Artigo originalmente publicado pelo portal Conjur, escrito pelo ministro do STJ e corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, e pelo jurista Luciano Oliveira de Moraes.
Sumário: 1. Introdução. 2. A construção do código civil brasileiro: a influência do Código de Napoleão 3.A atuação de Teixeira de Freitas no Império 4. Clóvis e o Código Civil de 1916 5. O Código Reale de 2002. 6. A onda atual e necessária para atualização e revisão das legislações civis no Brasil e no mundo. 7. A iniciativa do Senado Federal para atualização do Código Civil de 2002. 8. O papel do Superior Tribunal de Justiça na interpretação e uniformização da jurisprudência infraconstitucional. 9. O Código Civil de 2002 na visão do Superior Tribunal de Justiça: os precedentes mais relevantes em 20 anos de vigência. 10. As contribuições para o direito privado realizadas pelas jornadas de direito civil do Conselho da Justiça Federal 11. Conclusão. 12. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Na mitologia grega, as Moiras eram três irmãs que determinavam o destino dos seres humanos. Elas eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos. De acordo com a lenda, as moiras faziam uso da roda da fortuna, utilizado como tear.
Moira, no singular, era o destino. Na Ilíada, Homero mencionou uma lei que pairava sobre deuses e homens, pois nem Zeus estava autorizado a transgredi-la sem interferir na harmonia cósmica. Na Odisseia, o mesmo autor referiu às fiandeiras, que com as cores de seus fios indicavam os destinos das pessoas.
Nessa linha, transportada a ideia para a empreitada de reforma e atualização do Código Civil de 2002, quero crer que as Moiras, pelas mãos do presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, escolheram um grupo seleto de juristas e colocaram esta grandiosa tarefa em seus destinos, de tal modo que este trabalho de propor ao Parlamento o texto do projeto de lei representa uma enorme responsabilidade para com a atual e as futuras gerações, dado que o Código Civil é o estatuto do cidadão, a normativa que rege a vida civil na sociedade livre.
2. A construção do código civil brasileiro: a influência do Código de Napoleão
A forte tendência à codificação do direito, como traço marcante do positivismo que ganhou ímpeto na Europa continental do século 19, também exerceu grande influência no Brasil. A ideia era reunir em um único compêndio e de modo sistematizado as normas relacionadas a determinado ramo do direito, pois, como lembrou o professor português Cunha Gonçalves, “uma legislação codificada é, pela força mesma das cousas, mais clara do que uma legislação que não o é; tem o carácter da cognoscibilidade, na frase de Benthan” [1].
Spencer Vampré, que foi diretor das Arcadas no biênio 1938/1939, defendeu o valor da codificação pela orientação e estímulo à atividade jurídica que proporciona, nestes termos:
“Um codigo é sempre uma bussola no direito de uma nação. Indica um roteiro, uma direcção geral, e compendia as theorias dos juristas, orientando-as na mesma directriz. Dahi vem a sua grande força fertilisadora. Ainda que a codificação não consagre senão o direito preeexistente, cumpre não perder de vista que a clareza das regras, e a sua systematisação, concorrem poderosamente para o progresso da cultura jurídica”[2].
No que se relaciona ao direito civil, ainda foi mais intenso este movimento, diante do entusiasmo com que o mundo jurídico recebeu o esmerado Código Civil de Napoleão.
O saudoso professor e desembargador Sylvio Capanema de Souza, em artigo muito interessante e bem elaborado, intitulado O Código Napoleão e sua influência no direito Brasileiro [3], destaca, para além da personalidade controversa do grande personagem por trás da codificação, o espírito da obra que influenciou o resto do mundo:
“Na solidão dolorida de seu exílio em Santa Helena, mergulhado na depressão do abandono, consciente de seu fim próximo, Napoleão teria exclamado, premonitoriamente: ‘Minha verdadeira glória não foi ganhar quarenta batalhas. Waterloo apagará a lembrança de tantas vitórias. Mas o que nada apagará, o que viverá eternamente, é o meu Código Civil.’
E era assim que ele, orgulhosamente, o chamava: ‘o meu Código Civil’, com a certeza profética de que nele se imortalizaria, muito mais que por seus méritos militares e sua obra política e administrativa. Nascido com o nome, mais democrático, de Código Civil dos Franceses, passou a se denominar, a partir de 1807, Código Napoleão, voltando, após o Congresso de Viena, em 1815, a ser conhecido, mais simplificadamente, como Código Civil.
Mas em todo o mundo, especialmente no Novo Mundo, os juristas se mantinham fiéis ao título personalista, até que, por um Decreto de 1852, se restabeleceu, por questão de elementar justiça, o nome oficial de Código Napoleão, em unânime homenagem ao seu idealizador e artífice.
Embora já investido de suas enormes responsabilidades, como 1° cônsul, Bonaparte não se limitou, como muitos imaginam, a ordenar a elaboração de um Código Civil, que pudesse unificar o direito até então fragmentado dos franceses.
Das 102 sessões da Comissão de Legislação do Conselho de Estado, a quem encarregou de elaborar o Projeto, no espantoso prazo de seis meses, Napoleão presidiu 57, participando, ativamente das discussões e imprimindo o selo de sua personalidade.
Concluído o projeto, não nos seis meses concedidos, mas apenas em três, muitos dos seus acertos, e também de seus defeitos e imprecisões técnicas, se devem à influência direta de Napoleão, que se igualava, nos debates jurídicos, aos demais Conselheiros, muitas vezes lhes impondo sua opinião.
Estadista intuitivo, logo percebeu Napoleão que a variedade e instabilidade dos regimes jurídicos vigentes na França, enfraqueceria o Estado que já sonhava plasmar, com a energia de sua personalidade.
Dividida estava a França entre o país do direito costumeiro, ao norte, em que cada província se regia por costume próprio, e o do direito escrito, ao sul, onde predominava o direito romano.
