Calote nos precatórios é tentativa de subjugar a Justiça

    Trata-se de inescusável ofensa ao direito de propriedade dos mais necessitados

     

    A Justiça Federal se depara com algo jamais visto em sua história. O puro e simples calote, por parte do Executivo federal, de parte do pagamento de suas dívidas — os denominados precatórios.

    Para aqueles pouco familiarizados com o assunto, precatório é a forma prevista pela Constituição Federal, no seu artigo 100, para que União, estados e municípios paguem dívidas decorrentes de condenações judiciais. Essas condenações ocorrem após um longo trâmite das ações, observados os mais variados recursos por parte dos entes públicos. Nesses casos, além do longo período de tramitação, o Estado, em sentido amplo, ainda goza de prazo alargado para o pagamento das dívidas judiciais.

    Agora, por meio da emenda constitucional 114/2021 (art. 107-A do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), criou-se a figura do teto para pagamento de precatórios. Ou seja, passa a vigorar um limite para o pagamento das dívidas da União e entes federais com base no gasto de 2016 (ano de criação do teto de gastos) corrigido pela inflação.

    Para este ano, por exemplo, dos R$ 89 bilhões devidos, apenas R$ 45 bilhões foram pagos, ficando o saldo remanescente inserido em fila de espera, possivelmente para recebimento no ano seguinte. O mesmo ocorrerá para as condenações a serem pagas em 2023, e sucessivamente até 2026, incluindo nessa situação verbas de natureza alimentar, cujo pagamento jamais foi parcelado ou postergado pela União.

    Nesse sentido, podemos facilmente perceber que, em 2023, nenhum valor inscrito e a ser pago nesse referido ano será quitado, uma vez que cerca de 50% dos valores devidos em 2022 foram postergados para pagamento no ano seguinte. Por essa média, em 2026, último ano de vigência da emenda constitucional 114/2021, será objeto de pagamento apenas 50% dos valores que deveriam ter sido adimplidos em 2024. Ou seja, todos os valores que deveriam ser quitados em 2025 e 2026, além de 50% de 2024, simplesmente não serão pagos —duas anuidades e meia de precatórios da União, algo, em números de hoje, na casa dos R$ 225 bilhões.
     

    Não fosse isso suficiente, a referida emenda (ADCT, artigo 107-A, §3º) oferta aos credores públicos, sem ruborizar, o pagamento da dívida, dentro do período constitucional originário, com a pura e simples redução em 40%, o que revela inescusável ofensa ao direito de propriedade daqueles mais necessitados, ainda mais após terem enfrentado longo caminho judicial propiciado pelo próprio abuso processual do devedor.

    Essa é uma clara tentativa, por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, de subjugar o Poder Judiciário, impedindo que suas decisões sejam efetivamente cumpridas a tempo e a modo, ferindo a independência dos Poderes, expressa no artigo 2º da Constituição Federal como cláusula pétrea, além de diversos outros dispositivos constitucionais de igual estatura.

    O Supremo Tribunal Federal, em outras oportunidades, reconheceu a inconstitucionalidade de emendas que buscavam alterar o regramento dos precatórios, instituindo verdadeiros calotes, como por exemplo nas ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) 4.357 e 4.425, que questionavam a emenda constitucional 62/2009.

    Outro caminho não se espera do Supremo Tribunal Federal ao apreciar as ADIs 7.047 e 7.064 em face da EC 114/2021, ambas da relatoria da ministra Rosa Weber, em futuro breve a sua nova presidente e responsável pela pauta de julgamentos daquela corte. Essa situação não pode ser postergada, com novo calote em 2023, e o descrédito, ao fim e ao cabo, do Poder Judiciário da União.

     


    Artigo escrito pelo juiz federal e presidente da Ajufe, Nelson Alves, para a coluna de Tendências e Debates da FOLHA de S.PAULO.

     

     

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