O direito ao luto das famílias de pessoas desaparecidas em meio à pandemia

    Artigo originalmente publicado pelo portal Jota. Escrito pela desembargadora federal do TRF3 Inês Virgínia e pela promotora de Justiça de SP, Eliana Faleiros.

     

    Pane dos serviços cemiteriais e fracasso na implementação de medidas que garantam identificação futura dos mortos

     

    Há quase dois anos, em 2018, publicamos aqui no JOTA um artigo de opinião intitulado O que fazer com as ossadas paulistanas? Por que não temos formas respeitosas para lidar com as ossadas de pessoas vulneráveis em sua morte, enterradas como indigentes?. Por coincidência, o texto foi veiculado em 30 de agosto, Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, data escolhida pela ONU para lembrar um nefasto crime contra os direitos humanos, que combina elementos de prisão ilegal, sequestro, assassinato e ocultação de cadáveres, delito que até hoje não tem previsão na legislação penal local.

    Apesar da não tipificação criminal, desde 2019, a Lei 13.812 instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, determinando a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas[1].

    Como revelado pelo próprio título do texto de 2018, naquela oportunidade falávamos de pessoas enterradas como indigentes e não de desaparecidos políticos.

    A violência residia na possibilidade da cremação indiscriminada de ossadas não identificadas, defendida pela prefeitura de São Paulo, que estava prestes a concessionar os serviços cemiteriais e alegava necessidade de liberar espaço para novos restos mortais.

    Afirmamos, há menos de dois anos, que os corpos de pessoas não identificadas abrigados em cemitérios nunca poderiam ser descartados, já que sua preservação possibilitaria o encontro futuro pelas famílias, o exercício do direito ao luto e a vivência do ritual da despedida.

    Argumentamos que os restos mortais estavam estritamente ligados a direitos culturais, religiosos, civis, sanitários e, por isso, eram protegidos por legislações nacionais e internacionais.

    Em janeiro de 2020, pouco antes de se instalar a grave crise sanitária do novo coronavírus em nosso país, a municipalidade paulistana acabou por institucionalizar aquela cremação inconstitucional (e totalmente contrária aos padrões do direito humanitário), por meio do Decreto nº 59.196, que regulamenta os serviços funerários, cemiteriais e de cremação, abrindo espaço para futura concessão. Neste decreto ficou estabelecido que a cremação das ossadas sem identificação se daria com resguardo de seu DNA.

    No entanto, todos os envolvidos na discussão do tema, inclusive o Poder Público, sabem que a reserva de DNA precisaria ser somada à perícia antropológica da ossada, já que a simples guarda de material genético não é suficiente para identificação futura (seja pela possibilidade dos falsos positivos, seja pela qualidade do material, seja pelo seu tempo de armazenamento, entre outras intercorrências).

    Se a política de gestão de serviços funerários e cemiteriais da cidade de São Paulo já não protegia, a contento, em tempos de normalidade, os direitos dos familiares de pessoas que foram sepultadas sem identificação, a pandemia da Covid-19 redimensionou a fragilidade do Poder Público em lidar com os mortos “invisíveis”.

    Aliás, longe de se resumir à municipalidade paulistana, o novo coronavírus escancarou a deficiência da política pública cemiterial dos entes federativos brasileiros. Numa situação caótica, estados e municípios têm sido obrigados a administrar, infelizmente, a maior quantidade de inumações da história recente. Muitas das pessoas mortas não foram identificadas, o que é peculiar a eventos extremos, como esta pandemia.

    A pane dos serviços cemiteriais e o fracasso na implementação de medidas que resguardem a identificação futura dos mortos estão inseridos num contexto bem mais amplo, que vai do colapso do sistema de saúde ao risco do contágio em massa da população carcerária; do aumento da violência doméstica à iminência de grave recessão econômica.

    O cenário é de catástrofe e isso tem levado os pesquisadores a buscarem respaldo também na literatura do Direito dos Desastres, que fornece parâmetros, estandartes e enfoques que indicam ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação para atuação conjunta do Estado e sociedade.

    Após analisar os traços característicos da pandemia da Covid-19 e enquadrá-la no conceito jurídico de desastre biológico, Délton Winter de Carvalho destaca que é possível a integração do Direito dos Desastres com as demais áreas jurídicas:

    “Neste processo de integração, desencadeado pela configuração de um evento social como desastre, o Direito dos Desastres irradia aos demais ramos o cumprimento conjunto de diversas funções tais como:

    (i) manter a operacionalidade do Direito, assegurando sua habilidade de operar de acordo com os seus padrões de regras, procedimentos, rotinas e protocolos;

    (ii) lutar contra a ausência de Direito, pois nos desastres há a necessidade de que seja assegurada uma rápida atuação acerca das possíveis violações jurídicas nas comunidades atingidas por eventos graves;

    (iii) fornecer estabilização e reacomodação, devendo as vítimas serem abrigadas e, dependendo da gravidade do evento, serem permanentemente realocadas;

    (iv) promover a identificação das vítimas e responsáveis; (v) e finalmente, reduzir a vulnerabilidade futura, mediante os processos de aprendizagem com os eventos passados e as experiências bem-sucedidas.” [1] (grifos nossos)

    Como em outras situações de catástrofes, com mortes em larga escala, há uma triste perspectiva de que um dos legados desta crise sanitária seja um considerável aumento do número de pessoas desaparecidas no Brasil.

     

     

     

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