Mulheres na Justiça: breve comentário sobre o filme e documentário 'A juíza'

    Artigo escrito pela desembargadora federal do TRF4, Marga Inge Barth Tessler, para o projeto Direito Hoje, da Escola da Magistratura do TRF4 (Emagis). O projeto busca trazer mais dinamismo à divulgação da produção textual dos magistrados, com a publicação online de artigos que abordem questões emergentes no Direito nacional e internacional.

     

    Introdução[1]

    Refletir sobre trajetórias femininas na Justiça é muito interessante e importante. O tema é atual, e estatísticas recentes apontam que a presença feminina ainda é insignificante nos tribunais de apelação e nas cortes superiores.[2] O gênero feminino continua sub-representado, mas esse fato tende a se alterar muito lentamente, pois “a mudança real, duradora, acontece um passo de cada vez”.[3]

    A minha atenção neste breve comentário recai sobre o citado documentário, e com estas anotações trago pequena contribuição para iluminar a trajetória de vida da célebre Ruth Bader Ginsburg, que se transformou em ícone popular aos mais de 80 anos de vida nos EUA.

    Joan Ruth Bader Ginsburg: Notorious RBG

    Vamos aos dados pessoais: Ruth nasceu em Nova Iorque, Brooklyn, em 1933, no dia 15 de março, em um período que se iniciava muito difícil, pois a Grande Depressão data de março de 1933. Foi a segunda filha do casal Celia Amster (1902-1950) e Nathan Bader (1896-1968), família judia de imigrantes de classe média baixa. Por parte de pai, Ruth era a primeira geração nos EUA. Ele saíra de Odessa provavelmente após 1903, pois se sucederam mais de 600 Progroms na Ucrânia e na Bessarábia, judeus abastados promoviam a vinda dos perseguidos. Vemos no filme “Um violinista no telhado” o que pode ter sido a retirada de Nathan Bader. A família materna veio antes de 1900, provavelmente da Galiza, enquanto pertencia ao Império Austro-Húngaro, pelos mesmos motivos. Os pais perderam a filha mais velha, Marilyn, vítima de poliomielite. A mãe, Celia, foi a figura forte para esta filha então única. Foi uma figura fundamental na sua trajetória de vida. Faleceu de câncer no dia da formatura da filha no segundo grau. “Gostaria de ter convivido mais com a mãe.” A convivência na primeira infância foi decisiva. A mãe não pôde estudar, pois só havia dinheiro para custear os estudos do filho homem. Joan Ruth tinha o dever de realizar esse sonho materno: estudar.

    A mãe, ainda, percebendo que havia muitas meninas de nome Johan/Joan na escola, pediu aos professores que passassem a chamá-la de Ruth, “de modo a distingui-la das demais alunas”. Personalidade discreta, reservada, não expansiva, falando baixo, mas determinada, segundo depoimento de amigas da escola.

    Levar um nome bíblico

    Não é fácil carregar pela vida um nome bíblico forte. A história moral do Livro de Ruth do Antigo Testamento[4] deve ter sido várias vezes lembrada e considerada, na família, no colégio, na comunidade ortodoxa que frequentou. “Ruth vale para a mãe mais do que sete filhos.” “Estava destinada a ‘tomar o lugar de um homem’.” Nome que remete ao companheirismo e à amizade entre mulheres. Ruth bíblica, a moabita, foi amiga e companheira da sogra Noemi, acompanhando-a na viagem de retorno para Belém. Ruth foi a avó do Rei Davi.

    A construção da identidade[5]: “por que estou aqui?”

    Prosseguindo no documentário, os depoimentos e a sucessão de imagens deixam entrever o processo de construção da identidade da juíza Ruth. A identidade seria algo dado ou é construída? Gosto da lição de Zygmunt Bauman, que conclui:

    [...] a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.[6]

    Bauman destaca a condição eternamente provisória, que hoje, na modernidade, não fica mais oculta.

