Reações do nosso sistema imunológico ao modelo de precedentes

    Por  (Artigo originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-14/ferraz-reacoes-sistema-imunologico-modelo-precedentes

     

    Introdução
    Fazer funcionar um modelo de vinculação aos precedentes judiciais, no sistema jurídico brasileiro, requer esforços que vão muito além do gerenciamento dos acervos de processos repetitivos.

    Embora louváveis os propósitos das ainda recentes mudanças legislativas e importantes os resultados já alcançados, em termos de racionalização e eficiência, algumas dificuldades e incoerências, pouco a pouco, estão se fazendo notar.

    Diferentemente do que se previu que poderia ocorrer, não há, propriamente, uma contrariedade dos operadores à aplicação dos chamados precedentes qualificados. Ao contrário, magistrados os aplicam, e muito. Contra essa possível reação, de toda sorte, a nova lei processual já trouxe os necessários imunossupressores.

    Os problemas são mais profundos e, talvez por essa razão, menos aparentes, o que não facilita seu monitoramento e tratamento. Seus efeitos se fazem sentir no médio e no longo prazo e se evidenciam, em grande medida, na manutenção do fenômeno da judicialização dos conflitos e no ímpeto recursal e rescisório, ainda tão presentes no dia a dia forense.

    Mesmo que se observe uma sensível redução na remessa e no acervo de processos dos tribunais superiores, este parece ser um efeito paliativo, dirigido a sintomas do problema. As causas da judicialização permanecem ativas.

    Será que estamos diante de uma típica reação do nosso sistema imunológico às mudanças trazidas pelo novo modelo? Estariam elas desafiando algumas das nossas convicções mais arraigadas sobre o direito e sobre como construímos nosso raciocínio jurídico?

    É sobre alguns sinais mais sutis de resistência, e sobre a necessidade de se adotar uma perspectiva sistêmica ao avaliar e fazer funcionar o modelo brasileiro de precedentes, que este texto pretende tratar.

    1. Nosso sistema imunológico está ativo
    Assim como o organismo humano, diante de um corpo estranho, ativa seus mecanismos de defesa, buscando neutralizar possíveis efeitos indesejáveis, mantendo seu equilíbrio e suas funções originais, o sistema jurídico é capaz de reagir e buscar neutralizar mudanças que, de alguma forma, entrem em conflito com seus pressupostos.

    Sempre que fazemos mudanças sobre elementos desse sistema jurídico – neste caso foram mudanças nas fontes do Direito – precisaremos ficar atentos às interrelações dessas mudanças com outros elementos do mesmo organismo, prever reações, contradições, atuando preventivamente ou monitorando esses efeitos colaterais, para encontrar caminhos que permitam uma retomada de equilíbrio, ainda que em novas bases.

    Pertencemos à família do civil law. Gostamos de saber que apenas a lei formal nos vincula. Nossa Constituição garante que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF/88, art. 5º, II). Não é demais lembrar que se, hoje, estamos obrigados a observar os precedentes qualificados, provenientes dos tribunais, foi porque a lei processual de 2015 assim o estabeleceu (CPC, art. 927, I, III e V), prevendo mecanismos para garantir que assim se cumpra.

    Obviamente que isso não significa negar importância à influência da doutrina e da jurisprudência na construção do direito brasileiro, nem significa que o jurista não deva considerar peculiaridades do caso concreto ao decidir como proceder, o que ocorre, com maior intensidade, nos ambientes decisionais menos rígidos, para usar a expressão de Teresa Arruda Alvim.

    Mas é essencialmente buscando as normas e os princípios jurídicos positivados e interpretados, que são tomadas as decisões judiciais e extrajudiciais. E é da essência da norma a generalidade e a abstração.

    Se, num concurso público, um candidato pratica uma irregularidade que, no edital, configura hipótese para a sua exclusão, ao examinar uma situação assim, nossa primeira tendência será invocar a norma do edital, enquadrar o fato ocorrido, avaliando se houve match e, neste caso, reconhecendo a necessidade de exclusão do candidato.

    Este é um procedimento dedutivo.

    E o que vem acontecendo com nossos precedentes?

    O que são as teses ao final dos julgamentos que constituem os precedentes qualificados?

