Artigo: Mulheres nos tribunais: uma tarefa para o CNJ

    Artigo originalmente publicado pelo JOTA.

    Maior nomeação de juízes e juízas desde 1989 é oportunidade para se romper com a assimetria de gênero

    Neste ano haverá o que, possivelmente, será a maior nomeação de juízes e juízas da história do Poder Judiciário, após a instalação dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) em 1989. As Leis 14.226 e 14.253, de 2021 criaram cargos para recompor o sistema da Justiça Federal de segundo grau. Esta, como se verá, pode ser uma grande oportunidade para se romper com a prevalência de gênero nos tribunais.

    A Lei 14.253/2021 estabelece o aumento do número de desembargadores federais em todos os TRFs. Com a modificação da composição e a criação de 18 cargos de desembargador no novo TRF da 6ª Região (Lei 14.226, de 2021) estarão disponíveis, em breve, 81 novas vagas. Essas vagas devem ser providas por antiguidade e por merecimento – em progressões apenas para os juízes e juízas de carreira – e, também, pelo quinto constitucional, neste caso vagas reservadas aos advogados e aos membros do Ministério Público.

    Hoje, a Justiça Federal possui 154 cargos de desembargador – dos quais apenas 20 são ocupados por mulheres. Só para mencionar o exemplo mais perturbador, o TRF5, que tem jurisdição nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas e Sergipe, não tem qualquer mulher em sua composição.

    Em termos de dados e pesquisas produzidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o primeiro Censo Nacional do Poder Judiciário de 2014 já identificava a assimetria de gênero quanto ao número de juízas substitutas e o número de mulheres nos cargos de segundo grau em todo o Judiciário.

    O “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”, realizado em 2019, confirmou os dados ao identificar que quanto mais alto o nível na carreira, menor é a participação de mulheres. A pesquisa apontou que no Judiciário, em 2019, havia 44% de juízas substitutas, 39% de juízas titulares, 23% de desembargadoras e apenas 16% de ministras nos tribunais superiores. Quanto ao estudo “A Participação Feminina nos Concursos para a Magistratura”, publicado em 2020, novamente se identificou que a dificuldade no acesso aos cargos se relaciona à subjetividade do processo de promoção por merecimento.

    Em termos normativos, apenas em 2018, 13 anos após a instalação do CNJ, as políticas de igualdade de gênero deixaram de se restringir ao tema da violência contra as mulheres e passaram a ter o princípio da isonomia como foco. Desde então, atos normativos importantes foram aprovados, como a Resolução CNJ 255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário; e a Resolução CNJ 351/2018, que definiu a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação.

    Mais recentemente, duas novas recomendações também merecem menção, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, fruto do grupo de trabalho coordenado pela conselheira Ivana Farina Navarrete Pena, e o Protocolo Integrado de Prevenção e Medidas de Segurança, voltado ao enfrentamento da violência doméstica praticada contra magistradas e servidoras.

    A sequência demonstra uma virada do órgão em direção à paridade de gênero, apesar de o próprio CNJ não ter em sua composição proporcionalidade no número de conselheiros homens e mulheres. Para citar um exemplo, a vaga destinada ao Senado Federal nunca foi ocupada por uma mulher.

    É inegável, entretanto, que a expansão do segundo grau da Justiça Federal em curso traz ao CNJ não apenas uma janela de oportunidade, mas o dever de demonstrar que seus atos têm força normativa e que seus compromissos ultrapassam presidentes e circunstâncias.

    A composição dos tribunais e conselhos é ainda uma fronteira para as políticas de isonomia de gênero. O tema vem sendo apenas tangenciado pelo órgão, como se vê na Resolução nº 255/2018. Embora oriente os órgãos judiciais a atuar para incentivar a participação de mulheres, o texto cuida apenas dos cargos de chefia e assessoramento, bancas de concurso e eventos institucionais.

    Mais de 80 vagas serão postas em disputa em 2022, e em todas elas os tribunais, quando não responsáveis pela escolha – como no caso das promoções por merecimento consideravelmente mais subjetivas que as promoções por antiguidade –, poderão interferir decisivamente na formação das listas tríplices encaminhadas ao presidente da República.

    Um caminho possível seria a aprovação de uma recomendação para que os tribunais observem a isonomia de gênero nas promoções, com fundamento no artigo 5º da Constituição Federal, no artigo 11 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979 e, também, no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 que insere a Igualdade de Gênero no âmbito das preocupações globais.

    Quanto ao provimento originário, é justo que as vagas do quinto constitucional, que envolvem todo o sistema de Justiça, sejam estabelecidas com equidade. As listas sêxtuplas poderiam ser devolvidas ao Ministério Público e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) caso não incluíssem mulheres. Não basta que decisões e julgamentos incorporem a perspectiva de gênero. Não há política sobre isonomia que avance sem que os envolvidos representem a pluralidade que pretendem proteger. A virada em direção a composições plurais precisa incluir todo o sistema de Justiça, afinal, a diversidade nas estruturas do Estado é uma decorrência do princípio democrático.

    A reconfiguração da Justiça Federal de segundo grau é um ótimo momento para que o CNJ traga a questão ao debate. A promoção por mérito ou merecimento não é uma medalha que se conquista em uma competição por melhores resultados ou grandes amigos, em que todos foram treinados sob as mesmas condições, mas um recurso de organização de cargos desenhado para garantir o melhor sistema judiciário possível. Para ser justo e efetivo, esse sistema precisa reconhecer que está inserido em uma sociedade que não é cega quanto ao gênero, à cor e às condições das pessoas que selecionou como as melhores. Se ontem essa era uma reivindicação atrevida, hoje é só o que se admite para o futuro.

    JANAÍNA PENALVA – Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB e membro da coordenação do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (CEDD)
    ADRIENE DOMINGUES COSTA – Mestre em Políticas Públicas e Gestão Governamental pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e membro do grupo de pesquisa "CNJ e Constituição”
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