Artigo escrito pela juíza federal Alessandra Baldini e pelo advogado Leonardo Costa ao portal Conjur.
Concebida originariamente pelo artigo 13 da Lei nº 191/36 [1] como instrumento processual capaz de atribuir efeito suspensivo ao recurso devidamente interposto contra decisão proferida em sede de mandado de segurança, ao longo dos anos a Suspensão de Liminar e Sentença "se expandiu legislativamente, hoje sendo possível a sua utilização para todo tipo de ação proposta não só em face ou pelo Poder Público, mas também no âmbito de qualquer relação processual da qual possam repercutir efeitos reputados nocivos ao interesse público primário". [2]
Em face dessa irradiação legislativa da medida de contracautela para os mais distintos tipos de procedimentos processuais, de tempos em tempos ganham fôlego os debates acerca da constitucionalidade do instituto da Suspensão de Liminar e Sentença, notadamente em momentos de acentuadas complexidades políticas e crises institucionais entre as forças políticas que interagem no tecido social brasileiro, que, não raro, valem-se desse instrumento processual excepcional com o intuito de fazer valer seus próprios interesses privados.
Afinal, a consequência prática — indesejada — desse alastramento normativo e teórico da suspensão a todo e qualquer tipo de procedimento é o surgimento de pretensões abusivas que, além de lançarem a própria essência das suspensões à deriva da garantia do devido processo legal, constantemente acarretam graves violações a direitos e garantias fundamentais individual e coletivamente alcançadas no bojo de um processo jurisdicional democrático.
Um cidadão que legitimamente deduz sua pretensão em juízo com o intuito de evitar ou reparar uma grave lesão a direito seu ou de outrem, munido de um robusto arcabouço probatório, que litiga em um complexo processo havido sob o signo do contraditório e que leva anos a fio para receber uma resposta em tempo hábil do Estado capaz de colocar bom termo ao seu conflito, em uma só penada e mediante razões metajurídicas pode ter a eficácia de um provimento jurisdicional que tutele seu direito sumariamente suspensa até o trânsito em julgado da ação principal, que, como se sabe, no Brasil é termo incerto.
Não são poucas as vozes que há muito se erguem, em sede doutrinária, contrariamente à própria constitucionalidade dos pedidos de Suspensão de Liminar e Sentença. Elton Venturi faz diagnóstico preciso quando sustenta que "a duvidosa constitucionalidade do regime legal dos pedidos de suspensão, aliás, há muito tem sido objeto de especulação doutrinária, seja pela sua concepção originária, seja pela forma de seu processamento em juízo". [3]
Para o processualista Cassio Scarpinella Bueno, cuja concepção teórica é absolutamente contrária à constitucionalidade pretérita e contemporânea do instituto, a inconstitucionalidade do estatuto jurídico dos pedidos de suspensão se dá:
"Dentre outras razões, pela circunstância de ela atritar com o princípio da isonomia — da 'paridade de armas' — ao prever à pessoa jurídica de direito público (e ao Ministério Público) mecanismo processo não disponibilizado ao impetrante e que tem aptidão para interferir diretamente no que é mais caro ao mandado de segurança, a produção imediata dos efeitos das decisões jurisdicionais proferidas em prol do impetrante, assegurando a sua fruição in natura. Até porque, se é verdade que, quando o instituto foi concebido pelo legislador brasileiro o sistema processual civil era pouco claro quanto às possibilidades de a fase recursal desenvolver-se sob o manto do 'dever-poder geral de cautela', a observação não condiz a realidade normativa hoje vigente. Quando o 'pedido de suspensão' é dirigido ao STJ e/ou ao STF — no que pode ser chamado de 'pedido de suspensão da não suspensão'—, àquela crítica soma-se a circunstância de a Constituição Federal não ter previsto competência daqueles tribunais para julgá-lo originariamente, o que contraria a interpretação dada por eles próprios à taxatividade de sua competência, fixada, única e exclusivamente, pela Constituição". [4]
Em tom mais ameno, comungando o entendimento segundo o qual, em um passado remoto, justificava-se a Suspensão de Liminar e Sentença ante a existência de um problema específico de recorribilidade, mas que, atualmente, não mais se justifica constitucionalmente o instituto, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery asseveram que:
"Criado para contornar situação de recorribilidade, justificável sob os regimes da Lei 191/1936, do Código de Processo Civil/1939 e da Lei do Mandado de Segurança, não mais se justifica sua manutenção no Direito vigente. Instrumento autoritário e excepcional, não pode ter incidência no verdadeiro Estado Democrático de Direito (CF, artigo 1º, caput)". [5]
O fato é que dos mais críticos aos mais deferentes à constitucionalidade da suspensão, todos os doutrinadores invocam, como paradigma constitucional de análise, a violação das garantias constitucionais do acesso à Justiça, do devido processo legal, da isonomia, do contraditório, do juiz natural e da ampla defesa.
