Coronavírus e a recuperação de empresas

    Artigo escrito pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, e pelo juiz de Direito, Daniel Carnio, publicado no Folha de S.Paulo.

     

    Momento excepcional exige sensibilidade a fim de preservar função social

     

    A pandemia do novo coronavírus desafia as autoridades públicas a tomarem decisões necessárias para minimizar os seus efeitos devastadores sobre o sistema de saúde do país.

    Essas medidas causam impacto também no funcionamento da economia e na vida das empresas. A análise desses reflexos nos países que já enfrentam o problema há mais tempo demonstra a gravidade da situação. Houve queda de cerca de 30% nos principais índices de mercados do mundo (Nikkei, Dow Jones e FTSE). A China divulgou que sua produção industrial despencou 13,5% em janeiro e fevereiro deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior. Em todo o primeiro trimestre, o PIB chinês encolheu 6,8%.

    No Brasil, tomando como exemplo as empresas aéreas, algumas apontam para quedas de até 90% na compra de passagens de voos domésticos e internacionais. O setor de serviços começa a sofrer dramáticas consequências do combate ao coronavírus, sem nenhuma previsão para a sua retomada.

     

    É certo que o governo federal já anunciou medidas de auxílio financeiro para empresas e comerciantes autônomos no curto prazo.

    Entretanto, não se pode esquecer que o Brasil ainda sente os efeitos da crise econômica iniciada em 2014, que fez com que o PIB nacional recuasse aproximadamente 7% nos anos de 2015 e 2016.
     

    O estudo dos números de empresas em recuperação ajuda a entender o funcionamento da economia. Houve, a partir do ano de 2016, um aumento exponencial dos pedidos de recuperação judicial. Em abril daquele ano, por exemplo, registrou-se um aumento histórico de 94,8% no número de distribuição desses pedidos. Os índices de distribuição de processos de insolvência mantiveram-se crescentes desde 2015 até meados de 2017, conforme demonstram os indicadores da Boa Vista SCPC.

    O tempo médio para aprovação do plano de recuperação judicial no estado de São Paulo pode chegar a 650 dias, e a lei impõe dois anos de fiscalização judicial do cumprimento do plano —é por isso que muitos desses processos ainda se encontram em andamento até os dias atuais.

    Os efeitos econômicos colaterais do combate à pandemia também afetam com mais intensidade essas empresas que tentam a recuperação com o auxílio do Poder Judiciário.

    O agravamento da crise da empresa em recuperação judicial, em decorrência do combate ao coronavírus, poderá representar motivo de força maior, de modo a justificar o descumprimento das obrigações por ela assumidas no plano de recuperação judicial e impedir a decretação da falência, podendo o juiz se valer da mediação para renegociação das dívidas.

    A comissão que cuida desse assunto no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou medidas, aprovadas pelo plenário, apontando ao menos quatro consequências imediatas do combate ao coronavírus nos processos de recuperação judicial de empresas em andamento na Justiça: a) suspensão de prazos; b) adiamento de Assembleia Geral de Credores (AGC) ou sua realização por meio de videoconferência; c) possibilidade de prorrogação do prazo de suspensão das ações e execuções movidas pelos credores contra a devedora em recuperação judicial (“stay period”); e d) a utilização da força maior para determinar a renegociação de planos já aprovados pelos credores, abrandando os efeitos do descumprimento de obrigações assumidas pela devedora.

    Fornecedores e agentes financeiros deverão ter a sensibilidade para a renegociação de seus créditos, esperando-se, para as novas demandas, a utilização em larga escala do sistema de recuperação extrajudicial (ferramenta prévia à recuperação judicial, que permite a negociação direta e extrajudicial da devedora com seus credores).

    O momento excepcional vivenciado pelo país impõe que se tenha a necessária sensibilidade para analisar os impactos da pandemia nos processos de recuperação judicial, a fim de que se possa preservar a função social das empresas e salvaguardar o empreendedorismo, com manutenção dos benefícios econômicos e sociais que decorrem de suas atividades (empregos, renda, produtos, serviços e tributos).

     


     

    Luis Felipe Salomão

    Ministro do Superior Tribunal de Justiça e presidente da Comissão de Recuperação Judicial do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)

    Daniel Carnio Costa

    Juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo (atuando como juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça)

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