Redução de vencimentos enquanto discriminação e fragilização dos servidores públicos federais

    Por José Antonio Savaris

    Há um modo muito comum de se compreender as instituições públicas, porventura de forma inconsciente. Ele nos diz que a máquina administrativa é desnecessariamente grande e, por conseguinte, custosa em excesso.

    Percebe-se igualmente uma crença bastante difundida, de que os servidores públicos coletam da pátria muito mais do que oferecem. Seriam os apaniguados, os privilegiados detentores de um regime trabalhista diferenciado que lhes outorga uma inaceitável condição de invulnerabilidade.

    Há, enfim, quem tome os servidores por pessoas que se desenvolvem às custas do Estado, isto é, às custas de toda a sociedade. Já foi até verbalizado há pouco tempo que os servidores seriam uma classe peculiar de parasitas.

    É que desde a perspectiva puramente econômica, as despesas decorrentes da remuneração devida aos servidores públicos são consideradas obstáculos ao aumento de gastos discricionários e investimentos sociais, à consolidação dos orçamentos e à acomodação dos mercados financeiros.

    De certa forma, em contexto social de alta complexidade e opacidade, a ideologia e a política de austeridade lançam mão dessa interpretação social, autêntico mapa mental, para desqualificar o setor público, mediante o discurso de má gestão, ineficiência, corrupção e desperdício.

    Pode-se compreender, então, como é sedutor o argumento político que, em contexto de grave crise econômico-financeira, partindo da ideia de que os servidores públicos recebem mais recursos do que seria economicamente justificável, propõe, pretensamente em favor da cidadania, uma espécie de “menos Estado e mais sociedade civil”, afetando a suposta invulnerabilidade daqueles.

    Isso ficou muito claro na última reforma constitucional dos sistemas previdenciários, materializada na Emenda Constitucional 103, aprovada em novembro de 2019. O argumento de crescente descontrole orçamentário fez fragilizar ainda mais as posições jurídicas dos trabalhadores em geral, mas inegavelmente as restrições foram mais profundas nos regimes próprios dos servidores públicos federais. E já havia sido assim por ocasião das Emendas Constitucionais 20/1998 e 41/2003.

    Redução de vencimentos dos servidores públicos federais

    Viremos a página. O pano de fundo é o mesmo; em cores mais intensas, porém. À crise econômico-financeira pela qual passa nosso país e ao crescimento inexpressivo de seu PIB em 2019 sucedem, com a pandemia do COVID-19, trágicos eventos históricos, com efeitos ainda não imagináveis sobre o tecido social, os sistemas de saúde, a condição de vida das pessoas e a economia.

    O cenário é de extrema insegurança econômica e social. A necessidade de proteção social não pode mais ser escondida ou subestimada. É também manifesto que faltam condições materiais para colocar em marcha ações de combate à doença e manter a atividade econômica e articulação social. Estamos envoltos, uma vez mais, em uma situação de grave e extrema crise das finanças públicas.

    Pois é justamente nesse contexto de crise e emergência social que surge novo projeto do Governo Federal, que estaria a objetivar, por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a imediata redução de vencimentos, subsídios, gratificações e demais parcelas remuneratórias de caráter permanente do funcionalismo federal, com redução de jornada, em até 25% (vinte e cinco por cento)[1].

    A proposta articula com a dificuldade de manutenção da máquina pública, a necessidade de redução de gastos e o direcionamento de recursos ao sistema de saúde. O remédio a ser proposto seria uma intervenção restritiva que impõe sacrifícios financeiros aos servidores públicos federais, implicando importante diminuição de rendimento pelo período de 4 (quatro) anos. Subjacente à ideia se percebe um ataque que busca instrumentalizar direitos mais elementares dos servidores públicos federais com vistas a uma pretensa maximização de interesses de toda coletividade.

    O projeto busca elevar as receitas destinadas ao sistema de saúde em razão da pandemia do COVID-19 – medida sensível e indispensável, por evidente – sem impor ao Poder Público o impacto financeiro correspondente. Com isso incorre em contradição: em contexto de emergência econômica, em vez de assegurar maior proteção social em termos equitativos, a proposta fragiliza, de forma repentina e inesperada, um grupo específico de pessoas.

    Uma das formas mais importantes de proteção social dos trabalhadores em geral, incluindo-se aqui por evidente os servidores públicos, é a garantia de remuneração por seu trabalho. A desproteção dos servidores públicos justamente em situação de crise econômico-financeira culmina por debilitar esses trabalhadores, os quais sequer detêm autorização legal para buscar outro meio para substituir a parcela de sua renda que será suprimida, por força de restrições específicas encontradas em seu estatuto jurídico.

    Se no cenário de emergência econômica e social, os servidores públicos federais são os únicos destinatários de medidas sacrificiais, enquanto todos os demais agentes econômicos, segundo se divulga[2], devem ser em alguma medida auxiliados pelo Poder Público, resta concluir que estão sendo desigualados, esses servidores, discriminados mesmo.

    Redução de vencimentos dos servidores públicos federais

    Esse modo desqualificador de ver os nossos servidores públicos não toma em conta que a eles foi atribuído, no plano constitucional e por legislação específica, um complexo de direitos, deveres e incompatibilidades muito particular. Também desconsidera a imposição de metas gerais e específicas, os mecanismos de supervisão, as sanções normativas. Mais do que tudo, esse olhar busca não enxergar o sujeito humano e a necessidade de serem respeitados seus direitos fundamentais.

