Aperfeiçoamento com respeito à Constituição

     

    Artigo escrito pelo presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Fernando Mendes, para a Revista Justiça & Cidadania do mês de fevereiro de 2020.

    Dentre as modificações acrescentadas pelos parlamentares ao conjunto de medidas que visavam dar maior efetividade à Justiça Criminal, mais conhecidas como “pacote anti-crime”, apresentadas pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e que foram sancionadas pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, certamente a mais polêmica foi a instituição do “juiz das garantias”, cuja função seria controlar a “legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais”.

    Não há dúvida que todos defendemos a existência de um modelo de processo penal que garanta o devido processo legal substantivo e, especialmente, a imparcialidade de seus julgadores. Todavia, surge a questão: precisamos desse novo modelo que prevê a divisão de trabalho entre o juiz que vai acompanhar a fase de investigação, que se dá antes da denúncia, e o do juiz que vai julgar o processo?

    Entendemos que não. O modelo brasileiro, historicamente, não separa a figura dos juízes, mas permite que, na Justiça Federal, por exemplo, desde a fase policial o procedimento seja controlado não apenas pelo juiz federal de primeiro grau, mas também pelo Tribunal Regional Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Não temos um juiz das garantias. Temos quatro instâncias de garantias. Isso somado ao fato que a execução de qualquer pena restritiva de liberdade só poderá se dar a partir do trânsito em julgado da decisão condenatória, a resposta à pergunta que foi feita só pode ser uma: não precisamos da figura do juiz das garantias para termos uma Justiça imparcial.

    O aperfeiçoamento desse modelo, contudo, seria possível? Sim, mas com o respeito à Constituição Federal.

    Por entender que modificação de tamanha magnitude no sistema processual penal brasileiro não poderia ser feito pela forma adotada, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresentarem Ação Direta de Inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF) em face dos artigos da Lei no 13.964, de dezembro de 2019, que alteram o Código de Processo Penal (CPP) para criar a figura do “juiz das garantias” (ADI 6.298).

    Outras entidades seguiram o mesmo caminho e cabe agora ao STF essa missão fundamental: corrigir os meios pelos quais se deram a criação de um instituto legal que pode adquirir relevância – não entraremos neste mérito por ora – mas que não está adequadamente acomodado no conjunto normativo nacional.

    Desde que a Lei no 13.964/2019 foi promulgada houve inda e vindas no tema. Primeiramente, o Presidente da Corte, Ministro Dias Toffoli, suspendeu, pelo prazo de seis meses, os efeitos das novas regras, definiu a não aplicação às ações já em curso e delimitou a natureza das matérias em que haveria a exigência do instituto. Depois, o Ministro Luiz Fux, relator da ação e Vice-presidente do STF, suspendeu, por tempo indeterminado, a eficácia das mudanças legislativas – até o julgamento definitivo da causa.

    Na visão da AJUFE e da AMB, o vício formal da criação do juiz das garantais pelo legislador ordinário, decorre, especialmente, da não observância ao artigo 93 da Constituição Federal, segundo o qual “lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura”. Assim, caberia ao STF a proposta legislativa para disciplinar garantias, prerrogativas, vencimentos, vantagens, direitos, deveres e penalidades cabíveis aos magistrados, além da organização do Judiciário, seu funcionamento, estrutura hierárquica e administrativa.

    Mas há mais. Outro argumento que foi apresentado pelas associações quanto à inconstitucionalidade do modelo adotado, pela forma adotada, é o da violação ao princípio do juiz natural. Sobre o tema, lembrou o Ministro e Professor de Direito Constitucional Carlos Aryes Britto, em entrevista dada ao jornal El País que “separar as coisas como diz a lei é conferir à jurisdição penal uma estrutura diversa da veiculada pela Constituição, uma vez que nela não existe esse salto da unitariedade para a binariedade jurisdicional (ter atribuições diversas ao juiz)”, ressaltando, ao final, que “só a Carta Magna pode dispor sobre o assunto”, chegando a cogitar que a questão envolveria cláusula pétrea e “neste caso nem por emenda à Constituição seria possível haver mexida no tema”.

    Isso posto, pergunta-se: o Poder Legislativo, por proposição própria, pode conceber uma classe típica de juiz, com competência definida, por meio de modificação na legislação ordinária? A resposta é “não”, a não ser que incorra em vício formal – violação que cabe à Suprema Corte repelir, categoricamente (como já vem fazendo).

    Não bastasse a inconstitucionalidade apontada, a lei carregava outra falha, exponencialmente grave: o curtíssimo período para que os tribunais a fizessem cumprir – 30 dias. Nesse sentido, independente da discussão de mérito que terá de ser definida pelo plenário do STF, as liminares concedidas durante o plantão judicial, tanto pelo Presidente Ministro Dias Toffoli, quanto posteriormente pela decisão proferida pelo relator das ações, Ministro Luiz Fux, reconheceram a impossibilidade de implantação do instituto no tempo determinado pela legislação impugnada.

    O ordenamento jurídico de um País não é um corpo estanque e morto para os acontecimentos. Ao invés, trata-se de organismo vigilante, que interage com o contexto e responde aos seus estímulos. Contudo, não deve, jamais, perder de vista, nesse propósito de aperfeiçoamento, a Constituição Federal, suas possibilidades e limites, sob pena de macular, não obstante as louváveis intenções, o próprio Estado de Direito.

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