Misturavam-se, em verdadeiro cipoal legislativo, os antigos costumes germânicos, o direito romano, os dogmas do cristianismo e, ainda, as lembranças do direito feudal, marcantemente territorialista.
A Revolução buscou a unidade, fundada na idéia de igualdade civil. Como observou Saleilles, citado em magistral conferência do desembargador Oscar Tenório, quando se comemorou o bi-centenário de nascimento do Corso, o Código Napoleão, fruto destas tendências, exprimia uma doutrina filosófica, política e jurídica. A primeira, fundada no princípio segundo o qual o homem tem, desde o nascimento, direitos inerentes a sua própria individualidade, direitos que derivam da natureza.
A segunda, política, consagra a democracia, com a prevalência da vontade coletiva, enquanto que a terceira, jurídica, é relativa à lei, sua aplicação temporal e territorial e seus métodos de interpretação.
A comissão, nomeada por Napoleão, já exprimia o desejo conciliador da unidade. Tronchet, presidente da Cour de Cassation, antigo e respeitado processualista e Bigot de Préameneu, comissário do governo junto àquela corte, representavam o Norte, onde imperava o direito costumeiro, enquanto Portalis, do Tribunal de Presas e Malleville, juiz da Cour de Cassation lutavam pela prevalência do direito escrito, de inspiração romanística.
Era uma espécie de ‘reunião dos contrários’, como observou, com lucidez, Savatier, da qual emergiu o Código, promulgado em 21 de março de 1804.
No Discurso Preliminar sobre o projeto, que embora assinado pelos quatro membros da comissão, se atribui exclusivamente a Portalis, se afirmava que ‘o legislador não deve perder de vista que as leis são elaboradas para os homens, e não os homens para as leis e que estas devem ser adaptadas ao caráter, aos hábitos, à situação do povo, para o qual elas se destinam’.
Sobre a filosofia do Código Napoleão, duas correntes se formaram, sustentando uma, liderada por Duguit, que o seu caráter é puramente individualista, repousando o seu sistema na concepção metafísica do direito subjetivo, enquanto que a outra, com Bonnecase à frente, sustenta que a filosofia do Código é experimental, fruto do meio social. Mas é evidente que sendo Napoleão um filho da Revolução Francesa, o seu Código teria que refletir seus ideais, neles se inspirando.
Vinculado à declaração dos Direitos do Homem, todo o Código repousa numa concepção puramente individualista, o que influenciou todo o direito do Século XIX, inclusive o nosso.”
3. A atuação de Teixeira de Freitas no Império
No caso da codificação brasileira, como explica Vampré, 31 anos após a Constituição Imperial de 25 de março de 1824, “resolveu o Governo do Imperio contractar, em 15 de Fevereiro de 1855, com Augusto Teixeira de Freitas, notavel advogado do Rio de Janeiro, a consolidação do nosso direito civil, isto é, a reducção das Ordenações Filippinas, e de todas as leis vigentes posteriores, a artigos claros e simples, dispostos de accordo com os principios scientificos mais modernos” [4].
O renomado jurisconsulto baiano concluiu a Consolidação das leis civis em 1857, a qual é descrita por Pontes de Miranda como “ampla, erudita, fiel, em que se casam o espírito de organização e a técnica codificadora, de modo a constituir admirável construção, com os mais esparsos e infirmes elementos legislativos então vigentes e oriundos de 1603 a 1857” [5].
De fato, a comissão constituída por três membros – o Visconde do Uruguay, o conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo e o advogado Caetano Alberto Soares – aprovou o trabalho em parecer de 4 de dezembro de 1858, assim se pronunciando, como anota Vampré [6]:
«A commissão considera a «Consolidação» digna da approvação, sinão do louvor do Governo Imperial, pela fidelidade e clareza do texto, pela illustração das notas respectivas, as quaes a fundamentam, e, ao mesmo passo, a regeneram dos erros e abusos da praxe; sendo que dest’arte a «Consolidação», além do fim especial a que se destina, presta um serviço importante ao fôro, desvairado pela incerteza e diversidade de opiniões, as quaes, no vasio do direito patrio, acham largas para o arbitrio, adaptando muitas vezes como subsidiarias, por supposta omissão de nossas leis, disposições que lhe são contrarias.
A «Introducção», que precede a «Consolidação», é um bello epilogo do Direito Civil ; historica e profunda quanto ao futuro, ou «de constituendo», brilha e domina nella um pensamento capital, e vem a ser a differença dos direitos pessoaes e reaes; differença que, na phrase bem cabida de que o autor se serve, é a chave de todas as relações civis. »
A Consolidação das leis civis foi publicada em três edições: a primeira em 1858, edição oficial do Império; a segunda em 1865, impressa à custa de Teixeira de Freitas com autorização do Governo – “acto de 12 de Janeiro de 1859” –; e a terceira em 1876, autorizada por “acto de 30 de Agosto de 1875”, também impressa à custa do autor [7].
A reunião das leis civis do Brasil numa única obra foi um marco importante para a elaboração de um código civil.
Ferreira Coelho registra que, em 1869, o Conselheiro José de Alencar disse à Assembleia Geral Legislativa que “para satisfazer desde logo ao preceito constitucional, entendia que o melhor alvitre era, tomando por base a Consolidação das Leis Civis, completar o trabalho com alguns desenvolvimentos indispensaveis e rever o methodo, e assim organisar-se-hia um projecto de Codigo Civil adaptado ás nossas circumstancias” [8].
Assim, após a primeira edição da Consolidação, o Decreto n. 2318 de 22 de dezembro de 1858 autorizou José Thomaz Nabuco de Araújo, “então Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, que contractasse, com um jurisconsulto de sua escolha, a confecção de um projecto de Codigo Civil, que, uma vez concluido, seria examinado por uma commissão de sete jurisconsultos da Côrte e do Imperio, sob a presidencia de um dos Conselheiros de Estado”.