    As teses são a tentativa de ofertar — a nós, os aplicadores dos precedentes — uma solução genérica e abstrata, encartada em um preceito semelhante a um artigo de lei ou a um princípio, para que possamos decidir os casos iguais adotando um procedimento silogístico-dedutivo.

    É o nosso sistema imunológico reagindo e tentando “enquadrar” o corpo estranho, no caso, uma nova fonte primária do direito.

    2. Analogia x dedução
    Aplicar um precedente demanda raciocínio analógico e, na sequência, indutivo. Aquele que avalia essa possibilidade, diante de um novo caso, lança o olhar primeiramente aos fatos (o particular), comparando-os ao do precedente, para só então ir em busca de uma solução jurídica (uma solução generalizável).

    Estamos adaptando o precedente, porém, à nossa tradicional forma silogística de decidir.

    Tomemos a tese do tema 972 do STJ, firmada em julgamento de recurso repetitivo:

    “A abusividade de encargos acessórios do contrato não descaracteriza a mora”.

    Será que podemos aplicar essa tese, num raciocínio dedutivo semelhante ao de uma lei, sem que nos perguntemos de que encargo acessório o STJ estava tratando quando julgou o caso paradigma? Qual era o tipo de contrato? Que outras circunstâncias influenciaram a solução adotada no precedente, para saber se estamos diante de um caso com as mesmas características?

    Será que estamos percebendo o grau de abstração dos nossos precedentes? Que é bastante comum que os tribunais superiores extraiam uma tese, um preceito jurídico, ao final dos julgamentos, que acaba não podendo ser aplicada sequer ao caso paradigma, aquele caso que foi escolhido como representativo da controvérsia constitucional ou infraconstitucional e que está em exame? Isso ocorre, por exemplo, quando a aplicação da tese ao caso resultaria em reformatio in pejus, ou porque uma das hipóteses definidas na tese como ensejadoras da sua aplicação não se materializa no próprio leading case (FERRAZ, 2017).

    De onde, então, nasceu a tese desse precedente? De onde provém seu efeito vinculante (a força de lei) sobre os casos futuros? Pode a tese alcançar tamanha abstração frente aos fatos da causa? Pode o tribunal preceitar, para usar a expressão de Pontes de Miranda, sobre fatos que não estão objetivamente sob julgamento?

    A ideia de instruir previamente os processos representativos de controvérsia, acolhendo a atuação dos amici curiae em memoriais, audiências públicas, sustentações orais produz, sem dúvida, a ampliação da cognição nos recursos repetitivos ou com repercussão geral, a permitir, inclusive, que hoje nos perguntemos (o que não temos feito) se isso não eliminou a própria exigência de prequestionamento como requisito de admissibilidade.

    O objetivo da construção de teses ao final dos julgamentos qualificados é legítimo: Elas são lançadas após os tribunais examinarem, com profundidade e extensão, uma controvérsia constitucional e infraconstitucional. A ideia é que essa questão fique definitivamente resolvida, para que não sejam necessários novos recursos, especialmente aos tribunais superiores.

    Mas extrair do julgamento de um tema afetado um preceito ou uma tese, cuja hipótese de incidência não está materializada no caso em apreciação, é algo muito semelhante ao que faz um legislador.

    Uma coisa é avaliar argumentos jurídicos, econômicos, sociais, políticos, conhecer com profundidade a controvérsia e prever os possíveis efeitos de uma decisão sobre ela, em todas as suas circunstâncias.

    Outra coisa é dispor sobre fatos que não estão materializados na causa sob julgamento e prever solução para esses fatos se e quando ocorrerem. Porque talvez esses fatos não ocorram da forma como o julgamento – que não tratou diretamente deles – imaginou que ocorreriam. E como aplicar a técnica do distinguishing neste caso? Que fatos compararemos? Será que podemos abrir mão de conhecer os fatos do caso paradigma?

    3. Ratio decidendi x tese jurídica
    O art. 489, §1º, V do CPC exige que o precedente seja lido e aplicado à luz de seus fundamentos determinantes, da sua ratio decidendi. O §2º do art. 972, que trata do incidente de resolução de demandas repetitivas, indica que o registro eletrônico das teses jurídicas, em banco de dados do CNJ, deverá conter, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.

