A soltura de presos devido o coronavírus

     

    Por Odilon de Oliveira e Adriano Magno.

    Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde – OMS declarou situação de pandemia causada pelo coronavírus ou COVID-19. Logo após, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Recomendação n.º 62/2020, instituindo medidas para a prevenção da disseminação desse vírus mortal em unidades socioeducativas (menores infratores) e em prisões. O Brasil tem, hoje, 770 mil presos depositados em ambientes com superlotação e insalubridade. As prisões brasileiras, como reconhece o próprio CNJ, locais incompatíveis para confinamento ou quarentena, formam um canteiro fértil para a propagação do coronavírus. “... um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e socioeducativo produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos”, alerta, com absoluta propriedade, o CNJ.

    Na verdade, a propagação do coronavírus nas prisões acarretará uma mortandade. Quem conhece os estabelecimentos prisionais e o sistema socioeducativo de menores infratores não tem qualquer dúvida. Se tem sido impossível, no mundo inteiro, fora das prisões, deter o avanço da propagação e do número de mortes, imagine nos presídios. No Brasil, até às 13h do dia 16 de abril, já existiam 30 mil contaminados, muitos deles internados, e 1.924 mortes. Na verdade, a realidade é muitas vezes maior.

    No presídio da Papuda, em Brasília, a imprensa registra (16/04) 38 detentos contaminados e 25 agentes penitenciários na mesma situação. Em Mato Grosso do Sul, no presídio de Miranda, três detentos estão infectados (15/04) e os policiais foram para o isolamento. Outros Estados também noticiam a chegada do vírus em estabelecimentos prisionais. No interior de um presídio, o risco de contaminação é alto não só entre os detentos, mas também em relação aos policiais e demais servidores e visitas.

    A recomendação do CNJ é dirigida sobretudo aos tribunais e aos juízes de 1º grau e relaciona diversas situações de maior risco, com base em critérios da Organização Mundial da Saúde: diabetes, idosos, tuberculose, doenças renais, HIV etc. Recomenda a imediata separação ou isolamento do preso que apresentar sintomas envolvendo febre, tosse seca, dor de garganta, mialgia, cefaleia, dificuldade para respirar etc. Aí, vêm duas perguntas: separar ou confinar onde? No caso de internação, onde fazê-lo, inclusive com a escolta, cujos membros ficarão vulneráveis?

    Merece destaque a seguinte parte da Recomendação n.º 62/20 – CNJ, ligada diretamente à necessidade de soltura ou de conversão de prisão em domiciliar.

    “Art. 4o Recomendar aos magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal que, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerem as seguintes medidas:

    I – a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se:

    a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até́ doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco;

    b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus;

    c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa”.

    São três grupos de situações que, na interpretação teleológica recomendada pela atual crise, não têm aplicação cumulativa. As pessoas relacionadas na letra “a” devem ser postas em liberdade ou ter suas prisões transformadas em domiciliares independentemente de terem os crimes respectivos sido praticados com ou sem violência (letra “c”). A situação da alínea “c” não complementa a da alínea “a”, e vice-versa. São independentes. O idoso, por exemplo, com 60 ou mais anos, deve ser beneficiado, durante a pandemia, tão-somente por essa condição que o coloca em natural situação de risco. A pessoa (homem ou mulher) responsável por criança de até doze anos ou por deficiente de qualquer idade, enquadra-se na recomendação. O protegido, neste caso, é a criança ou o deficiente, enquanto durar a pandemia.

    Qualquer daquelas condições da alínea “a”, por si só, afasta o requisito da não violência na prática do crime. Em outras palavras, não deve a justiça perquirir se o crime atribuído à pessoa detentora de qualquer das características da letra “a” esteja ou não relacionado a violência ou grave ameaça ao ser humano. O juiz ou tribunal, a nosso ver, tem que enquadrar na alínea “a”, pura e simplesmente, detento ou detenta que esteja numa daquelas situações e, na alínea “c”, os casos que não estiverem naquela (“a”).

    Assim não procedendo, o Judiciário estará, com todo respeito, desvinculando-se completamente do verdadeiro espírito da Recomendação do CNJ. À proporção em que a situação da COVID-19 se agrava pelo aumento da contaminação e de mortes, como é o caso do Brasil, o cenário vai impondo, na mesma medida, maior flexibilização na interpretação das normas do CNJ e da legislação processual penal. A oscilação em cada momento é que deve balizar o julgador, em nome do bem comum.


    Dos autores:

    Odilon de Oliveira é juiz federal aposentado e Adriano Magno advogado. Ambos advogam em Campo Grande (MS).

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