O jurisconsulto escolhido foi Teixeira de Freitas, na forma de contrato de 10 de janeiro de 1859, aprovado pelo Decreto n. 2337 de 11 de janeiro de 1859 [9]; o termo final para a apresentação do anteprojeto de código civil, conforme a Cláusula 3ª da avença, era 31 de dezembro de 1861, que veio a ser posteriormente prorrogado para 30 de junho de 1864 [10].
Teixeira de Freitas, com o modesto título “Código Civil – Esboço”, apresentou diversos fascículos entre 1860 e 1865, posteriormente reunidos em 2 Tomos, tendo publicado ao final 4.908 artigos; somados, ainda escrevera mais de 200 outros dispositivos em manuscritos. “Infelizmente, assim disperso”, como aponta Haroldo Valladão, “o «Esboço» não teve, qual se impunha, devida apreciação no Brasil” [11].
Valladão prossegue expondo que, no decorrer dos trabalhos, Teixeira de Freitas se convenceu pela necessidade de alterar o rumo de toda a obra, para “em vez de um Código Civil, fazer um Código Geral, dominando a legislação inteira, com definições, regras sobre a publicação, interpretação e aplicação das leis, e a Parte Geral do «Esboço», pessoas, coisas e fatos e um Código Civil, unificando o Direito Civil e Comercial, com a divisão que vinha da Consolidação” [12].
Neste escorço histórico, mister consignar o esclarecimento certeiro de Vampré “[o] esforço demasiado, as vigílias excessivas, as resistencias que encontrava a sua nova idéa de refundir todo o trabalho para numa parte geral unificar os princípios communs do direito commercial e civil, teriam levado a esse tragico fim o mais illustre dos nossos jurisconsultos” [13].
Essa nova ideia do jurisconsulto, em que pese ter sido aceita pelo Conselho de Estado em 1868, foi repudiada pelo Governo, culminando na rescisão do contrato em 1872.
É bem de ver, no entanto, que o “Esboço” de código civil elaborado por Teixeira de Freitas serviu de fonte para partes do código civil argentino, confiado desde 1864 a Dalmacio Vélez Sársfield, o qual afirmou, em carta de 21 de julho de 1865, que “se servira «sobretodo de proyecto dei Código Civil que está trabajando para el Brasil el Señor Freitas, dei que he tomado muchisimos artículos»”. Com efeito, o jurista argentino Lisandro Sigovia afirmou que um terço dos artigos do Código Civil argentino – cerca de 1.000 – vieram do “Esboço” de Teixeira de Freitas. A influência do trabalho do jurisconsulto baiano também é vista no Uruguai, Paraguai – que adotou o código argentino –, Chile, Equador e Nicarágua [14].
Uma vez rescindido o contrato com Teixeira de Freitas, o Decreto nº 5.164 de 11 de setembro de 1872 aprovou o contrato entre o Governo e José Thomaz Nabuco de Araújo para a redação de projeto de código civil no prazo de três anos. O trabalho logrou reunir tão somente 118 artigos do título preliminar e 182 da Parte Geral; os Apontamentos apresentados por Felício dos Santos em 1881 – seguido de Projeto de Código Civil –, também não avançaram pois, cogitada pelo Império e nomeada Comissão de sete membros 1889, sobreveio a República que a dissolveu [15].
4. Clóvis e o Código Civil de 1916
Em 1899, sob a presidência de Campos Salles, deu-se início ao projeto que resultou no primeiro código civil do Brasil, tendo Epitacio Pessoa, Ministro da Justiça, confiado o trabalho ao professor da tradicional faculdade de Recife, Clóvis Bevilaqua. O projeto foi entregue em novembro de 1899, precedido de uma exposição de motivos.
Após a abertura de prazo de seis meses para emendas e observações por parte de faculdades de Direito, jurisconsultos, tribunais estaduais e federais, bem como cidadãos, a Câmara dos Deputados constituiu Comissão de 21 membros, que dividiram os trabalhos em relatorias parciais, e convidar o Ministro da Justiça e outros juristas – Clovis Bevilaqua, Coelho Rodrigues, Andrade Figueira, Manuel F. Corrêa, Bandeira de Mello, Amaro Cavalcanti, Didimo da Veiga, Coelho e Campos, Alencar Araripe, Sergio Loreto, Fabio Leal, Villela dos Santos, Salvador Moniz, Solidonio Leite, Cunha Vasconcellos, Torres Camara, Nestor Meira, dentre outros – para participarem das discussões e apresentarem emendas, sem direito a voto.
O relatório de Sylvio Roméro foi apresentado em 26 de janeiro de 1902, em nome da Comissão dos 21, tendo sido enumerados 49 “pontos cardeais do projecto”. Em razão da impossibilidade de se concluir as deliberações no curso da sessão ordinária, foi necessário reunir o Congresso em sessão extraordinária em março daquele ano.
Finalizada a etapa na Câmara com a votação das emendas e concluída a redação, seguiu o projeto ao Senado, que foi apreciado por Comissão composta por Gomes de Castro, Benedicto Leite, Bernardo de Mendonça Sobrinho, Martins Torres, Segismundo Gonçalves, Ruy Barbosa, Antonio Azeredo, Leopoldo de Bulhões, Manuel de Queiroz, Martinho Garcez, Gonçalves Chaves, Feliciano Penna, Coelho e Campos, Joaquim de Souza, J. M. Metello, Ferreira Chaves, e Bernardino de Campos. Passaram a fazer parte da Comissão, Francisco Glycerio, Justo Chermont, Vaz de Mello, Rosa e Silva, Euclides Maia, Basilio da Luz e João Pinheiro por terem se retirado Ferreira Chaves, Manuel de Queiroz, Bernardino de Campos, Gonçalves Chaves, Leopoldo de Bulhões e Martinho Garcez.
