Por Edilson Pereira Nobre Júnior
Há muito que pretendia escrever este artigo. Circunstâncias de tempo — e muitas outras — permitiram que somente agora pudesse fazê-lo. Não se trata propriamente da abordagem de um tema sob um viés próprio, mas, antes, do que poderia chamar de uma resenha do livro "As raízes legais da corrupção (ou como o direito público fomenta a corrupção em vez de combatê-la)", de Héctor A. Mairal. Direcionarei o enfoque para o conteúdo do texto, sem olvidar a cautela — imprescindível, aliás — de não cair no vício de ser um spoiler.
O autor, titular da cátedra de Direito Administrativo da Universidade de Buenos Aires (1978-2008), celebrizou-se por vários textos doutrinários, especialmente "La doctrina de los própios atos e la Administración Pública" (1978) e o "Control judicial de la Administración Pública" (1984). A editora, a Contracorrente, conservou, para a edição brasileira, o prefácio de Augustín Gordillo, agregando, a cada capítulo, comentários a cargo de Toshiro Mukai, ao tecer um confronto com a realidade nacional, próxima política e culturalmente com a da Argentina.
O escrito não é mais um versando considerações teóricas sobre o fenômeno, tão assíduo nos tempos que correm. A sua singularidade reside em demonstrar que o sistema jurídico, nas suas fontes, entre as quais as principais são as regras escritas, é moldado de maneira a estimular ou favorecer as práticas desvirtuadas. Tem-se, na prática, não somente uma corrupção espontânea, mas, igualmente, uma induzida, à qual o particular se vê inexoravelmente forçado a aderir.
Não pretende o autor desestimular o esforço repressivo contra a corrupção. Absolutamente. Visa, por outra perspectiva, a reduzir as nefastas consequências do fenômeno, privilegiando a senda de uma conscientização cultural tendente a preveni-lo.
Entre os pontos que aborda, estão alguns que já figuram, com habitualidade, nas discussões jurídicas. A primeira preocupação é a de mostrar que a insegurança jurídica é — e isso desde os tempos mais remotos — uma área fecunda para que a corrupção possa germinar com tranquilidade. O excesso de normas (leis e regulamentos), ao lado da sua falta de clareza ou ambiguidade, da sua duvidosa validade, bem como do seu desprezo pelo Estado, quando favoráveis ao cidadão, ensejam a criação de dificuldades que, numa contrapartida, tendem a desaparecer diante do surgimento de facilidades.
Essa realidade é agravada, diz Mairal, quando o cidadão não se encontra protegido por um eficaz acesso à Justiça, muitas vezes restrito por óbices de custo ou de procedimento, máxime a sacrossanta presunção de legitimidade [1], de sorte a preponderar, assiduamente, a inação contra a arbitrariedade, quando se está diante do receio de sanções gravíssimas.
O cenário de insegurança é, assim, capaz de criar um clima de desemparo para o cidadão, que se encontra sob a ameaça constante dos agentes do Estado, bem como para estes, porquanto os servidores corretos, muitas vezes, acham-se inibidos de tomar decisões favoráveis ao particular sob pena de serem vistos com desconfiança.
Ainda no plano da elaboração normativa, o autor met à l’honneur a prática, cada vez mais frequente, da elaboração de normas irreais ou excessivamente ambiciosas, cujo cumprimento pelos particulares — ao menos no primeiro instante — colide com as condições vivenciadas pelos fatos.
Igualmente, vê com preocupação a múltipla previsão de licenças para o exercício de atividades, sem que, no entanto, haja uma disciplina satisfatória do silêncio administrativo, pois a experiência evidencia que tal cenário conduz a situações indesejáveis.
A sensatez fez com que não se esquecesse de lançar uma crítica em desfavor da multiplicidade de controles que, se não é conducente a evitar desvios, implica num engessamento burocrático da máquina administrativa, ao instante em que exalta a necessidade de se instrumentar a contento a participação cidadã, a transparência das decisões públicas e o aperfeiçoamento do controle jurisdicional.
À derradeira, como não poderia deixar de ser, ocupa-se das licitações, principalmente sob o ângulo da competitividade, e da execução dos contratos administrativos. Aborda a temática dos pagamentos, à medida que a experiência ensina que um Estado descumpridor dos seus compromissos cria incentivos à corrupção [2].
O viés do escrito é, nos tempos da civilização do espetáculo [3], bastante inovador. Não nega a virtude — que não deve cessar — da luta contra a corrupção. Busca despertar, diferentemente do estrépito, o olhar para uma mudança de comportamento, qual seja a de que a ordem jurídica, que deve se pautar pela simplificação, há de ser estruturada, na sua dinâmica evolutiva, para eliminar e não favorecer as causas das condutas reprocháveis.
Duas constatações hão de resultar da leitura. A uma, a tentativa do autor para nos libertar da crença inabalável num formalismo jurídico em favor de uma mudança de cultura, a qual privilegie mais o conhecimento da realidade. A outra, indispensável à função social que o livro há de satisfazer, é uma linguagem que traz ao leitor mais do que informação, consistindo numa leveza argumentativa que proporciona uma atração irresistível.
[1] Nada mais útil para um julgamento rápido, mas nem sempre necessariamente justo, é a práxis de se invocar a presunção de legitimidade para rejeitar o questionamento do administrado, o que equivale a lhe contornos absolutos. A doutrina argentina (Roberto Dromi. Derecho administrativo. 5ª. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1996, p. 228-229; Julio Comadira. Procedimientos administrativos. Buenos Aires: La Ley, 2003, p. 234-235) vem superando essa presunção em diversas e muitas situações.
[2] O artigo 141 da Lei nº 14.133/2021, a exemplo do seu antecedente (artigo 5º, Lei nº 8.666/92), estabelece o dever dos órgãos públicos em elaborar ordem cronológica de pagamentos para fontes de despesas diferenciadas, a qual somente pode ser desconsiderada quando, motivadamente, for apontada alguma das exceções seu §1º, I a V. O seu §3º impõe a sua divulgação nos sítios eletrônicos oficiais.
[3] Sobre a expressão ver Mário Vargas Llosa (A civilização do espetáculo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 19. Tradução por Ivone Benedetti).
Edilson Pereira Nobre Júnior é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, professor titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e pós-doutor em Direito Público pelo Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 20 de agosto de 2021, 10h55