    Os fundamentos determinantes incluem os fatos que estiveram sob apreciação e a forma como foram valorados pelos julgadores no caso paradigma. Os fatos substanciam todo o raciocínio construído no precedente e são essenciais para que se possa, na sequência, adotar um procedimento analógico, ao avaliar a aplicabilidade desse precedente.

    Paradoxalmente, se formos procurar pelos fatos da causa, nos precedentes qualificados, perceberemos que muito pouco são narrados, descritos e trazidos ao debate, que fica bastante limitado à controvérsia jurídica.

    Admitir-se o conceito de causa petendi aberta nos recursos extremos é suficiente?

    Nossa tendência, ao ler uma tese, é buscar sua hipótese de incidência diretamente no preceito, buscando enquadrar fatos que agora estão sob apreciação.

    Já não fazemos isso com as súmulas? Com que frequência buscamos seus precedentes? Sempre gostamos de encontrar e transcrever aquela ementa com hipótese de incidência bem genérica, que não nos cause o incômodo de buscar o inteiro teor do respectivo acórdão. Aliás, todos já nos decepcionamos nas vezes em que fomos ao relatório e ao voto e percebemos que a ementa não retratava o caso, que não conseguiríamos fazer a subsunção que pretendíamos.

    Isso ocorre porque buscamos nos precedentes uma norma, onde possamos enquadrar os casos que examinamos.

    É claro que isso tem total sentido quando olhamos para uma outra característica do nosso sistema jurídico: convivemos com demandas repetitivas, centenas, milhares, milhões...

    É prático termos uma tese para lidar com os casos absolutamente iguais. Mas o modelo de precedentes é – ou pode ser – muito mais que isso.

    Um precedente não é uma lei.

    Os tribunais não são legisladores.

    O caso que foi julgado não era uma hipótese, baseava-se em fatos reais, cercados de circunstâncias, incluídos em um contexto.

    A invocação de um precedente como razão de decidir exige mais que um processo de subsunção.

    Exige comparar fatos, comparar contextos, identificar os acontecimentos, as circunstâncias e os argumentos mais relevantes no precedente e no caso sob apreciação, para só então cuidar-se de extrair do precedente uma ratio e de avaliar sua aplicabilidade a esse caso.

    Duas principais consequências, não desejáveis, podem decorrer diretamente desse enviesamento na forma de produzir e fundamentar decisões:

    1. A aplicação do precedente a casos para os quais ele não foi construído, por efeito da generalidade e abstração da tese, possibilidade já suscitada acima.

    2. A baixa utilização dos pressupostos do precedente para solucionar casos que, embora não sejam iguais, poderiam se valer de um mesmo raciocínio jurídico, ao pressuposto de que apenas a tese, e não os fundamentos determinantes (ratio decidendi) do julgamento seriam vinculantes.

    Essas duas situações são aparentemente contraditórias, mas convivem, quando se olha, em perspectiva sistêmica, para o modelo ainda em construção.

    Estamos deixando de permitir que outros importantes efeitos se produzam, quando apenas olhamos para as teses. Estamos renunciando à riqueza da construção do direito, da coesão sistêmica, atributos que poderiam contribuir, verdadeiramente, para a prevenção da litigiosidade, para a previsibilidade dos julgamentos, para uma maior segurança jurídica.

    Será que só podemos aplicar um precedente a casos rigorosamente iguais? Será que não poderíamos alcançar muito mais segurança previsibilidade e coerência se olhássemos antes para os fundamentos determinantes?

    Se o STF disse que universidade pública não pode cobrar taxa de matrícula, será que o raciocínio que foi usado não se aplica a outras taxas exigidas por uma universidade pública?

    Será necessário questionar em juízo cada tipo de taxa cobrada? O raciocínio vale só para universidades ou vale também para outras instituições públicas de ensino?