O presidente e relator na Comissão, Ruy Barbosa, apresentou o Parecer de 3 de abril de 1902, apontando emendas à linguagem dos dispositivos no projeto – um verdadeiro substitutivo à redação.
Vampré descreve o clima que se instalou na Comissão, nestes termos:
“As criticas, sempre elevadas, mas por vezes amargas do «Parecer», passaram como uma rajada sobre a cabeça dos principaes cooperadores do Projecto.
Em excursão ao Norte, J. J. Seabra submettera-o já adoptado pela Commissao Especial do Senado, e estampada no «Diario do Congresso», á revisão grammatical do dr. Ernesto Carneiro Ribeiro, lente jubilado do Gymnasio da Bahia autor de notaveis trabalhos philologicos, que fôra mestre de Ruy Barbosa. Era natural que sahisse em defesa de sua revisão o ilustrado professor bahiano, e, digno é dizer-se, para gloria nossa, os dois possantes adversarios estiveram na altura um do outro.
O «Parecer» de Ruy Barbosa, as «Ligeiras Observações» de Carneiro Ribeiro, a «Réplica» daquelle, e a «Redacção do Projecto_ do Codigo Civil» deste ultimo, assignalaram, nos nossos annaes liguisticos, o facto mais memoravel de que temos noticia.
Não conhecemos de outra polemica sobre a língua portugueza, em que o prestigio dos contendores, a somma colossal de erudição de ambos, o talento nas investidas, a irreductibilidade nas derrotas, a variedade das questões, tão alto puzessem o amor da lingua.”
O projeto ficou sob os cuidados dessa primeira comissão até 30 de maio de 1908, tendo sido nomeada uma segunda comissão, dissolvida por força regimental em 12 de maio de 1909. Nova comissão foi constituída, sendo integrada inicialmente por Ruy Barbosa, Francisco Glycerio, Feliciano Penna, Oliveira Figueiredo, Coelho e Campos, Urbano dos Santos, Muniz Freire, J. M. Metello, Thomaz Accioly, João Luiz Alves, Severino Vieira, Segismundo Gonçalves e Alencar Guimarães. Com a saída de Victorino Monteiro, Antonio Azeredo, Francisco Salles e Meira e Sá, foram substituídos por Cassiano do Nascimento Sá Freire, Bueno de Paiva e Tavares de Lyra.
O senador João Luiz Alves, em 2 de agosto de 1911, apresentou projeto de lei propondo a aprovação do texto adotado pela Câmara dos Deputados no mesmo ano, e autorizando o Governo a nomear juristas para apresentarem emendas e aprimoramentos. Contudo, em 13 de novembro de 1911, o projeto do código foi incluído na ordem do dia sem parecer da comissão e aprovado em segunda leitura.
Uma quarta comissão foi nomeada no Senado, composta por Ruy Barbosa, Francisco Glycerio, Coelho e Campos, Sá Freire (relator), J. M. Metello, Segismundo Gonçalves, Cassiano do Nascimento, Thomaz Accioly, Moniz Freire, Antonio Azeredo, Bueno de Paiva, Tavares de Lyra, Feliciano Penna (presidente), Alencar Guimarães, João Luiz Alves, Mendes de Almeida (relator) e Urbano dos Santos. A quase totalidade das emendas de Ruy Barbosa foram aceitas. Os debates foram suspensos em 2 de outubro de 1912 para que fosse emitido parecer sobre as emendas e, reaberta a discussão, apenas Ruy Barbosa falou antes da votação.
Após inúmeras vicissitudes, retornando à Câmara dos Deputados para análise das mais de 1.700 emendas, o presidente Sabino Barroso nomeou comissão especial 31 de dezembro de 1912, a qual ofereceu parecer em 2 de abril de 1913, que entrou imediatamente em discussão. O debate não foi concluído no curso das sessões extraordinária e ordinária daquele ano e, adentrando no ano de 1914, não se deu andamento e saiu da ordem do dia, retornando apenas em 1º de julho de 1915. Foram rejeitadas 94 emendas do Senado, fazendo necessário o retorno à Casa Alta para que se manifestasse pela manutenção ou rejeição dessas emendas.
Deveras, com a volta ao Senado em 22 de julho de 1915, a comissão especial nomeada manteve, em parecer apresentado poucos dias depois, apenas 24 emendas das 94 que foram rejeitadas pela Câmara, que, no retorno do projeto, rejeitou 9 emendas.
As duas Casas legislativas reuniram comissões especiais para a redação definitiva do projeto, que foi sancionado em 1º de janeiro de 1916 pelo presidente da República Wencesláo Braz – Lei nº 3.071 [16].
Na elaboração daquele que seria o primeiro estatuto da vida civil brasileira, a sociologia jurídica identificou vários fatores sociais que agiram na formação das normas legais, “tal como a agulha magnética sob a ação de uma corrente elétrica” [17].
Pontes de Miranda e Sérgio Cavalieri Filho mencionam, dentre alguns, religião, moral, arte, ciência, direito, política e economia [18].
A religião foi preponderante para o código civil de 1916 não estabelecer a possibilidade de divórcio, sobrevindo no ordenamento brasileiro mais de 60 anos depois, com a edição da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977.
A disciplina legal da propriedade em países capitalistas – oposta à de países comunistas – é resultado da influência política.
A disposição contida no artigo 1.262 do código civil de 1916, que permitia a livre pactuação da taxa de juros e regime de capitalização, era resultado da liberdade na economia – pensamento predominante na época, que rejeitava as restrições à usura e ao anatocismo [19]. Os princípios da autonomia de vontade e liberdade das partes contratantes – e o pacta sunt servanda – estavam no apogeu.
