Artigo originalmente publicado pelo Conjur e escrito pelo juiz federal Cleberson Rocha*.
O governo está chamando a “nova Previdência”, com equilíbrio atuarial e adoção de regime de capitalização, de uma solução para acabar com privilégios — que seriam, em especial, dos servidores civis públicos —, tornando iguais os regimes públicos e o Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Isso é uma falácia, para não dizer uma mentira.
A reforma previdenciária proposta pelo governo esconde informações essenciais ao debate no intuito de disfarçar a falta de argumentos, uma vez que utiliza como bode expiatório os servidores — que já passaram por reforma previdenciária própria com resultados sendo colhidos.
Nas atuais condições, o sistema dos servidores civis já é mais oneroso para o servidor público do que o RGPS para o servidor ou empregado a ele vinculado.
Com efeito, o sistema já é igual quanto ao valor objeto da contribuição, pois, desde a instituição do regime complementar e obrigatório para os servidores da União (Lei 12.618/12), não pode haver contribuição e benefício superior àquele estabelecido como teto do RGPS, e se o servidor quiser benefício maior, deverá contribuir para a previdência complementar.
Logo, tais regimes são semelhantes quanto aos valores de benefício e às contribuições, sendo inclusive mais dispendioso economicamente para o servidor, cuja contribuição é de 11% sobre a remuneração, ao passo que no RGPS é escalonado de 8 a 11%.
O que realmente motiva o déficit que vinha sendo causado pelo servidor civil da União é: a) a demografia mais favorável — sobrevida e longevidade —, o que pode ser ajustado sem necessidade de profunda reforma; b) a limitação de gastos do Estado, que impede novas contratações para reposição de vagas abertas por servidores que se aposentaram, reduzindo as contribuições para o sistema; c) a instituição do regime de capitalização em 2012, que implica redução da contribuição para o sistema de repartição, pela limitação de contribuição até o teto do RGPS e pela ausência de novos entrantes no regime.
Quanto à alínea “a”, ressalto que meros ajustes podem resolver a questão, sem necessidade de mexer em direitos adquiridos. Já quanto à alínea “b”, o Estado adotou política restritiva de pessoal que deprime o nível de contribuição para o sistema.
Finalmente quanto a “c”, trata-se do custo de transição para o sistema de capitalização, que não pode ser suportado pela última geração sob o regime de repartição simples (pacto de gerações), sob pena de ofensa ao direito adquirido e ao pacto até então estabelecido. O Estado tem que conseguir recursos do orçamento geral para pagar esse custo. Trata-se de honrar um compromisso de gerações passadas, sem retirar ou aviltar direitos de uma geração inteira — a última, sob o regime de repartição, que teria, nessa lógica equivocada, de pagar os benefícios das gerações passadas e fazer caixa para pagar o custo da transição para o regime de capitalização, não sobrando recursos para seus próprios benefícios quando não puder mais trabalhar.
Aliás, é o que se tem verificado em países que adotaram o regime de capitalização, como na Bolívia, onde as pensões correspondem à média de 20% do salário médio da vida ativa do trabalhador, e no Chile, cujos benefícios no novo regime chegaram a ser reduzidos a 15% da média do salário da atividade, chegando a 3,8%, nos casos de trabalhadores de baixa renda, segundo recente relatório da OIT.
Registre-se que as reformas já feitas pela União (EC 20/98; EC 41/2003 e Lei 12.618/12 — esta já implantou o regime de capitalização) não tiveram tempo suficiente para gerar economia e equilibrar o sistema. Dessas reformas, a instituição de previdência complementar do servidor não foi ainda implementada pela maioria dos estados e municípios, o que certamente contribuiria para equacionar o déficit do setor público.
O que se pode fazer quanto aos trabalhadores dos setores público e privado é ajuste à nova demografia, aumentado o tempo na atividade, e, eventualmente, ajustando o valor de contribuições, sem necessidade de profunda reforma.
