Lei 4.320/64 (ainda vigente), que, nos seus artigos 71 a 74, estatui a possibilidade de se criar fundos especiais constituídos pelo "produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação".
Em outros vários dispositivos, a Constituição de 1988 prevê a criação desses fundos: artigos 159, inciso I, alíneas "a" e "b"; 161, inciso II e parágrafo único; 165, §5º, incisos I e III, e §9º, inciso II; 167, incisos IV, VIII e IX etc.
Então, por que os recursos arrecadados na Justiça estadual, a título de custas, são destinados ao próprio Judiciário e, na Justiça federal, o resultado da arrecadação se destina à União (Poder Executivo), em franca violação ao artigo 98, §2º, da CR/1988?
Sendo assim, a aprovação do Projeto de Lei nº 7.735, apresentado à Câmara dos Deputados pelo Superior Tribunal de Justiça, é a medida necessária para garantir aos mais pobres o efetivo acesso à Justiça, com todos os meios e recursos inerentes à ampla defesa, bem como garantir ao Poder Judiciário a arrecadação necessariamente variável ante a sua variável demanda, a ser custeada pela parcela mais rica dos litigantes.