A jurisprudência em torno do Código Civil de 1916 foi sendo forjada sobretudo pelos tribunais estaduais e pelo antigo TRF, porquanto a matéria de direito privado quase não tinha previsão no texto constitucional e eram poucos os temas que subiam para apreciação do Supremo, pela via do recurso extraordinário.
5. O Código Reale de 2002
Depois da edição do código civil de 1916, muitos eventos internos e externos provocaram relevantes transformações na ordem social brasileira ao longo do século 20, com destaque para a crise de 1929, deflagrada com a quebra da bolsa de valores de Nova York e o irrompimento da Segunda Guerra Mundial a partir de 1939.
As normas legais estabelecidas para a sociedade de 1916 já não se mostravam adequadas 40 anos depois da edição do código civil, como, por exemplo, prazos prescricionais excessivamente longos. “A vida corre célere, – mais ainda na era da máquina”, já afirmava o mestre alagoano em 1955 [20]. Com essa mesma eloquência, San Tiago Dantas, nas magistrais aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito na década de 1940, ensinava que “nada é mais flexível que o direito, o direito acompanha as transformações da realidade, a vida jurídica é um perpétuo dinamismo” [21]. Nessa mesma linha, o civilista português Cunha Gonçalves admoestava que “o direito objectivo não pode permanecer sempre idêntico e immutável em todas as suas disposições, antes evoluciona no decurso dos tempos, conforme as necessidades e as idéas novas que vão surgindo” [22].
Em razão da necessidade de atualização do estatuto civil de 1916, foi criada, em maio de 1969, a “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, com sete membros, integrada pelos juristas Miguel Reale – supervisor –, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clovis do Couto e Silva, e Torquato Castro.
Após vários meses de pesquisas e reuniões, essa Comissão entregou ao então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, o primeiro texto, que foi publicado em 7 de agosto de 1972, permitindo, assim, a manifestação de corporações jurídicas, tribunais, instituições, universidades, entidades representativas de classe. A par do material oferecido, a Comissão publicou a segunda versão do anteprojeto em 18 de junho de 1974, que também atraiu novas contribuições dos mais diversos setores da sociedade.
Na Mensagem nº 160, enviada ao Congresso Nacional em junho de 1975, Armando Falcão, ministro da Justiça, enfatizou a necessidade da reforma do estatuto civil brasileiro, considerando que o Código Civil de 1916 sublimava “princípios individualistas que não mais se harmonizavam com as aspirações do mundo contemporâneo”, sobretudo no que diz respeito às atividades das empresas, a organização da família, o uso da propriedade e o direito das sucessões.
Duas interessantes diretrizes seguidas pela Comissão, como ressaltou o jurista supervisor Miguel Reale, foram a de promover a revisão do código civil de 1916 “dada a sua falta de correlação com a sociedade contemporânea e as mais significativas conquistas da Ciência do Direito”, e a orientação de “somente inserir no Código matéria já consolidada ou com relevante grau de experiência crítica” [23].
O propósito não era “a de fazer uma revolução ou de solucionar todos os problemas do Brasil com um novo Código, mas de dotar o ordenamento com um instrumento normativo que fosse ao mesmo tempo aberto às mudanças, e um conjunto de regras que representasse ‘a constituição do homem comum’” [24].
O novo código civil estaria calcado, na concepção da Comissão, em três princípios fundamentais: eticidade, com referências frequentes à probidade e boa-fé e uso de normas genéricas ou cláusulas gerais; sociabilidade, para superar o viés eminentemente individualista do vetusto código para outro predominantemente social – como se vê no regramento da natureza social da posse e redução do prazo prescricional de usucapião em algumas situações –; e operabilidade, mediante a apresentação de proposições capazes de facilitar a interpretação e aplicação.
A Câmara dos Deputados constituiu Comissão Especial, presidida então pelo deputado Tancredo Neves, e aprovou o projeto do código civil em 1984 (Projeto de Lei nº 634/1975); o texto contava com cerca de 2.100 artigos e foram debatidas 1.063 emendas apresentadas pelos parlamentares.
A proposta não avançou no Senado Federal em razão do ambiente político do país, caracterizado pelo fim do regime militar, bem como da formação da Assembleia Nacional Constituinte que culminou na promulgação da atual Carta da República em 5 de outubro de 1988.
Miguel Reale afirmou que a Constituição Cidadã, em alguns temas, “não fez senão confirmar o ‘sentido social’ que presidiu a feitura do projeto, pouco ou nada havendo a modificar” [25].
O projeto foi remetido ao Senado em 1984, contando com Comissão Especial sob a presidência de Nelson Carneiro. Em 1989, a Comissão foi reinstalada com novos integrantes, chegando a ser arquivado o projeto e depois desarquivado em 1991. Em novembro de 1997, o então relator geral Josaphat Marinho apresentou o parecer final, com mais 127 emendas de sua autoria. O projeto foi então aprovado por Comissão Especial do Senado Federal em novembro de 1997 (Projeto de Lei nº 118/1984), com o acolhimento de 332 emendas no total. Aprovada a redação final em sessão plenária de 12 de dezembro de 1997, o texto retornou para a Câmara dos Deputados para nova apreciação.
Até esse momento, o projeto do novo código civil já tramitava pelo Parlamento há mais de 22 anos.
O deputado federal Ricardo Fiuza, relator do projeto na Câmara dos Deputados, ao perceber que a missão para a qual fora designado estaria limitada a aprovar ou rejeitar as emendas do Senado Federal, trabalhou com as assessorias técnicas das Mesas das duas Casas Legislativas e os respectivos presidentes, resultando na aprovação da Resolução CN nº 1/2000, que alterou a Resolução CN nº 1/70, dispondo sobre o regimento interno comum do Congresso Nacional.