    Por isso é que surgem propostas políticas com soluções simples para melhorar a economia, mediante corte obrigatório, unilateral e abrupto dos salários dos servidores. Igualmente por isso alguns as aplaudem, demonstrando indiferença à injustiça e ao sofrimento humano. É como se a ética adequada ao trabalho fosse a da precariedade, da insuficiência e da insegurança do trabalhador. Não há lugar seguro, porém, em uma comunidade em que não se protegem os direitos.

    Talvez nada disso precisaria ter sido dito. Talvez fosse suficiente expressar que os nossos servidores públicos, assim como todos os demais trabalhadores, têm em seus vencimentos a fonte de seu sustento. Trata-se de verba alimentar para fazer frente a despesas obrigatórias e imprescindíveis à satisfação de suas mais elementares necessidades e compromissos.

    Por outro lado, a imediata redução de vencimentos colhe os servidores públicos de surpresa, pois se encontram amparados na tradicional cláusula constitucional de irredutibilidade salarial (CF/88, art. 37, XV) e mesmo pela jurisprudência da Suprema Corte, que nessa garantia vê uma “modalidade qualificada de direito adquirido, oponível às emendas constitucionais mesmas”. (MS 24875, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, j. 11/05/2006). É legítima, portanto, a expectativa dos servidores públicos na continuidade desse tratamento normativo. Não era possível se prever a redução de vencimentos, portanto.

    Nesse sentido, a medida sacrificial proposta é inconstitucional porque viola, a um só tempo, o princípio da irredutibilidade de vencimentos e a proteção da confiança dos cidadãos, imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de Direito.

    Além do que já foi articulado, é preciso apontar que a proposta consubstancia medida arbitrária, pois imputa o ônus da necessidade de recursos orçamentários exclusivamente aos servidores públicos federais, livrando qualquer outra corporação[3] ou agente econômico de dar o seu contributo para o ajustamento.

    Esse é um outro ponto importante. A norma que reduz vencimentos pode ser materialmente qualificada como criadora de imposto ou contribuição social, na medida em que tributa o rendimento pessoal de uma categoria específica de trabalhadores.

    Desse argumento derivam dois raciocínios. Por um lado, os servidores federais já pagam imposto de renda progressivo, de acordo com o nível da renda, de modo que a exigência caracterizaria medida confiscatória, inconstitucional. Por outro lado, há alternativas constitucionais para arrecadação de receita, sem que se necessite lançar mão dessa oneração excessiva e arbitrária, como o imposto sobre grandes fortunas, previsto constitucionalmente (CF/88, art. 157, VII), mas que nunca foi instituído, ou o fim da isenção de lucros e dividendos das empresas, estabelecida pelo art. 10 da Lei 9.249/1995.

    Mesmo que a racionalidade a orientar nossas políticas públicas em tempos de crise seja predominantemente a da busca pela maximização das riquezas e pelo impulsionamento da atividade econômica, há bons motivos para se valorizar o emprego público, que já fez parte de programas ativos do mercado de trabalho em vários países[4].

    Sobram razões econômicas, políticas e jurídicas, portanto, para que não se penalize sem causa os servidores públicos federais. Cumprem eles um importante papel na engrenagem social e econômica e há opções para uma solução política justa, que promova distribuição equitativa de encargos e benefícios em contexto social crítico.

    É arbitrária, excessivamente onerosa e inconstitucional, conclui-se, medida avulsa que em uma crítica conjuntura sócio-econômico-financeira cria fator discriminatório e de fragilização dos servidores públicos federais.

    José Antonio Savaris é Juiz Federal e Doutor em Direito.
    Publicado em: https://www.alteridade.com.br/artigo/reducao-de-vencimentos-enquanto-discriminacao-e-fragilizacao-dos-servidores-publicos-federais-artigo/

    [1] Segundo se divulga, essas seriam as disposições centrais da proposta: “Até 31 de dezembro de 2024, autorizada a redução da jornada de trabalho dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional em até 25%, com adequação proporcional de remuneração. (…) Somente será aplicável aos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, aos membros de qualquer dos Poderes, aos detentores de mandato eletivo e aos demais agentes políticos com remuneração superior a três salários mínimos”. (https://www.agazeta.com.br/es/politica/entenda-a-proposta-que-preve-reduzir-salario-de-servidor-em-ate-25-0320 Acesso em 27.03.2020).

    [2] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/27/governo-anuncia-linha-de-credito-de-r-40-bi-para-financiar-folha-de-pequenas-e-medias-empresas.ghtml Acesso em 27.03.2020.

    [3] Simplesmente estão fora da proposta os servidores públicos dos Estados, Distrito Federal e Municípios, os servidores militares do Exército, Marinha e Aeronáutica, policiais militares e corpos de bombeiros militares etc.

    [4] Segundo o economista britânico Anthony Barnes Atkison, “Nos Estados Unidos, há um longo histórico. A Works Progress Administration (WPA) foi parte importante do New Deal e, entre 1933 e 1945, financiou cerca de 8 milhões de empregos. Boa parte do orçamento foi destinada a projetos públicos de infraestrutura, incluindo mais de 1/3 de estradas e prédios públicos. Como parte da Guerra à Pobreza, na década de 1960, a administração desenvolveu o Programa de Emprego público, que previu a possibilidade de criar 4,3 milhões de empregos.” (ATKINSON, Anthony B. Desigualdade: o que pode ser feito? São Paulo: Leya, 2015, p. 177-178).

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