Talvez porque os conceitos de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, graves lesões à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, constantes do artigo 4º da Lei nº 8.437/92, sejam de textura essencialmente aberta, fundados em comandos linguísticos polissêmicos e notadamente indeterminados, por vezes a opinião crítica especializada repute o instituto da suspensão como materialmente incompatível com a Constituição.
Nesse particular, o problema parece não se esgotar no binômio constitucionalidade x inconstitucionalidade. Para além dessa dialética acadêmica de efeitos práticos, a questão que se põe e antecede todo esse debate diz respeito justamente à própria natureza jurídica indeterminada dos conceitos que permeiam os requisitos autorizadores da deflagração da suspensão de liminar.
Ou melhor, a questão se coloca no âmbito da própria hermenêutica dos conceitos jurídicos indeterminados que, muito além do instituto processual da suspensão de liminar, permeia toda a tessitura normativa e axiológica do Direito na atual quadra histórica de complexidades e pluralidades cada vez mais aprofundadas.
Daí que o que talvez efetivamente importe são os próprios usos e desusos de conceitos e institutos que são feitos à luz de princípios constitucionais democráticos na densificação de uma regra jurídica em um determinado caso concreto.
É o caso a caso, as circunstâncias peculiares de determinada situação e a efetiva fundamentação que leve em conta todos os interesses e direitos em potencial conflito que, no final das contas, determinarão o acerto ou o desacerto jurídico da suspensão temporária de um direito individual por um presidente de um tribunal em face de direitos coletivos que efetivamente sejam consentâneos com a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas.
Até porque conceitos são fluidos e se prestam a justificar retoricamente inúmeras situações, das mais autoritárias às mais democráticas. O conceito de ordem pública, por exemplo, ao mesmo tempo em que foi utilizado pelo Ato Institucional nº 5 como premissa para suspender e justificar argumentativamente uma série de violações a direitos e garantias fundamentais básicas, é constantemente empregado na contemporaneidade em sede de suspensão de liminar em casos em que, não fosse a garantia da ordem e da segurança públicas, ter-se-ia um verdadeiro estado de caos.
É o que ocorre na Suspensão de Liminar nº 1.151, em que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, deferiu pedido da FUNAI confirmando a suspensão deferida pela ministra Cármen Lúcia em abril de 2018 para impedir a reintegração de posse de imóvel ocupado pela etnia Kaiowá, deferida pela Justiça Federal de Dourados/MS e confirmada pelo TRF-3.
Tendo em vista que o processo de identificação da Terra Indígena Dourados-Abambaipeguá I se encontra em estágio avançado de demarcação, o ministro presidente, com o intuito de impedir uma operação de desocupação forçada, confirmou a liminar por entender mais prudente "manter o status quo vigente, visto que as consequências de um eventual conflito entre forças policiais e um número incerto de indígenas poderiam ser muito mais danosas aos envolvidos, inclusive com perda de vidas humanas, o que veementemente se busca evitar".
Isso quer dizer que, não fosse uma suspensão de liminar e seu escopo essencial de tutelar a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas (artigo 4º da Lei nº 8.437/92), ter-se-ia, a despeito da existência de um processo jurisdicional que tenha assegurado um legítimo e fundamental direito de propriedade individual, uma sistemática violação a direitos fundamentais também individuais, mas, sobretudo, coletivos, como a própria vida, bem constitucional maior e que antecede todos os demais direitos.
Já na SL 1157, proposta pela União, a ministra Cármen Lúcia, ao tempo em que presidente da corte, que inicialmente havia indeferido a liminar, reconsiderou sua decisão para conceder o pedido de contracautela para liberar a execução do contrato firmado entre a Telecomunicações Brasileiras S/A (Telebras) e a empresa norte-americana ViaSat Inc. para exploração da capacidade da banda Ka do Satélite Geoestacionário Brasileiro de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC).