    Mais do que a tese, que só tratou da taxa de matrícula, precisaremos conhecer o raciocínio elaborado para se chegar à conclusão, conhecer a ratio decidendi do precedente das universidades, saber que fatos estavam sob apreciação, qual o valor, maior ou menor, que se emprestou a esses fatos na decisão, e em que circunstâncias e contexto foi ela construída.

    ratio decidendi é o elemento essencial em um modelo de precedentes e se baseia nos fatos efetivamente decididos (Donogue v. Stevenson), que darão os contornos ao princípio jurídico extraído do julgamento, permitindo, na sequência, em uma perspectiva a médio e longo prazo, definir o grau de universalização desse princípio.

    Toda a tese ao final dos julgamentos, está – e deve estar – fortemente vinculada aos fundamentos determinantes daquele precedente e assim se qualificam os fatos e circunstâncias da causa, ao lado das questões jurídicas objeto de análise.

    E aqui entra um outro dado sobre a nossa imunidade: Nosso sistema, por tradição, nunca apostou muitas fichas na motivação das decisões. É difícil encontrar a ratio decidendi em julgados colegiados nos quais se chega a uma conclusão majoritária sem uma preocupação com alinhamento dos fundamentos entre os julgadores. É comum que cada magistrado, no colegiado, substancie seu raciocínio jurídico em diferentes fatos, atribuindo-lhes diferente valor. Eis aí outra mudança exigida pelo CPC, que quem provocando reações. Mas este é tema que merece abordagem em texto próprio.

    Conclusão
    Estamos diante de uma grande oportunidade de aperfeiçoamento do nosso sistema jurídico, com a chegada de um consistente modelo de vinculação aos precedentes judiciais, mas precisamos estar atentos ao nosso sistema imunológico.

    Algumas interconexões que decorreram das mudanças trazidas com a ideia de vinculação aos precedentes não foram antevistas. Institutos processuais com funções aparentemente incompatíveis com as do modelo criado, assim como valores e rotinas, que estão na cultura dos operadores do direito — que não são apenas os juízes —, permaneceram ativos, produzindo seus efeitos.

    O recurso ao uso de teses, ao final dos julgamentos em recursos repetitivos ou com repercussão geral, e sua aplicação silogística aos casos subsequentes, parecem ser manifestações desse sistema que, na essência, é dogmático. Espera-se que o precedente se comporte como uma lei, exercendo sua função e propósito.

    Aplicar o precedente a casos subsequentes, porém, é diferente de aplicar a lei. A invocação de um precedente como razão de decidir exige mais que um processo de subsunção.

    Exige comparar fatos, comparar contextos, identificar os acontecimentos, as circunstâncias e os argumentos mais relevantes no precedente e no caso sob apreciação, para só então, e se for o caso, extrair do precedente uma rule a ser aproveitada.

    Por mais que as teses jurídicas possam ser úteis para a solução de casos repetitivos, muito característicos do direito brasileiro, o modelo criado tem potencial para ser muito mais que um mecanismo de racionalização de procedimentos para questões repetitivas.

    Previsibilidade, segurança jurídica e coerência são valores que fundamentam um verdadeiro sistema de respeito aos precedentes judiciais. Seu alcance, porém, dependerá do quanto estivermos dispostos a produzir e a interpretar, de forma sinérgica e consistente, a fundamentação dos julgados e do quanto estivermos percebendo que precisamos mudar a nossa forma de argumentação para partir dos fatos em busca do direito, ao invés de buscar normas onde possamos subsumir os fatos.


    Referências:
    ALVIM, Teresa A. O Juiz Criativo e o Precedente Vinculante – Realidades Compatíveis. Revista da Emerj v. 20, p. 196-208, 2018.

    FERRAZ, Taís S. Ratio Decidendi X Tese Jurídica. A busca pelo elemento vinculante do precedente brasileiro. Revista de Processo, v. 265, p. 419-441, 2017b.

    FERRAZ, Taís S. O precedente na Jurisdição Constitucional: Construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017.

    ZANETTI JR., Hermes. O Valor Vinculante dos Precedentes: Teoria dos Precedentes Normativos Formalmente Vinculantes. 4. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2019.

     é mestre em Direito pela PUCRS, doutoranda em Ciências Criminais; professora titular do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) da ENFAM; desembargadora do TRF-4 e integrante do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal.

    Revista Consultor Jurídico, 14 de novembro de 2020, 12h06

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