Na contramão do genocídio indígena

    Ao adiar marco temporal, Supremo põe emergência em compasso de espera

    6.jun.2022 às 21h00 Publicado em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/06/na-contramao-do-genocidio-indigena.shtml

    Manuela Carneiro da Cunha - Antropóloga
    Inês Virginia P. Soares - Desembargadora federal
    Julio José Araujo Junior - Procurador da República


    O mês de junho começou com uma desanimadora notícia para os povos indígenas: a de que o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ação sobre o marco temporal foi retirado da pauta.

    O chamado marco temporal cria a exigência da presença indígena em seus territórios em 5 de outubro de 1988 como condição para o reconhecimento de seus direitos, critério que ignora um histórico de expulsões e inferiorização desses grupos e afronta a Constituição.

    Indígenas de diversas etnias fazem ato contra o marco temporal em frente ao STF - Pedro Ladeira - 15.set.2021/Folhapress

    A notícia chega após um abril indígena que havia começado de luto pelo falecimento de Dalmo Dallari, jurista que inspirou a inserção de dois artigos que garantem os direitos indígenas na Constituição de 1988 (art. 231 e 232), mas terminado com ares de esperança, pela publicação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da resolução 454, que estabelece diretrizes e procedimentos para efetivar a garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas. Ao reafirmar as linhas constitucionais na matéria, o CNJ indica a necessidade de sua aplicação pelo Judiciário brasileiro e, ao mesmo tempo, fornece aos indígenas subsídios para as batalhas judiciais.

    Construída com importante participação indígena por um grupo de trabalho interdisciplinar nomeado pelo presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, a resolução traz a orientação de que os julgamentos devem adotar uma perspectiva interétnica e intercultural, com o reconhecimento e a adequação às especificidades socioculturais dos povos indígenas e com decisões amparadas na antropologia, sempre que necessário. A norma aponta as características singulares da territorialidade indígena, reafirmando os direitos de posse e usufruto exclusivo, que são reconhecidos aos indígenas de forma independente de qualquer conclusão de procedimento demarcatório. A demarcação é dever do Estado e oferece segurança jurídica, mas esses direitos nascem antes dela.

    A resolução afasta a visão tutelar e o papel paternalista de qualquer órgão —sobretudo da Funai, além de sublinhar o protagonismo dos povos indígenas e sua necessária representação autônoma em juízo. Outro ponto importante é o respeito à autoidentificação desses povos, que possuem autoridade para identificar seus membros, deslegitimando a pretensão do Estado de decidir quem deve ou não ser assim considerado.

    Decisões judiciais podem prevenir que violações se perpetuem ou se repitam. Por isso, a edição da resolução 454 pelo CNJ assume relevância no atual momento, marcado pela paralisação das demarcações, pelo aumento da invasão, destruição e violência contra diversos povos indígenas e pela erosão das instituições de Estado responsáveis pela implementação de políticas públicas.

    Está em curso a revitalização do discurso e de práticas autoritárias. O "ilegalismo autoritário" —termo cunhado pelo colunista da Folha Conrado Hübner Mendes para situações e atos de aparente legalidade, mas que contrariam a Constituição e desrespeitam as formalidades— tem encontrado um porto seguro em órgãos que materializam a violência institucional sob a forma de portarias, decretos e pareceres, num esvaziamento da política indigenista.

    Numa tentativa de atenuar o cenário veloz de degradação institucional, o Judiciário tem sido uma trincheira importante. O posicionamento do STF na ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) 709, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, é um bom exemplo. Essa ADPF respondeu às demandas de proteção das terras indígenas de invasões durante o momento mais crítico da Covid-19 e tem ajudado a frear iniciativas que afrontam a essência dos direitos dos povos indígenas.

    Em 2013, Dalmo Dallari destacava a necessidade de "trabalhar agora pela efetividade das normas constitucionais. Ainda restam injustiças, discriminações, violências". O agora de ontem é a emergência de hoje. Com a retirada do marco temporal da pauta de julgamento, o STF adia a possibilidade de rechaçar essa regra inconstitucional e de reforçar os preceitos veiculados na resolução 454 do CNJ. A emergência entra em compasso de espera, no aguardo de que o Judiciário reafirme sua postura como um Poder que está efetivamente na contramão do genocídio.

     

    * Os autores deste artigo participam do grupo de trabalho de acesso de povos e pessoas indígenas à Justiça do Conselho Nacional de Justiça.

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