Condição de imigrante da mulher que sofre violência doméstica eleva sua dificuldade em acessar socorro para si e seus filhos
Por Raquel Dodge e Inês Virgínia Soares
Publicado em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2025/02/o-direito-de-ser-mae-livre-de-ameacas.ghtml
O documentário “Convenção de Haia: mães em luta” — concebido por Jerusa Campani para a GloboNews e disponível no Globoplay — evidencia a urgência de aplicar a Convenção da Haia de 1980 à luz da Constituição de 1988, na perspectiva de gênero e de proteção à infância.
A Convenção versa sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças, atribuindo ao juiz do país de residência habitual as decisões sobre sua guarda e bem-estar. Determina também que o país de destino garanta o retorno da criança no prazo de até seis semanas.
Há duas exceções a essa regra. Primeiro, quando a remoção for antiga (intervalo superior a um ano entre a chegada e a ação judicial para o retorno). Nesse caso, estabelece que a volta não será obrigatória se a criança estiver adaptada ao novo ambiente. Segundo, quando a remoção for nova (intervalo inferior a um ano), e há risco grave de perigo físico ou psicológico para a criança ou qualquer outra situação intolerável.
No documentário da GloboNews, as mães relatam violência doméstica contra elas, violência sexual contra filhos por parte do pai e ausência de investigação contra o agressor. Além disso, abertura de investigação contra elas, pelo crime de sequestro internacional dos próprios filhos, por terem retornado ao Brasil para fugirem de relacionamentos violentos. O documentário também revela a dolorosa experiência de mulheres afastadas de seus filhos por decisões judiciais brasileiras baseadas na Convenção da Haia.
Em nosso país, a Constituição preside à interpretação de todas as normas, inclusive das convenções. Mães e pais têm direitos e deveres iguais, inclusive quanto à guarda dos filhos. As mulheres e as crianças têm direitos constitucionais de estar a salvo da violência, com diretriz de punição severa do abuso, da violência e da exploração sexual.
As leis brasileiras — especialmente a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente — coíbem diversos tipos de violência contra a mulher e as crianças e lhes garantem proteção judicial. As violências física, psicológica e patrimonial são as mais frequentes e envolvem ameaças, humilhações e coações.
A Convenção da Haia, interpretada à luz da Constituição, ao garantir o bem-estar da criança, deve tratar a mulher como titular de direitos constitucionais, assegurar-lhe o direito de não permanecer em relações domésticas abusivas para si e seus filhos e de ser tratada como guardiã deles.
A condição de imigrante da mulher que sofre violência doméstica eleva sua dificuldade em acessar socorro para si ou seus filhos, sobretudo quando é discriminada, não domina o idioma ou não conhece plenamente os instrumentos jurídicos para afastar o agressor. Essa vulnerabilidade, que muitas vezes ampara a subtração da criança sem o consentimento do genitor, aumenta quando a decisão judicial determina o retorno, e há risco de responsabilização penal da mãe pelo crime de sequestro.
A questão é complexa sobretudo porque a convenção é anterior à Constituição. Ao ser pactuada, havia uma configuração migratória diferente e normas insuficientes para garantir direitos a crianças e mulheres. Atualmente, as ações baseadas na Convenção da Haia não podem ignorar esses fatores, especialmente o robusto arcabouço jurídico, que protege as mulheres, e a jurisprudência pátria, que dá crédito aos relatos de violência doméstica.
Nesse cenário de separação e dor, o melhor caminho para o Brasil honrar seus compromissos internacionais passa pelo cumprimento dos direitos das mulheres e das crianças garantidos pela Constituição.
*Raquel Dodge foi procuradora-geral da República (2017/2019), Inês Virgínia Soares, desembargadora federal, é juíza de enlace da 3ª Região para a Convenção da Haia de 1980