Molière, Bergman e o impostor

    Artigo originalmente publicado pelo Estadão, escrito pelo juiz federal *Tarcísio Corrêa Monte.

     

    "Até as coisas mais santas não estão ao abrigo da corrupção dos homens; e vemos patifes que todos os dias abusam da fé e a fazem maldosamente servir aos maiores crimes”.

    Não! Isso não é um comentário de rua, acerca dos pastores no MEC tratando de recebimento de propina em ouro! É um trecho do prefácio que Molière fez sobre sua peça o Tartufo e o Impostor de 1664. Mas bem que podia ser.

    Após a estreia, o autor foi imputado por um padre de ser libertino, uma vez que tentara mostrar a Igreja de forma negativa. A peça foi considerada contra a moral e os bons costumes, além de ofender os clérigos.

    Tartufo ou O Impostor é uma peça teatral dividida em cinco atos. Seu personagem principal é um falso devoto que se hospeda na casa de Orgon, um homem cândido e inocente e de grande fé. Ludibriado por falsas palavras, ele inicia uma idolatria por uma figura, que, obviamente, não a merecia. Nada poderia ser de uma atualidade tão irrefutável.

    Interessante, no entanto, é ver que, no caso dos pastores do MEC, o juiz do processo foi alvo de várias ameaças e ataques. Com tantas evidências divulgadas pela mídia de existência de corrupção no Ministério, indaga-se: por que esse tipo de reação de alguns contra o Poder Judiciário?

    Pois o carro do Juiz Federal que mandou prender o ex-ministro Milton Ribeiro foi atacado em Brasília. Foi alvo de arremesso de fezes de animais, ovos e terras.

    Um ataque enquanto dirigia, logo após deixar sua casa na capital federal. O magistrado autorizou a operação da Polícia Federal que prendeu o ex-ministro da Educação e os pastores Arilton Moura e Gilmar Santos, suspeitos de cobrar propina para liberação de verbas públicas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, ainda que sem funções públicas oficiais no ministério.

    Logo após determinar a prisão de Ribeiro e dois pastores, o juiz recebeu dezenas de ameaças, a maior parte pela rede mundial de computadores.

    O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi provocado a atuar e averiguar as ameaças e recomendou medidas para a proteção do juiz.

    Curioso é que nesses momentos críticos em que the plot thickens, talvez só a arte possa nos ajudar a entender o que está acontecendo em nosso país e no mundo.

    Bergman talvez possa trazer alguma luz com o seu genial O ovo da serpente, filme estadunidense e alemão de 1977.

    Este foi o  filme hollywoodiano do sueco Bergman. O título foi retirado de um verso dito por Brutus na obra de Shakespeare Julius Caesar:

    And therefore think him as a serpent’s egg

    Which hatch’d, would, as his kind grow mischievous;

    And kill him in the shell.

    Em Berlim, novembro de 1923, os habitantes estão sofrendo com a hiperinflação e receando o que virá com a crise política evidente. Então 10 anos antes do incêndio do Reichstag e efetiva ascensão de Hitler, já se podem ver os elementos claros do vício do fascismo se infiltrando na sociedade alemã.

    Na década de 20, muitos outros transparentes ovos de serpente puderam ser vistos com toda a evidência, mas se fazia um esforço enorme para não enxergar o prelúdio do mal, com o réptil já produzido. E esse perigo advindo da intolerância parece nunca morrer. Ele fica latente no seio da sociedade e só a eterna vigilância pode mantê-lo controlado.

    Vai-se cedendo aqui e ali. Primeiro se aceitam ameaças à família de alguém, depois insultos em aviões, depois ataques na rua e em aeroportos, depois drones com fezes sendo atiradas, depois carros de pessoas sendo alvejados, depois festas de aniversário sendo invadidas a tiros…

    E isso não se pode aceitar. Levamos milênios para chegar a algum nível de civilização, para se aceitar um retrocesso tão grande na educação, na tolerância, na boa vontade e no respeito.

    Mas como escreveu Freud em Psicologia das Massas e análise do eu: “prefiro evitar concessões à pusilanimidade; primeiro se cede nas palavras, pouco depois nas coisas”.

    E não se pode ceder ante a necessidade de proteção de um Judiciário independente. A história é sempre recontada, mas nos recoloca como um mantra a importância da essência de algumas ideias:

    Como ensina o mestre Ingo Wolfagang Sarlet: “No século XVIII, na Prússia do rei Frederico II, conhecimento como “o Grande” (Friedrich der Grosse), quando este decidiu edificar um palácio de verão na cidade de Potsdam, nas proximidades de Berlim, junto a uma colina onde existia, já há tempo, um moinho de vento, conhecido como o moinho de Sans-Souci, designação dada também ao novo palácio real.

    Conta-se, ainda, que quando Frederico II resolveu ampliar o palácio, em virtude de o moinho estar impedido os trabalhos, o rei decidiu adquiri-lo, esbarrando, contudo, na inabalável recusa de um moleiro, que invocou o fato de que tanto ele, quanto seu pai ali falecido, mas também os seus filhos, lá tiveram, tinham e teriam sua morada. À vista de tal obstinação, Frederico seguiu insistindo tendo chegado a sugerir ao moleiro, em tom de ameaça, que se assim quisesse poderia confiscar o moinho e as respectivas terras inclusive sem indenização, ao que o corajoso moleiro retrucou que isso não o demoveria e que ainda existiriam juízes em Berlim. Diante disso e da tenacidade do moleiro, Frederico II recuou e, mesmo tendo ampliado o palácio, respeitou os limites do moinho que até hoje se encontra no local.

    É claro que a famosa frase do moleiro – ainda há juízes em Berlim – tem sido invocada geralmente quando se busca enaltecer a independência e imparcialidade do Poder Judiciário, bem como da isonomia na aplicação das leis, sem levar em conta a maior ou menor riqueza, a natureza do cargo das partes, entre outros fatores. Também é verdade que já naquela quadra começou a se desenvolver na Prússia a concepção de um Estado legal de Direito e de um devido processo legal formal, assim como de fato Frederico II”.

    No fim das contas, qualquer sistema político adotado nunca será perfeito. Mas o que temos hoje sem dúvida foi o que de melhor a humanidade alcançou: Estado de Direito com Democracia eletiva e Separação de Poderes com proteção de Direitos Fundamentais. Sem isso, não haverá proteção para todos nós contra a barbárie e os ovos da serpente que sempre estão latentes para retornar ou contra os tartufos e impostores que ganham com uma indevida idolatria em prejuízo claro do próprio povo.

     


     *Tarcísio Corrêa Monte, juiz federal. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha na Espanha na área de Direitos Fundamentais e Teoria do Estado.

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