Diante do longo tempo decorrido na tramitação do projeto, a alteração regimental permitiria à Casa legislativa – responsável pelo envio de projeto de código com tramitação superior a três legislaturas para sanção presidencial após aprovação –, promover as atualizações necessárias no texto decorrentes de alterações legais aprovadas durante a tramitação legislativa [26]. Essa mudança permitiu a adequação de inúmeros artigos com as disposições da Constituição da República promulgada em 1988.
A discussão, na Câmara dos Deputados, estendeu-se até dezembro de 2001, quando foi aprovada a redação final do projeto e, em seguida, enviado à sanção presidencial.
Em janeiro de 2002 foi sancionado o novo Código Civil (CC) brasileiro, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, sendo que a Comissão de Juristas que elaborou o projeto original foi criada em maio de 1969 e a análise do texto pelo parlamento teve início em 1975 [27].
Inúmeras foram as modificações empreendidas no sistema de direito privado no nosso país. Entre outras mudanças que refletiram as transformações sociais entre 1916 e 2002, a maioridade civil passou de vinte e um para dezoito anos, houve um passo em direção a unificação no tema das obrigações civis e comerciais, mudanças substanciais na forma das empresas, no direito das coisas, da família e das sucessões, como detalhou o então senador Josaphat Marinho (1915—2002), relator do texto no Senado, na obra O Projeto de Novo Código Civil [28].
Desde 2003, o Código já foi alterado por outras 53 normas, segundo estatística do portal normas.leg.br.
6. A onda atual e necessária para atualização e revisão das legislações civis no Brasil e no mundo
Em que pese todos os avanços do Código Civil de 2002 – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 –, houve as mais intensas mudanças na sociedade brasileira experimentadas ao longo do século 20, desde novos modelos negociais e contratuais, passando pela engenharia genética, aos novos arranjos familiares e o impacto no plano sucessório.
As alterações legislativas implementadas simplesmente não conseguiram suprir em tempo hábil todas as necessidades dos segmentos sociais, políticos e econômicos em constante evolução.
Essas transformações na sociedade foram catalisadas pela expansão do acesso à internet, no início do século 21, que modificou profundamente as relações interpessoais, o trabalho, os negócios, o lazer, a educação, o acesso e a difusão da informação.
Os novos meios telemáticos – smartphones e tablets – proporcionam a comunicação em tempo real para a ampla maioria das pessoas, algo inimaginável há 20 anos atrás, época em que os computadores ligados à rede mundial eram grandes e inacessíveis para grande parcela da população.
Além disso, algumas tragédias marcaram o passado recente da sociedade mundial, que passou a exibir uma evolução diferente da então conhecida pela humanidade. Refiro-me aos atentados e guerras, às mudanças climáticas com reflexos no fluxo e migração de pessoas, testes nucleares, o avanço de alguns regimes populistas e autoritários com impacto direto na forma de comunicação e difusão de notícias, e por fim a pandemia da Covid-19.
Por outro lado, a pauta da igualdade real entre todos os seres humanos, da justiça social e dos direitos fundamentais efetivamente se implantou neste século 21.
A estrutura da sociedade digital não é mais compatível com as regras do modo analógico. Aqueles que idealizaram e aprovaram o atual Código Civil não poderiam prever tantos avanços que também demandariam a necessária regulação normativa neste interregno.
Outros países também sentiram a necessidade de reforma e atualização do código civil e legislação de direito privado, por força de tais alterações.
No continente europeu, por exemplo, a edição do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), por meio do Regulamento (UE) 2016/679 introduziu significativas normas relacionadas à proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados na atividade comercial [29]. O regramento protetivo é obrigatório para órgãos governamentais e companhias que processam dados pessoais em larga escala.
Outra importante norma recentemente editada pela União Europeia para estabelecer balizas – sobretudo nas redes sociais – é o Regulamento (UE) 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de outubro de 2022, mais conhecido como Regulamento dos Serviços Digitais (RSD), o qual visa assegurar a proteção dos direitos fundamentais, com especial foco na liberdade de expressão e de informação [30]. Nos termos do artigo 93º, item 2, o regulamento será aplicável em sua plenitude a partir de 17 de fevereiro de 2024.
Dentre tantas legislações que vêm sendo atualizadas pelo mundo afora, ainda outros dois exemplos significativos precisam ser mencionados.
Na Argentina, constitui-se comissão em 8 de outubro de 2014 para a elaboração de projeto de novo código civil, integrada pelos ministros da Suprema Corte Argentina Ricardo Luis Lorenzetti – presidente – e Elena Highton de Nolasco, e pela professora Aída Kemelmajer de Carlucci. Em resultado dos trabalhos da comissão e da atividade parlamentar, foi sancionado em 8 de outubro de 2014 o “Codigo Civil y Comercial de la Nacion” (Ley 26.994/2014), dando fim a mais de 143 anos de vigência do Código Sarsfield.
A França, por meio da Ordonnance n. 2016-131, de 10/2/2016 [31], promoveu mais de 500 alterações no direito contratual, no regime geral e da prova das obrigações – regras então inalteradas por mais de dois séculos. No comunicado emitido pelo Conselho de Ministros [32], percebe-se claramente a intenção de prover a sociedade com normas adaptadas a realidades destes tempos, como se vê no seguinte trecho – em tradução livre:
“O objetivo é renovar sem perturbar, para que a lei esteja mais adaptada às necessidades práticas dos indivíduos e das empresas. Originários do Código Napoleônico, os textos relativos ao direito das obrigações permaneceram essencialmente inalterados durante dois séculos. Eles não eram mais adequados para a sociedade e precisavam ser reformados. Para tal, o Ministério da Justiça, com base numa autorização resultante da lei de 16 de fevereiro de 2015, elaborou um anteprojeto de despacho, que foi posteriormente submetido a consulta pública na Internet de 28 de fevereiro a 30 de abril, 2015, que se revelou particularmente eficaz. Fruto de uma dinâmica construtiva que reúne teóricos e profissionais do direito e dos negócios para desenvolver uma ferramenta conceitualmente sólida e concretamente eficaz, a portaria constitui assim um texto coerente capaz de atender às expectativas de todas as partes interessadas, oferecendo-lhes uma solução segura, eficaz, ao mesmo tempo, direito protetor. Perseguindo o objetivo de valor constitucional de acessibilidade e inteligibilidade do Estado de Direito, o texto estabelece e codifica inúmeras soluções jurisprudenciais, tornando o direito mais previsível para todos. Todos poderão agora, através da leitura do código, compreender todas as etapas da vida de um contrato, desde a sua formação até à sua execução.”