Usando de meias verdades e falseando os dados, como o de que a União já instituiu o regime complementar e o servidor que ingressou após 2012 já terá o benefício limitado ao teto do RGPS, o governo quer “reformar” o sistema do serviço público para retirar ou aviltar direitos garantidos aos servidores que já ingressaram no serviço público, garantidos por duas reformas (EC 20/98 e 41/03), e que não têm mais tempo hábil de se ajustarem às novas regras de benefício, com realização de poupança para um plano de capitalização.
Essa geração de servidores civis seria o combustível para a decolagem da nave da “nova Previdência”. O problema é que o combustível é queimado na decolagem, tal qual se quer extinguir os direitos de uma geração inteira, acumulados durante anos — alguns com mais de 35 anos de contribuição — para a implantação de um sistema (semelhante ao RGPS e ao de capitalização) que já existe e está em funcionamento na União desde 2012, por força da EC 20/98 e da Lei 12.618/12.
A reforma que poderia gerar economia, sem aviltar direitos, pelo contrário, promovendo igualdade, seria no regime do servidor militar, que gera anualmente déficit de mais da metade do total do serviço público da União (R$ 42 bilhões em 2018) para pagar benefícios de inativos e pensionistas que representam 62,29% do gasto total de pessoal das Forças Armadas em 2018, conforme dados extraídos do Siafi.
Noutros termos, o gasto com inativos e pensionistas militares representou, em 2018, 62,29% do gasto total com pessoal militar.
Registre-se que a média de idade para inativação dos militares é baixa, aproximadamente 10 anos a menos do que a média de aposentadoria do servidor civil.
Em outro extremo desse cálculo, não há contribuição do militar para a reserva remunerada ou para a reforma militar, pois eles somente contribuem com 7,5% para a pensão de dependentes, inclusive de suas filhas, que não casam nem se empregam para não perderem essa benesse.
Ainda quanto à pensão, é preciso dizer que ela foi extinta para as filhas dependentes de militares que ingressaram depois da MPV 2.225/01, mas ainda continuam a ser concedidos para as filhas dos militares que ingressaram até 31/12/2000, ou seja, em pleno século XXI, estamos dizendo que elas são discriminadas socialmente e que não podem se empregar ou que têm dificuldade de manter relação conjugal em razão da atividade do pai militar.
Esse privilégio poderia ter sido cortado desde 1º de janeiro de 2001 para qualquer pedido posterior, mas foi mantido até hoje pela citada MPV para os que ingressaram antes de 2001 (Art. 32. Ficam assegurados os direitos dos militares que até 29 de dezembro de 2000, contribuíam para a pensão militar correspondente a um ou dois postos ou graduações acima da que fizerem jus).
Registre-se que, além de não fazerem a reforma previdenciária dos militares, mandaram proposta de reestruturação da carreira, com aumento no valor dos soldos.
Observe que a reforma previdenciária dos militares poderia ser feita por lei ordinária e até por medida provisória, como foi a última alteração no regime da categoria (MPV 2.215/2001), mas o Planalto não tem o mesmo ímpeto que tem contra o servidor civil. Por que será?
A reforma desnecessária do regime previdenciário dos servidores civis, tocada a todo vapor por impulso do mercado e da grande mídia, seria forma de jogar nas costas do servidor civil o déficit total do sistema, causado pela ausência de contribuição e pelas regras frouxas de reserva, reforma e pensão dos militares, pelas opções do Estado em não repor os quadros do servidor civil e pela adoção, desde 2012, do regime de capitalização na previdência do servidor civil da União (Lei 12.619/12).
Veja que impressionante, o servidor civil da União já está no sistema de capitalização desde 2012 e com aplicação de normas mais graves do que as aplicáveis ao segurado do RGPS, uma verdade que o governo não fala.
As mentiras contadas mil vezes se tornarão verdade se aprovada a “nova Previdência” em prejuízo do servidor público civil da União, com a supressão e aviltamento de direitos adquiridos ao longo de uma geração, posto que ela — a reforma, com instituição do regime de capitalização e corte de privilégios — já foi feita e está em implementação.