Vivemos um lamentável confronto eterno de ideias, diz novo presidente de entidade de juízes federais

     

    Publicação originalmente da Folha de S.Paulo.

    À frente da Ajufe, Eduardo Brandão afirma que decisões técnicas têm sido vistas como políticas

     

    Empossado em meio à pandemia, Eduardo André Brandão, 49, assume a presidência da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) sob a responsabilidade de defender não só a independência do Judiciário, mas também os magistrados dos ataques que se proliferam nas redes sociais.

    Em entrevista à Folha, Brandão reclama que ultimamente as sentenças de juízes têm sido vistas como políticas, e não técnicas. Ele teme que os ataques virtuais incentivem atos extremos contra magistrados.

    "O que realmente me preocupa são esses ataques pessoais às autoridades. Porque eventualmente algum aventureiro pode fazer e passar do limite. Mas eu não vejo como uma ameaça à democracia", diz o presidente da Ajufe.

    Ele faz parte de uma ala da entidade cujos opositores diziam ter "postura de hostilidade" em relação ao governo Jair Bolsonaro —algo que Brandão sempre negou.

     

    Brandão torce para que um juiz federal seja conduzido ao Supremo em pelo menos uma das duas indicações a que tem direito o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) até o final de seu mandato, em 2022.

    "Dos 11 ministros do Supremo hoje só dois são juízes de carreira, a ministra Rosa Weber é do Trabalho e o ministro Fux no estado do Rio, e nenhum juiz federal."

     

    Entrevista

     

    O sr. assume uma entidade de juízes federais enquanto o país enfrenta uma pandemia e uma crise política. Esse contexto pode ter reflexo no Judiciário? No Judiciário há um reflexo, sinceramente, positivo. Com o processo eletrônico a gente dá uma resposta à sociedade de conseguir manter a produtividade. Acho que algumas alterações vieram para ficar e não mudam mais, mesmo depois da pandemia.

    É triste o que a gente está vivendo, uma questão sanitária muito séria, mas o Judiciário conseguiu dar uma resposta à sociedade, tanto na produtividade como nas decisões. Quanto à questão política, o que a gente sente é a necessidade de estabilidade do país.

    O presidente Bolsonaro recentemente sinalizou que não obedeceria a decisões judiciais que ele considerasse equivocadas. Como o sr. vê esse posicionamento? A Ajufe existe para prezar pela independência do Judiciário. Com a Lava Jato, inaugurou-se uma nova e triste era de agressões à imagem dos juízes por suas decisões. A associação passou a defender, além da independência do Judiciário, também a imagem dos juízes agredidos. Isso agora cresceu, até pelas redes sociais, e chegou aos juízes do Supremo.

    Nos preocupa muito esse clima de desobediência, não só do presidente da República, quando ele falou isso, mas essa ideia de cada decisão judicial ser discutida como uma decisão do Legislativo. Como se fosse no campo das ideias e o Judiciário estivesse fazendo política em todas as decisões. E não é assim.

    Obviamente o juiz não está alheio ao mundo, mas considerar que toda decisão tem que ser debatida como se fosse uma agenda política assusta um pouco. Isso nos preocupa muito. Na Lava Jato se inaugurou esse tipo de agressão a juízes, de comentar que ele é isso, ele é aquilo, ela é isso, ela é aquilo, e olha no que desaguou. Uma coisa que realmente a gente lamenta muito.

    Também se discute se a Justiça tem interferido na competência dos outros Poderes, como no caso da nomeação de Alexandre Ramagem à direção da Polícia Federal, barrada pelo STF. Como evitar eventuais abusos? O Judiciário é demandado. Ele é inerte e é demandado. Quando as ações entram e com base na independência judicial, o juiz decide do jeito A ou do jeito B. O Judiciário tem que dar a resposta através do sistema recursal. Eu não vejo como criar um limite à atuação do Judiciário.

    Principalmente após a Lava Jato, as decisões judiciais passaram a ganhar um destaque na sociedade, na mídia, e acabou tendo um reflexo político, apesar de não ter sido o objetivo. Eram decisões apurando crimes, apurando condutas erradas, mas a dimensão que se deu acabou ganhando essa conotação. Não vejo como criar um limite.

    Acho que todos os juízes têm essa preocupação do mérito administrativo, de o que o legislador deve fazer, o que o Executivo deve fazer e onde o Judiciário deve atuar. Mas, em caso de dúvida, em caso de insegurança, não tem como. O Judiciário é demandado e tem que atuar. Não tem como criar uma esfera de atuação. A linha é muito tênue.

    Ao defender a desobediência a ordens judiciais, o presidente se escora em um suposto apoio de militares às suas decisões. Como o sr. vê isso? Eu não concordo. As Forças Armadas não existem para serem usadas como poder moderador. Eu não vejo dessa forma. Eu vejo sim um excesso de confronto. O conflito de ideias é normal e é até bom para a democracia. Mas o confronto eterno que a gente vive é lamentável.

