Os dados que apontam que a Justiça brasileira é cara em comparação com outros países só fazem sentido levando-se em consideração especificidades do sistema brasileiro que não estão sendo observadas, segundo afirmam entidades e representantes do setor ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Os principais portais de notícias do país replicaram, em uníssono, um levantamento do Tesouro Nacional que mostra que o sistema judicial do Brasil custa 1,6% do PIB, o que o coloca na cabeceira de uma lista de 53 nações.
A falta de contexto, no entanto, prejudica o entendimento dessa informação. Ninguém se lembrou de que a Constituição de 1988, para corrigir as distorções traumáticas causadas por um período de ditadura civil-militar, delegou ao Poder Judiciário uma carga de trabalho inédita até então.
O aumento da responsabilidade da Justiça sobre a manutenção do sistema democrático embute um custo financeiro para garantir que a máquina continue funcionando.
Comparação problemática
O principal problema do levantamento é que não fica claro se a comparação entre os países é justa: o Tesouro Nacional, afinal de contas, não informa se o pagamento dos salários está incluído no cálculo do custo da Justiça de outras nações.
Na França, por exemplo, a folha de pagamento de juízes e servidores fica alocada sob a rubrica dos gastos do Poder Executivo, e não especificamente do Judiciário.
Sem levar isso em consideração, o cálculo da proporção do PIB alocada em gastos em um determinado setor perde o sentido, já que grandezas incompatíveis estão sendo igualadas, conforme apontam entidades de defesa da magistratura consultadas pela ConJur.
A escolha dos países que estão sendo comparados ao Brasil é outro ponto que causa estranheza: estão na lista, por exemplo, Kosovo, que não é sequer reconhecido como país pelo Brasil; o território autônomo de Hong Kong; a cidade de San Marino, que tem 61 km² de extensão; e o arquipélago de Malta, que tem 316 km² (só a cidade de São Paulo tem 1.521 km²); além de economias de “destaque” como Letônia, Eslovênia, Eslováquia e Estônia.
Também fica incompleta a comparação sem que se ressalte o volume de processos com que cada país precisa lidar. Um desembargador ouvido pela ConJur destacou que o Brasil produz um volume de demandas muito superior ao de outros países considerados democráticos e que possuem estrutura similar.
O aumento do investimento em tecnologia, que vem sendo constante nos últimos anos, também ajuda a explicar o alto custo do Judiciário brasileiro, mas ele se traduz em melhor prestação jurisdicional.
Por fim, o levantamento do Tesouro Nacional, como noticiado pela mídia, deixa de levar em conta o fato de que o acesso à Justiça é muito mais amplo no Brasil do que em outros países: a concessão do benefício da Justiça gratuita, a existência de um órgão de assistência judicial custeado pelo Estado e a amplitude de temas e assuntos que hoje estão sob atribuição da Justiça, desde o direito à saúde até questões de família e de proteção de gênero, ajudam a explicar por que o sistema brasileiro é um dos mais caros do mundo — e também é um dos maiores e mais acessíveis do planeta.
Um representante da magistratura resume a questão em poucas palavras: “A notícia contém equívocos porque pretende comparar realidades diferentes como se fossem idênticas, desconsiderando as peculiaridades do sistema de Justiça de cada país”.
Manifestação das associações
Em nota conjunta, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) ressaltaram que o estudo do Tesouro Nacional falhou ao não levar em conta as particularidades dos países incluídos na lista. As entidades citaram exemplos de nações europeias com realidades muito diferentes da brasileira.
“Portugal, por exemplo, não inclui nas despesas de seu Judiciário os custos com infraestrutura e servidores — o que, no Brasil, é somado às despesas dos tribunais. Países que aparecem no levantamento como os mais econômicos — como Suíça, Áustria, Holanda, Bélgica e Suécia — não têm uma população tão grande quanto a brasileira e tampouco o número de processos ajuizados e julgados registrados no Brasil. Esses países têm, portanto, uma demanda muito menor para seu sistema de Justiça. A entrada de novos processos nos tribunais brasileiros é uma das mais altas do mundo, conforme divulgado pelo Conselho Nacional de JusUça (CNJ)”, diz trecho da nota.
Já a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho afirmou, em nota assinada pela sua presidente, juíza Luciana Conforti, que “a matéria trata como iguais países que se encontram em distintos patamares de desenvolvimento econômico e social”. Para a instituição, não há como analisar o Poder Judiciário somente com base em questões numéricas e monetárias.
“Outro aspecto importante a ser considerado é que o Poder Judiciário brasileiro tem orçamento próprio, enquanto que, em outros países, o valor destinado à justiça está inserido no orçamento do poder executivo. Nesse sentido, cabe apontar que a própria reportagem adverte acerca da ausência de detalhamento dos dados, o que, por si só, desaconselha comparativos”, diz o texto.
Clique aqui para ler a nota da AMB e da Ajufe na íntegra.
Fonte: Matéria divulgada pelo Conjur.