População LGBTQIA+ tem de ser incluída no Censo

    Artigo publicado no jornal O Globo: https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/populacao-lgbtqia-tem-de-ser-incluida-no-censo.html


    Por Inês Virgínia P. Soares* e Renan Quinalha**

    No início de junho, celebrado internacionalmente como o Mês do Orgulho LGBTQIA+, o Judiciário brasileiro deu um passo fundamental para o combate à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. A decisão do dia 3, do juiz federal Herley Brasil, do Acre, acolheu pedido do Ministério Público Federal em ação civil pública. Em caráter cautelar, foi determinado que o IBGE “providencie, mediante metodologia que reputar adequada, a inclusão dos campos ‘orientação sexual’ e ‘identidade de gênero’ nos questionários básico e amostral do Censo 2022”.

    Como se sabe, o Censo demográfico, realizado a cada dez anos pelo IBGE, constitui a principal e mais confiável fonte de informações sobre como vive a população brasileira. De abrangência nacional, investiga os domicílios, traçando um amplo panorama da realidade física, econômica e social do país.

    Esse levantamento estatístico é fundamental e estruturante para a formulação e implementação de políticas públicas, sendo instrumento potente para municiar a atuação qualificada dos Poderes Públicos, que passa a intervir na realidade com maior precisão e efetividade. A partir dos resultados encontrados no Censo, torna-se possível não apenas conhecer realidades específicas, mas também fazer o cruzamento com outras bases de dados. 

    A despeito dessa inegável importância, a população LGBTQIA+ vem sendo sistematicamente excluída das estatísticas oficiais. Isso é mais grave considerando o histórico de violências a que essa população vem sendo submetida, por ação e/ou por omissão estatal. Os poucos dados existentes, sistematizados por organizações da sociedade civil diante do apagamento estatístico imposto pelo Estado, revelam que o Brasil é um dos países que mais matam e deixam matar pessoas LGBTQIA+.
     
    A invisibilidade, portanto, torna-se um meio perverso de conservar desigualdades e perpetuar violências. Não por acaso, todos os grupos minoritários (ou minorizados) reivindicaram essa visibilidade na produção de dados. Atualmente, é inconcebível que questões que foram sendo incorporadas sobre a população negra, indígena e de mulheres sejam suprimidas do Censo brasileiro. No entanto, em relação à população LGBTQIA+, segue havendo uma discriminação institucional que é absolutamente injustificável.
     
    Por isso tudo, a recente decisão que impôs ao IBGE o dever de incluir perguntas relativas à orientação sexual e à identidade de gênero no Censo 2022, além de oportuna, é extremamente necessária. Alinhando-se à posição da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a importantes precedentes do Supremo Tribunal Federal no reconhecimento da diversidade sexual e de gênero, a decisão interrompe o ciclo de omissão estatal na produção de dados essenciais para formulação de políticas públicas que resguardem e valorizem direitos da população LGBTQIA+.
     

    Conforme realçado nesta ação civil pública, tanto pelo Ministério Público Federal quanto pelo magistrado, Inglaterra, País de Gales, Canadá, Escócia e Nova Zelândia já incorporaram perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero em seus censos. O juiz federal destacou o caso inglês, no qual a inserção decorreu de determinação da Suprema Corte, que foi atendida sem recursos ou impugnações pelo Escritório de Estatísticas Nacionais. Sobre a exiguidade de tempo para adaptar as novas perguntas à metodologia, o juiz federal Herley Brasil ponderou que seria “menos prejudicial adiar-se o Censo por alguns dias do que se passarem mais 10 anos sem esses dados”.

    Ainda que o preconceito social siga como obstáculo para que muitas pessoas possam responder de modo aberto sobre sua sexualidade, abre-se, no Censo de 2022, uma janela única de oportunidade para finalmente começarmos a incluir a população LGBTI+ na história oficial do Brasil. Melhor agora do que daqui a uma década.


    *Desembargadora federal no TRF3 e mestre e doutora em Direito

    **Professor de Direito da Unifesp e autor do livro “Movimento LGBTI+: uma breve história do século XIX aos nossos dias”

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