    A estrela que orientou o caminho

    Fundamentais para a construção da identidade e do caminho escolhido pela magistrada, como observado no documentário, foram:

    1) a influência materna, que ensinou a amar o aprendizado: “seja uma moça, seja independente e saiba se defender”;

    2) a tradição: “valer mais que sete homens”. Narrativa bíblica.

    3) a memória familiar de privações, perseguições e ausência de direitos civis. O imprinting cultural inscreve-se desde a tenra infância;[7]

    4) a frustração pessoal: não poder fazer a reza fúnebre no enterro da mãe, pois são necessários 11 homens para a cerimônia (mínian);

    5) as experiências universitárias: proporção de 9 mulheres para 500 estudantes homens.

    Essas podem ter sido circunstâncias determinantes para levá-la a lutar para alterar as coisas, no caminho da igualdade de gênero, mudando o mundo para as mulheres na América do Norte. Desenhou uma nova paisagem jurídica, colocando a mulher em igualdade de posição com o homem.[8] Uma artista da vida, voltando a Bauman.[9]

    Vida estudantil

    Parece ter sido marcante o fato de serem nove mulheres para 500 homens. Na conversa com a neta Clara Spera, vemos que foram necessários 200 anos para alcançar a igualdade de gênero no corpo de alunos. A sensação era de que estava sendo sempre analisada, observada. Passou a ser a primeira da classe na Universidade de Columbia. Publicou artigo na revista escolar, façanha reservada aos 25 melhores alunos da instituição. A dificuldade maior foi o marido, que ficou doente. Cuidou e estudou, assumindo tarefas acadêmicas dele para facilitar a recuperação.

    Casamento com Martin Ginsburg, seguindo a tradição

    O casamento foi no tempo tradicionalmente “certo”, e com parceiro da comunidade israelita. Eram muito diferentes, mas deu certo, segundo depoimentos de colega magistrado e de amigas. Passou a investir na carreira após o nascimento dos filhos. Admirou o marido e parece ter sido conquistada pela atenção que ele dispensou às suas qualidades intelectuais. Não militante e discreta, o marido foi decisivo para a carreira, usando de suas relações no mundo político e empresarial. Foi decisivo para que fosse considerada candidata à Suprema Corte por Clinton.

    Vida profissional: ser ativa na lei

    Os escritórios de advocacia, na época, não contratavam mulheres. As senhoras grávidas eram demitidas de seus empregos. Diante das dificuldades legais, aceitou o desafio de dar aulas sobre as questões de gênero e a lei. Construiu um projeto “Direito das Mulheres”. Junto com colega, passou a assumir o patrocínio de causas sobre a questão. O primeiro foi Frontiero v. Richardson, em 1973, que envolvia o recebimento de um benefício denominado auxílio-moradia, pago apenas aos militares do sexo masculino. Reclamou na administração da Força Aérea. As leis restringiam o direito aos homens por serem chefes da família. Fez a primeira sustentação oral na Suprema Corte. Venceram a causa. Veja-se o depoimento da senhora, hoje militar inativa. São referidos, ainda, Califeno v. Goldfarb e Weinberger v. Wiesenfeld (1975). Tornou-se conhecida pelo patrocínio competente de tais demandas, sempre em questões de gênero.

    Indicação pelo democrata Bill Clinton para a Corte Suprema

    O Presidente Bill Clinton, na entrevista incluída no documentário, disse que não a considerava inicialmente. Provavelmente por sua origem, sua religião não católica e sua idade, pois já tinha mais de 60 anos. A influência do marido foi decisiva para levá-la a ser chamada para conversa com o presidente. O contato pessoal parece ter sido impactante, nas palavras de Clinton. Depois da conversa, inclinou-se pela indicação.

