Tempus fugit: uma despedida ao dentista, poeta e juiz

     
     

    19 de agosto de 2024, 13h13

    Homenagem a Sidmar Dias Martins
    (1957-2024)

    Tenho dificuldade com o excesso de formalismo no mundo do Direito. Os papéis sociais prevalecem sobre as relações pessoais. Levei muito tempo para enxergar a beleza do Direito escondida por trás desse formalismo.

    Em 2001, com 40 anos, passei no concurso de juiz federal. No início, fui me aproximando dos colegas que pareciam compartilhar os mesmos valores. Conheci Sidmar Dias Martins, então com 44 anos, um sujeito especial. Falava manso e não ficava ressaltando suas qualidades, algo tão comum no nosso meio.

    Antes da magistratura, Sidmar tinha sido dentista. Foi estudar Direito depois de anos de consultório. Quando ingressou na magistratura federal, tinha pouca experiência jurídica, mas muita experiência de vida.

    Com espírito agregador, mesmo sendo tímido, esteve sempre envolvido em ações nas quais os juízes se despiam do seu papel social e mostravam o seu lado humano. Foi assim no Natal Solidário, no qual juízes e servidores organizavam todo ano um Natal para os trabalhadores terceirizados da Justiça. Passávamos o dia servindo aqueles que nos serviam o ano inteiro e suas respectivas famílias. Eram distribuídas mais de mil cestas básicas. Lá estava ele, sempre bem-humorado, convidando mais juízes a participarem.

    Poesia e futebol

    Juntamente com Carlos Alberto Loverra e Higino Cinacchi, os dois juízes federais e músicos, estava ele lá naquele bar na esquina da avenida Ipiranga com São João, organizando todo ano o evento “Juízes que Cantam”, em que juízes federais, estaduais, do Trabalho, desembargadores e ministros deixavam a toga e a vergonha de lado e soltavam a voz em público.

    Divulgação

    Tinha de tudo, desde árias clássicas até o último sucesso do cantor Wando. Algumas atuações eram belíssimas, outras nem tanto. Sidmar nunca cantou, mas, em determinado momento da noite, criava coragem, deixava a timidez de lado, subia no palco, pedia só um fundo musical e declamava todo o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, seu poeta preferido.

    Também era chegado a uma partida de futebol. Bom de bola, se transformava em campo, parecia outra pessoa. Reclamava dos colegas porque o passe não saíra direito e continuava reclamando mesmo depois de encerrada a partida. Quando éramos da diretoria da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), Sidmar trouxe uma inusitada proposta: “vamos participar do campeonato de futebol da Justiça Federal”.

    Compramos uniforme, montamos às pressas o time, sem qualquer treinamento prévio, e nos inscrevemos no torneio organizado pelos servidores. Nossa participação foi um fracasso, perdemos todas as partidas, a maioria de goleada, mas fomos a sensação do torneio. Nossos jogos tiveram as arquibancadas cheias, quase todos torcendo contra o nosso time. Todos os adversários queriam tirar a sua casquinha do time dos magistrados.

     

    Depois da nossa fracassada participação, Sidmar não desistiu e apostou mais alto. Disputaríamos um jogo contra a seleção brasileira de masters, de Ademir da Guia, Amaral, Wladimir, Tobias e cia. Era uma jogada arriscada. Fizemos uma reunião prévia com o adversário, reforçamos nosso time com alguns maridos das juízas bons de bola, colocamos até o então ministro do STJ Ari Pargendler na nossa ponta direita.

    Não fizemos feio. Perdemos, é verdade, mas só de 2 a 1. Nosso gol foi marcado por Renato Luís Benucci, hoje dono de cartório em Santa Catarina. Não estou contando bravata sobre nossa atuação heroica. O vídeo da partida encontra-se nos arquivos da Ajufesp.

    Trabalho, amigos e amor

    Participamos de quatro gestões da nossa associação regional. Escrevia regularmente uma crônica em nosso jornal. Em um determinado momento, seu nome era consenso para ser o candidato a presidente. Sidmar cortou a articulação pela raiz, falar em público não era com ele, seu papel era outro.