No mesmo comunicado, o conselho de ministros francês indicou a intenção em prosseguir nas reformas do código civil, sobretudo na responsabilidade civil, como se vê nesta passagem – em tradução livre:
“No entanto, esta reforma é apenas um primeiro passo. Para completar o projeto de modernização do direito das obrigações, o Governo, tal como anunciou o Presidente da República no dia 5 de fevereiro, começará em breve a reformar a lei da responsabilidade civil, que hoje assenta essencialmente em cinco artigos inalterados desde 1804. A previsibilidade essencial destas regras, que todos concordam que deve ser reescrita, as fortes expectativas relativas à renovação da lei de danos pessoais, bem como o amplo consenso sobre a necessidade de reformar esta matéria, no entanto, não podem obscurecer a sensibilidade da economia e questões sociais envolvidas. É por isso que a Chancelaria irá submeter o anteprojeto de reforma que desenvolveu paralelamente aos trabalhos que conduziram ao texto hoje apresentado para consulta pública nas próximas semanas, a fim de permitir ao Governo apresentar, o mais rapidamente possível, um projeto de lei. As fortes expectativas relativas à renovação da legislação sobre danos pessoais, bem como o amplo consenso sobre a necessidade de reformar esta área, não podem, no entanto, obscurecer a sensibilidade das questões económicas e sociais envolvidas.”
7. A iniciativa do Senado Federal para atualização do Código Civil de 2002
O presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco, pelo Ato nº 11, de 2023, instituiu Comissão de Juristas com o propósito de revisar e atualizar o Código Civil de 2002. Instalada em reunião solene realizada em 4 de setembro de 2023 na Câmara Alta, é composta atualmente por 37 membros – renomados civilistas, professores da academia, advogados, magistrados [33].
São eles: Luis Felipe Salomão (presidente), Marco Aurélio Bellizze (vice-presidente), Flávio Tartuce (relator), Rosa Maria de Andrade Nery (relatora). E, em seguida, por ordem alfabética: Angélica Lúcia Carlini, Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, César Asfor Rocha, Cláudia Lima Marques, Daniel Carnio, Dierle José Coelho Nunes, Edvaldo Brito, Estela Aranha, Flávio Galdino, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Gustavo José Mendes Tepedino, João Otávio de Noronha, José Fernando Simão, Laura Porto, Marcelo de Oliveira Milagres, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Marco Buzzi, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, Maria Berenice Dias, Maria Cristina Paiva Santiago, Maria Isabel Diniz Gallotti Rodrigues, Mario Luiz Delgado Régis, Moacyr Lobato de Campos Filho, Nelson Rosenvald, Pablo Stolze Gagliano, Patrícia Carrijo, Paula Andrea Forgioni, Ricardo Campos, Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, Rogério Marrone Castro Sampaio, Rolf Madaleno. Figuram também como consultores: Ana Cláudia Squalquette, Layla Abdo Ribeiro de Andrada, Maurício Bunazar e Vicente de Paula Ataíde Junior.
Esse seleto grupo conta com o apoio inestimável de servidores do Senado Federal, muito gabaritados, dedicados e engajados, Leandro Augusto de Araújo Cunha Teixeira Bueno, Gabriel Udelsmann e Lenita Cunha e Silva, e tem a missão de “apresentar, no prazo de 180 (cento e oitenta dias), anteprojeto de Lei para revisão e atualização da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (código civil)”.
Deliberou-se pela formação de nove subcomissões temáticas – Parte Geral, Obrigações, Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa, Contratos, Direito Empresarial, Direito das Coisas, Direito de Família, Direito das Sucessões e Direito Digital –, compostas pelos juristas com a designação de sub-relator parcial, às quais foram responsáveis pela elaboração de relatório parcial para posterior consolidação pelos relatores-gerais.
Em razão da relevância e interesse geral dos temas relacionados ao Código Civil, com propósito de conferir visibilidade aos debates e fomentar a participação da sociedade e especialistas, promoveu-se ampla divulgação dos trabalhos da comissão, mediante o envio de mais de 445 ofícios para os tribunais, procuradorias do Ministério Público estadual e federal, seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensorias Públicas, escolas da magistratura, associações e entidades, disponibilizando canal para o recebimento de sugestões, que resultou no recebimento de 265 mensagens. O portal Senado Federal e-Cidadania também registrou relevante participação de pessoas interessadas, que enviaram perguntas e sugestões para a comissão.
Outra forma encontrada para conferir capilaridade aos debates foi a realização de três audiências públicas em capitais estaduais – São Paulo/SP, em 23/10/2023; Porto Alegre/RS, em 20/11/2023; e Salvador/BA, em 7/12/2023 –, que contaram com a exposição de 36 convidados sobre os mais diversos temas relacionados ao direito civil.
A partir de tão amplo e denso material ofertado, as nove Subcomissões temáticas apresentaram, na 6ª Reunião da Comissão ocorrida em 18 de dezembro de 2023, no Senado Federal, os relatórios parciais com as respectivas propostas de modificações, acréscimos e supressões no texto do atual Código Civil.