    Atributos e aspectos pessoais

    O documentário faz retrospectiva apresentando a bela jovem de olhos intensamente azuis e cabelos castanhos sedosos. Advogada discreta, mas eloquente. Mãe que gostava de brincar e cuidar da filha após o expediente. Na condição de juíza, recolhe-se aos trajes mais clássicos. Incorpora à toga, junto com O’Connor (primeira mulher na Suprema Corte), golas jabot que passa a receber de amigas e admiradores. Usa luvas rotineiramente e o cabelo em coque baixo, seguro por fita. Broches na lapela. Uma concessão ao supérfluo marcando o estilo pessoal.

    Na música deixo me levar

    Gosta de música, especialmente de óperas, que frequenta com a família. Mais ainda, aceita ser figurante, fazendo a Duquesa de Krakentorp,[10] o que não é usual para uma autoridade e personalidade do Judiciário. Na música, ópera, “me deixo levar”, vivendo o intenso momento que a música proporciona. Frequentava os espetáculos com o maior adversário na Corte, Justice Scalia. A música os aproximou. Veja-se o depoimento do filho de Scalia. A música é uma prática humana essencialmente carregada de afeto e emoção que leva os envolvidos a interações sociais pacíficas.[11]

    Trilha sonora do documentário

    A trilha sonora do documentário é muito boa. Parece ter sido escolhida com o propósito de compor aspectos da figura documentada. Vejamos: “O barbeiro de Sevilha”, de Rossini, ópera cômica. Rosina, a heroína, é uma moça simples, tutelada pelo velho Bartolo, que pretende desposá-la. O barbeiro Fígaro ajuda a moça a ficar com o Conde Alma Viva. Em “Lúcia de Lammermmor”, de Donzetti, a heroína Lúcia tem a iniciativa de romper com a família para casar com o amado, mas o casal comete suicídio. Na “Flauta mágica”, de Mozart, apresentam-se figuras femininas decididas e positivas. A ária escolhida é a “Hölle Rache”, a “Rainha da Noite”, uma figura feminina poderosa que conspira com a filha Pamina para eliminar Sorastro. O feminino que se impõe ao masculino. Ver a ária cantada por Diana Damrau, staccatos com coloratura.

    Temos ainda conexão improvável da juíza com o rapper Notorious Big, que canta “Juice”. Ao ser entrevistada, não se diz incomodada, pois ambos nasceram no Brooklin, então tem algo em comum com Notorious Big.

    Estatuária masculina

    Chamo a atenção para as imagens veiculadas ao início do documentário. Foram muito felizes e expressivas. Um grande número de monumentos com personagens masculinos. É o retrato do mundo estático centrado no masculino. Em outro momento, ao dar explicações para estudantes, identifica os homens retratados como personalidades de destaque na Suprema Corte. Em nenhum momento propõe retirá-los do local, ou deixar de reverenciar os precursores, mas deixa ao expectador a tarefa de completar quadros, agora com mulheres.

    Posição na Suprema Corte: “I dissent

    O documentário faz comparativo entre a posição inicial, mais ao centro, com alinhamento com conservadores, e, após as mudanças e a vinda de novos membros indicados entre republicanos, a passagem à centro-esquerda. Por último, ficou notória por seus votos divergentes, muitos isolados. Passa a ser questionada sobre a aposentadoria, perguntas que não fariam a um homem. Veja-se que esse aspecto é muito emblemático, pois há perguntas que apenas são feitas paras as mulheres.

    Alguns casos em que proferiu votos com imensa repercussão: em 1996, United States v. Virginia. A Faculdade Militar não aceitava mulheres e, graças ao seu voto, foi considerada inconstitucional a restrição e admitidas mulheres que atendessem aos requisitos físicos. Outro foi o Bush v. Gore, sobre o impasse nas eleições presidenciais, que foi decidido pelo voto da maioria, tendo a juíza Ruth se mantido dissidente, não recomendando posição ativa do Judiciário (ativismo judicial em matéria política), autocontenção. Observe-se a importância desse tema.

    Recentemente, na eleição de Donald Trump, manifestou-se desfavoravelmente a ele. Após a eleição, tendo recebido críticas pelo pronunciamento, acabou pedindo desculpas, reconhecendo ter sido imprópria a declaração e asseverando que nenhum membro da Suprema Corte levaria em consideração as suas preferências partidárias ao votar.

