Artigo escrito pelo juiz federal Tiago Martins, coordenador da Comissão da Ajufe que acompanha o Projeto de Reforma da Lei de Improbidade, publicado no Blog Fausto Macedo do Estadão.
Apesar de diversos avisos por parte de especialistas e agentes do Sistema de Justiça, a Câmara dos Deputados aprovou na última quarta-feira (17/6) o Projeto de Lei que altera a Lei de Improbidade Administrativa, tipificando os atos de improbidade e punições aos agentes públicos desonestos. Pendente de aprovação ainda no Senado, o PL 10.887/2018 foi idealizado por um grupo de qualificados juristas, mas sofreu grandes alterações na Câmara, a última delas divulgada na última terça-feira (15/6).
Dentre essas alterações, destaca-se a regra que reduz as possibilidades de punição daqueles que violem princípios da Administração, situação que responde por metade das condenações por improbidade.
Se é verdade que há alguma evolução aqui, trata-se da manutenção do artigo 11, que seria revogado integralmente na versão anterior do PL. Contudo, será difícil que alguém seja punido por esta norma, diante da instituição de uma série de cláusulas de barreira para sua aplicação, como a que diz ser necessária ‘lesividade relevante ao bem jurídico tutelado’ e outra que estabelece que a ação de improbidade não é 'via própria de controle de legalidade de políticas públicas'.
Além disso, se for possível condenar alguém por violação aos princípios da Administração, não será mais admitida a imposição das penas de perda do cargo e de suspensão de direitos políticos.
Já para as figuras que ainda admitem a perda do cargo (enriquecimento ilícito e dano ao erário), fica mantida a possibilidade de aplicação da sanção, mas o cargo a ser perdido será, como regra, somente aquele ocupado na ocasião da prática da improbidade. Assim, contrariando a jurisprudência formada sobre o tema, se o desonesto praticou o ato, por exemplo, enquanto prefeito, e depois veio a ser eleito deputado, este último cargo fica preservado. O condenado, então, é considerado desonesto para ocupar um cargo público, mas para outro não.
Recuperar bens desviados também fica mais difícil. Mais uma vez destoando da visão firmada nos Tribunais, o PL estabelece que o bloqueio de bens do acusado demanda prova concreta de ocultação ou dilapidação patrimonial. Além disso, a indisponibilidade de bens de terceiro (‘laranja’), requer demonstração efetiva de sua participação ou desconsideração da personalidade jurídica, quando o potencial ‘laranja’ for empresa. Esses requisitos, exigidos já na fase inicial da ação de improbidade, praticamente inviabilizam a recuperação de ativos, que já é extremamente baixa: não mais de 10% das ações de improbidade resultam em alguma reparação ao Estado.
Mais inusitada é a regra que limita o alcance da indisponibilidade ao dano causado ao erário, afastando-a expressamente do ‘acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita’. Assim, se houver suspeita concreta de que o agente público recebeu propina, a vantagem indevida fica a salvo de bloqueio por parte do Judiciário. Some-se a isto o comando para que a indisponibilidade alcance primeiro ‘bens de menor liquidez e, apenas na inexistência destes, o bloqueio de contas bancárias’, um privilégio o acusado, em detrimento da reparação do interesse coletivo lesado.
Há, ainda, normas que tornam o exame inicial da ação mais rigoroso, com o evidente propósito de, em caso de dúvida, obstar desde logo o seguimento da causa, mais uma vez em colisão com a visão da jurisprudência sobre o ponto. Neste contexto, é previsto que, antes das provas serem produzidas, deve ser fixado pelo juiz o tipo de improbidade atribuído ao réu: enriquecimento, dano ao erário ou violação de princípios. Depois disso, a imputação se torna imutável, mesmo que a prova venha a demonstrar que não houve, por exemplo, mera violação de princípios, mas efetivo recebimento de suborno.
Há também outras cláusulas tratando de compensação de penas já aplicadas ao condenado em outra esfera punitiva, ônus financeiros para ações improcedentes e regras de prescrição rigorosas, que tornam difícil se obter uma condenação no tempo que passa a ser desejado pelo legislador, sobretudo diante da complexidade das regras de processo e da generosidade recursal de nosso sistema, que impedem tramitação processual acelerada.
Tudo isto, além de outras inovações cujo exame não cabe neste espaço, deixam a sensação de que o texto olha muito mais para o acusado de corrupção do que para o Estado e para a sociedade. A isto se soma o pedido de tramitação urgente do PL, sem que se esteja vivendo um momento particularmente diferente no que tange à aplicação da Lei de Improbidade, a justificar tal pressa.
Aliás, tal aceleração apenas resulta em impossibilidade de maior discussão e esclarecimento sobre as mudanças em curso. E o grande receio é justamente que a falta de maior debate transfore a Lei de Improbidade na Lei de Impunidade, o que agravaria ainda mais o déficit de controle sobre atos ilícitos praticados contra o erário e a sensação de impunidade que está incrustada no tecido social. Tudo isto pode ser evitado, contudo, bastando que o Congresso conceda mais tempo para que o país possa analisar melhor as alterações propostas.
*Tiago Martins é doutorando em Direito, juiz federal e coordenador da comissão da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) que estuda o Projeto de Reforma da Lei de Improbidade