    Nunca se aventurou na carreira acadêmica, concentrando-se no trabalho jurisdicional. Virou titular da 2ª Vara Federal de Sorocaba em 2006. Não quis se remover para a capital. Gostou de lá e lá ficou. Era muito querido pelos servidores e por toda a comunidade jurídica. Foi cedido ao Conselho Nacional de Justiça durante a gestão do ministro Cezar Peluso, deixando mais amigos também em Brasília.

    Suas decisões eram cuidadosamente elaboradas. Preocupava-se com a clareza do texto, como se escrevesse diretamente para as partes. Gostava de conversar com os colegas sobre as várias teses jurídicas do dia a dia da Justiça Federal.

    Sidmar começou a namorar a então desembargadora federal Suzana Camargo por volta de 2001. O namoro transformou-se em união estável para vida toda. Suzana conta com muito humor o seu primeiro jantar com o então juiz federal substituto de terno e gravata, cumprindo à risca todo o ritual do cavalheirismo, abrindo a porta do carro etc. Mais detalhes só ela tem o direito de contar. O relacionamento dos dois foi uma ponte para uma convivência mais direta entre juízes de primeiro grau e desembargadores.

    Carta

    Não tinha receio de se posicionar quando o mais cômodo seria permanecer em silêncio. Em 2022, eu estava envolvido no movimento da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito, lida naquele dia 11 de agosto no pátio da Faculdade de Direito da USP. Depois de concluída a redação da Carta, sugeri que cada um dos autores submetesse o texto primeiro para assinatura dos amigos mais próximos. Sidmar foi o primeiro juiz federal a receber o texto.

     

    Sua reação foi a melhor possível. Elogiou o texto e passou a buscar a adesões do colegas [1]. Em um trabalho formiguinha, chegamos a mais de cem assinaturas de juízes federais como signatários originários da Carta em poucos dias. Depois com a divulgação da Carta na internet, chegamos a mais de um milhão de assinaturas e ajudamos a impedir o retrocesso em nossa democracia.

    Exemplo

    Em julho último, Sidmar entrou de férias e foi para a sua cidade natal, a pequena Ipuã, no norte do estado de São Paulo, visitar sua mãe, Dona Rosaria, a pessoa mais importante de sua vida, como sempre fazia questão de registrar.

    No dia 18 de julho, uma quinta-feira, resolveu tirar um cochilo antes do almoço com a mãe. Estava feliz, a vida lhe proporcionara mais do que ele poderia imaginar. Faleceu dormindo, sua alma voou como um passarinho, deixando mãe, companheira, irmãos, enteada, parentes, um batalhão de amigas e amigos e, sobretudo, um exemplo de humanidade.

    ([1]) “ — Ricardo, gostei muito. Está na hora de fazer alguma coisa contra esse cara antes de ser tarde demais. O texto tá didático. Não tem como alguém ser contra. O pessoal pode dar para trás apenas por medo. Conta com a minha assinatura.”

          — Obrigado, Sidmar. Sabia que podia contar contigo, mas esse negócio vai ser muito grande. Estamos contando com gente do Ministério Público, Tribunal de Contas e vamos conseguir apoio da Faculdade de Direito. Teremos uma cerimônia de leitura no 11 de agosto lá na São Francisco. Pode até ter cobertura da TV. Quanto mais juízes federais assinarem melhor. Você pode ajudar.

          — Meu amigo, como faço? Vamos pegar mais assinaturas.

          — É retransmitir o texto aos juízes com potencial para aderir. Contatá-los e, em caso positivo, repassar o nome completo para mim pelo WhatsApp. A gente vai fazendo a rede, comendo pelas beiradas. Vou te passando diariamente a lista atualizada de adesões.”

     

    NASCIMENTO, Ricardo de Castro. Bastidores: a articulação da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. São Paulo: Hucitec, 2023, pg. 117.

    • é juiz federal, doutor em direito e ex-presidente da Ajufesp (Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul).

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