    Justice Ruth Ginsburg faleceu em 18 de setembro de 2020, aos 87 anos. Mais uma vez quebrou paradigmas. Foi a primeira mulher a receber homenagem fúnebre na câmara-ardente no Statuary Hall do Capitólio. Em toda a história dos Estados Unidos, apenas 33 pessoas haviam recebido a honraria antes, todos homens, em um grupo constituído por presidentes, congressistas e heróis de guerra.

    Conclusão

    Ruth Bader Ginsburg construiu uma brilhante carreira na magistratura e, ao fazê-lo, mudou o mundo para as mulheres sob o prisma da igualdade de gênero. Trajetória inspiradora. Há muitos espaços para serem ocupados. Qual seria o número ideal de mulheres no STJ e no STF? Parafraseando Notorious RBG, o ideal no STJ seriam 33, e no STF, 11. Vamos em frente.

     

     


     [1] “RBG” (“A juíza”) – documentário dirigido por Betsy West e Julie Cohen, distribuído por Magnolia Pictures, prêmio Emmy 2015. Não ficção, disponível no NOW.

    [2] Folha de S. Paulo, 1 de março de 2020, sobre o TJ de São Paulo. Dos 360 cargos de desembargador, apenas 31 são ocupados por mulheres. Nas demais unidades da Federação, o percentual fica abaixo dos 10%. Os tribunais de justiça e os tribunais superiores seriam “clubes masculinos das elites judiciárias”.

    [3] “Notorious RBG”, documentário de Irin Carmon e Shana Knizhnik.

    [4] Antigo Testamento, Livro de Ruth.

    [5] BAUMAN, Zygmunt. A identidade não é dada: nossas identidades (ou seja, as respostas às perguntas “quem sou eu?”, “qual o meu lugar no mundo?”, “por que estou aqui?”) precisam ser criadas.

    [6] BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Editora Jorge Zahar. p. 21 e 22.

    [7] MORIN, Edgar. O método 4: as ideias – habitat, vida, costumes, organização. Editora Sulina.

    [8] Frase-mantra: “Eu não peço favor pelo meu sexo. Tudo o que peço aos nossos irmãos é que tirem os pés dos nossos pescoços”, “Notorious RBG”, documentário.

    [9] BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida.

    [10] Duquesa de Krakentorp, personagem falado na ópera “As filhas do Regimento” de Donizetti. É uma ópera cômica na qual as filhas são vivandeiras que servem aos soldados. Ver Pavarotti, “Ah! Mes Amis”, ária linda.

    [11] VIGOTSKY, Lev. Foi um teórico do ensino como prática social. Enfatizou a interação entre professor/alunos e a música para o pleno desenvolvimento mental. Do seu pensamento originou-se a corrente pedagógica do socioconstrutivismo ou sociointeracionismo.

    Dúvidas, sugestões ou mais informações?

    Fale Conosco

    Dúvidas, sugestões ou mais informações? Entre em contato com a Ajufe. Queremos melhorar cada vez mais a qualidade dos serviços prestados.

    Os campos com asterísco (*) são de preenchimento obrigatório.
    4 + 3 = ?

    Ajufe.org.br

    A Ajufe utiliza cookies com funções técnicas específicas.

    Nós armazenamos, temporariamente, dados para melhorar a sua experiência de navegação. Nenhuma informação pessoal é armazenada ou capturada de forma definitiva pela Ajufe. Você pode decidir se deseja permitir os cookies ou não, mas é necessário frisar que ao rejeitá-los, o visitante poderá não conseguir utilizar todas as funcionalidades do Portal Ajufe. Enfatiza-se, ainda, que em nenhum momento cria-se qualquer tipo de identificador individual dos usuários do site. Para demandas relacionadas a Tratamento de Dados pela Ajufe, entre em contato com privacidade@ajufe.org.br.