    O ministro Dias Toffoli disse que essa dubiedade do presidente Bolsonaro em relação à democracia preocupa muito. O senhor vê risco de um golpe militar ou de ataque à democracia? Eu acho que as instituições estão funcionando. E que sigam assim. Só queria menos confronto, eu quero estabilidade. O que realmente me preocupa são esses ataques pessoais às autoridades. Porque eventualmente algum aventureiro pode fazer e passar do limite. Mas eu não vejo como uma ameaça à democracia.

    E em relação aos fogos de artifício sobre o STF? São ataques pessoais ou à instituição? E como o sr. vê esses ataques? Considero que os fogos lançados contra o prédio do Supremo em Brasília representam um ataque à instituição e, por consequência, uma ameaça à toda a Justiça do Brasil. É inadmissível, em pleno século 21, em um país com a democracia consolidada, nos depararmos com atos irresponsáveis de vandalismo e intolerância que buscam afrontar a independência judicial.

    Acredito que seja uma atitude isolada de um grupo de inconsequentes que já está recebendo a devida reprimenda legal. É um ato tão absurdo que não seria plausível atribuir a sua concepção a qualquer autoridade de Estado, muito menos ao presidente da República.

    O senhor vê risco de um choque de Poderes? Não seria um choque de Poderes. Acho que seria assim um excesso de confrontos. Decisão judicial você tem que recorrer. E cumprir, quando não couber mais recursos. E qualquer autoridade tem que respeitar, e não estou só falando do presidente da República.

    E qual o papel do Judiciário frente a um governo que esconde dados de saúde em meio a uma pandemia e cujo presidente incentiva aglomerações? Eu acho que o Judiciário tem que ser demandado. O presidente tem uma força impressionante, qualquer ato dele é seguido, afinal ele é o presidente. Mas o Judiciário só pode agir quando demandado. Não tem como você pensar num protagonismo do Judiciário porque, neste momento, eu acho que ele tem que ficar esperando o que vai acontecer.

    Mas não foi esse o caso do inquérito das fake news, que foi aberto de ofício? O sr. achou uma boa decisão? Não é uma coisa normal de acontecer, é uma coisa que surpreendeu, mas a gente entende as circunstâncias. Eu tenho que defender a independência judicial. Eu tenho certeza de que os ministros tiveram a sensibilidade de entender que aquilo era necessário naquele momento, apesar de não ser uma praxe. E eu acho que os ministros deixaram claro isso. A crítica que se faz ao Supremo tem que ser compreendida pela excepcionalidade do momento.

    Nos últimos anos houve um desgaste para o Judiciário em geral em questões como auxílio-moradia e reajuste em meio à crise. Como vai ser isso nos próximos anos? A questão remuneratória do juiz vai ter que ser tratada com seriedade e transparência. Nós temos um direito remuneratório que está na Constituição que é a revisão dos subsídios, que em tese deveria ser anual, como qualquer carreira tem em dissídio coletivo.

    Para os servidores públicos isso vira sempre um cavalo de batalha, e essa revisão anual acaba sendo quadrienal. Só tem saído no final da legislatura. Isso tem que ser colocado à mesa. Quando veio o auxílio-moradia, veio pela defasagem. O juiz federal ganhava 40% do juiz estadual no Rio de Janeiro. Isso tem que ser tratado.

    Mas isso é um problema das Justiças estaduais, com remunerações exageradamente altas, ou uma questão da Justiça Federal, cuja remuneração não é equivalente? Só pode haver teto constitucional se houver revisão anual. O limite máximo de pagamentos, que é super defensável, está ligado à revisão anual de subsídios. Infelizmente essa discussão se separou e toda vez que o Supremo manda o projeto anual, sempre é tratado como imoralidade, que não é o momento e tal.

    Nos últimos 15 anos tivemos seis revisões de subsídio. Isso não é noticiado. Os estados cujos Tribunais de Justiça têm uma força maior acabaram conseguindo penduricalhos. Não estou defendendo eles, estou criticando a desigualdade de tratamentos.

    Mas nós vamos poder discutir desigualdade remuneratória na pandemia ou até o final do ano que vem? Não, não podemos. Porém a questão da transparência das remunerações tem que ser discutida. Como podem nos estados, que estão falidos e pedindo dinheiro para a União, todos os profissionais da carreira jurídica ganharem mais que os da [carreira] federal?

    O presidente Bolsonaro tem duas escolhas, se terminar o mandato, para o Supremo. Qual a expectativa do senhor em relação a essas duas nomeações? Eu espero que tenha um juiz federal. Dos 11 ministros do Supremo hoje só dois são juízes de carreira, a ministra Rosa Weber é do Trabalho e o ministro Fux no estado do Rio, e nenhum juiz federal.

     

     


    Eduardo André Brandão, 49
    Formado pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e mestre em Jurisdição Administrativa pela UFF (Universidade Federal Fluminense), é juiz federal na 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo). Participou das três últimas gestões da Ajufe

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