Até então, o contrato estava suspenso por decisão do juízo da 1ª Vara Federal de Manaus e pela presidência do TRF-1. No entanto, por vislumbrar a existência de grave ameaça à ordem e à economia públicas decorrentes da suspensão do contrato por supostas irregularidades em sua pactuação, a ministra deferiu a medida com o argumento de que estava se operando enorme prejuízo financeiro para a União e, no limite, a todos os brasileiros, na ordem de R$ 1,73 bilhões, na medida em que a elevada quantia investida não estava sendo revertida na construção e no lançamento do satélite, bem perecível e com duração máxima de 18 anos.
Na decisão, a ministra ainda ponderou que havia iminente e grave risco de se colocar em xeque os benefícios na implementação de políticas públicas, eis que o contrato de parceria viabilizaria, por meio de equipamentos da ViaSat, o funcionamento de 100% da capacidade do satélite e a prestação de serviços de banda larga, dentro da política pública de inclusão digital para as regiões mais longínquas do país.
Ao julgar os recursos interpostos contra a decisão da ministra Cármen Lúcia, o Pleno do STF, por unanimidade, confirmou a liminar. Segundo o relator, ministro Dias Toffoli, "não há risco à soberania brasileira nem risco de esvaziamento da responsabilidade da Telebras, como supunha o Parquet, porquanto a propriedade do satélite permanece na esfera da estatal. O controle e a operação da banda X continuam em poder do Ministério da Defesa e da Telebras, sem participação, portanto, da empresa privada", e "desta forma, não apresenta risco à soberania nacional", conforme conclusão exarada da Nota Técnica n° 2/SC 1/CHOC/EMCFA/MD/2018 (doc. 1, fl. 69/70). Assim, irretocável a decisão prolatada pela então presidente do Supremo, a eminente ministra Cármen Lúcia, que reconheceu o risco à ordem e à economia públicas caso houvesse subutilização do SGDC.
Não fosse o exercício de uma suspensão de liminar em um juízo distinto daquele em que tinha curso o processo originário, mais de R$ 1 bilhão de reais de verba pública se dissipariam ante a morosidade temporal que naturalmente possui um processo jurisdicional no Brasil e se perderiam os benefícios de permitir a execução de uma política pública de universalização de serviços digitais. Segundo noticiado nos autos da SL, "o SGDC, a partir da parceria questionada, já se encontra em operação, atendendo a 415 escolas públicas no âmbito do contrato GESAC e do Programa de Educação Conectada, bem como a situações de crise humanitária (Operação Acolhida, em Roraima) e de calamidade pública (Brumadinho/MG)". [6].
Sob esse prisma, parece que inconstitucionais são os usos, ou melhor, os abusos que, na prática forense, são feitos do instituto da Suspensão de Liminar e Sentença, de modo que exsurge a imperiosa necessidade de criação e desenvolvimento de mecanismos jurisprudenciais e doutrinários de fundamentada crítica, hoje extremamente esparsos e quase inexistentes, da hermenêutica que é feita do instituto processual da suspensão no dia a dia da presidência dos tribunais.
Portanto, acertada parece estar a posição do ministro Carlos Mário Velloso, para quem "os dispositivos autorizadores desta suspensão ou são interpretados restritivamente, ou são inconstitucionais. (...)" [7], eis que não é a existência per se do instituto que o torna inconstitucional, mas, sim, suas práticas dissociadas dos direitos e das garantias fundamentais analisados e densificados à luz de situações concretas.
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[1] No direito brasileiro, a Suspensão de Liminar e de Sentença surgiu com a positivação da ação do Mandado de Segurança no artigo 113, §3º, da Constituição de 1934. Foi então que, no afã de regulamentar o remédio processual de natureza constitucional, editou-se no ano de 1936, sob a égide do Governo Vargas, a Lei nº 191/36 que, em seu artigo 13, previu a possibilidade de suspensão da execução.
[2]VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. 3.ed.,rev., atual. e ampl. – São Paulo: Malheiros, 2017, p. 48.
[3] VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. 3.ed.,rev., atual. e ampl. – São Paulo: Malheiros, 2017, p. 48.
[4]SCARPINELLA BUENO. Cássio. Suspensão de Segurança em matéria tributária: Limites, disponível em http://www.ibet.com.br/suspensão-de-segurança-em-materia-tributaria-limites-por-cassio-scarpinella-bueno
[5] NERY JR., Nelson. ANDRADE NERY., Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado, 5ª ed., p. 1.648.
[6] A decisão foi integralmente mantida pelo Pleno do STF no julgamento dos agravos internos interpostos.
[7] VELLOSO. Carlos Mário. Conceito de direito líquido e certo. In: Celso Antônio Bandeira de Mello (coord.), Curso de Mandado de Segurança, p.74.