O eixo que, de modo geral, orientou os trabalhos das subcomissões foi observar a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, além dos enunciados aprovados em jornadas promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, e também posições consensuais na academia e doutrina sobre interpretação de institutos jurídicos.
Além da revisão e atualização de temas já consagrados no direito civil, a novidade foi a sugestão de criação de livro próprio dedicado ao Direito Digital, em que a Subcomissão teve por diretriz “positivar as interpretações consolidadas na comunidade jurídica nacional e internacional, corrigir falhas redacionais e inserir inovações decorrentes dos avanços tecnológicos respeitando sempre os princípios fundamentais do direito”.
As próximas etapas da comissão, de acordo com o cronograma homologado, envolvem a análise dos nove sub relatórios pelos dois relatores-gerais para apresentação do texto final, o qual estará sujeito a emendas e destaques dos demais membros [34].
Programou-se, também, audiência pública no Senado Federal do dia 26 de fevereiro de 2024 com o ministro da Suprema Corte da Argentina Ricardo Lorenzetti, que compartilhará as experiências relativas à atualização do código Vélez Sársfield na Argentina, em 2015.
As reuniões deliberativas finais da Comissão de Juristas estão previstas para a primeira semana de abril de 2024, com previsão de entrega do anteprojeto ao presidente do Senado Federal na segunda semana de abril de 2024.
8. O papel do Superior Tribunal de Justiça na interpretação e uniformização da jurisprudência infraconstitucional
A elaboração do Código Civil de 2002 e a criação do STJ são questões imbricadas.
O intento de criação de outro tribunal com jurisdição sobre todo o país, desmembrado do Supremo, remete a proposta apresentada cerca de quatro anos antes da criação da “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, época em que se debatia o funcionamento do Judiciário brasileiro.
Em 1965, sob a orientação do genial pensador e renomado professor Miguel Reale (que depois, como se sabe, presidiria a comissão de juristas que apresentou o projeto do Código Civil de 2002), o Conselho Diretor do Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas promoveu uma mesa-redonda com notáveis juristas para discutir a “Reforma do Poder Judiciário” e, nesse âmbito, formou-se consenso quanto a viabilidade da criação de um Tribunal Superior para julgar recursos de natureza extraordinária relativos ao direito federal comum. Era a gênese do que viria a se tornar o Superior Tribunal de Justiça.
O professor Miguel Reale recebeu apoio unânime dos participantes. Concluídos os debates, constou nos itens 9 e 10 do extenso Relatório apresentado pelo grupo de juristas: “9– Decidiu-se, sem maior dificuldade, pela criação de um novo tribunal. As divergências sobre a sua natureza e o número de tribunais que a princípio suscitaram debates, pouco a pouco, se encaminharam por uma solução que mereceu afinal o assentimento de todos. Seria criado um único tribunal que teria uma função eminente como instância federal sobre matéria que não tivesse, com especificidade, natureza constitucional, ao mesmo tempo que teria a tarefa de apreciar os mandados de segurança e habeas corpus originários, os contra atos de Ministros de Estado e os recursos ordinários das decisões denegatórias em última instância federal ou dos Estados. 10 – Assim também, os recursos extraordinários fundados exclusivamente na lei federal seriam encaminhados a esse novo Tribunal, aliviando o Supremo Tribunal de uma sobrecarga” [35].
Nos termos da então vigente Carta de 1946, o recurso extraordinário dirigido ao Supremo Tribunal Federal constituía o meio recursal apto para veicular, além de violação a normas constitucionais, a ofensa à lei federal ou divergência interpretativa infraconstitucional (artigo 101, III), atributo mantido na Constituição de 1967 (artigo 114, III), mesmo após a Emenda Constitucional nº 1/1969 (artigo 119, III).
As décadas seguintes demonstraram que essa ampla cognição de matérias passíveis de exame na via do apelo extraordinário afetariam a prestação jurisdicional da Excelsa Corte, ante o decantado volume de processos que lá aportavam dos tribunais, além do exame de feitos de competência originária. Como assinado por Mancuso, “[v]isto que o recurso extraordinário tinha a peculiaridade de ser exercitável em qualquer dos ramos do direito objetivo onde houvesse ‘questão federal ou constitucional’, é compreensível que nessa alta Corte para logo se tenha instalado um formidável acúmulo de processos, problema que, agregado à demora no efetivo enfrentamento, com o tempo tornou-se crônico, passando a ser referido como a ‘crise do Supremo’” [36].
A Constituição da República, de 1988, conforme anotam Marinoni e Mitidiero, limitou o cabimento do recurso extraordinário para a tutela da Carta Política, “criando-se o Superior Tribunal de Justiça e o recurso especial para a guarda da legislação federal” [37]. Em boa medida, o STJ, instalado em 7 de abril de 1989, é um desmembramento do Supremo Tribunal Federal, assoberbado com os recursos extraordinários que tanto controlavam a constitucionalidade das leis como realizavam a adequada interpretação do direito infraconstitucional, sem contar o restante de sua grande competência originária e o controle concentrado de constitucionalidade.
Por quase 14 anos, o STJ continuou a promover a uniformização para interpretação do Código Civil de 1916, não raro aplicando o entendimento firmado antes pelo Supremo Tribunal Federal.
Contudo, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 em janeiro do ano seguinte, passou o STJ a interpretar as novas disposições legais numa sociedade transformada e em constante evolução, tarefa que vem sendo realizada com desassombro pelo “Tribunal da Cidadania”.
Para tanto, revela-se oportuno rememorar alguns julgados emblemáticos do STJ sobre matérias disciplinadas por esse estatuto civil de 2002.
9. O Código Civil de 2002 na visão do Superior Tribunal de Justiça: os precedentes mais relevantes em 20 anos de vigência
Com efeito, revisitar precedentes do Superior Tribunal de Justiça que interpretaram o Código Civil de 2002 é uma das melhores maneiras para sopesar a disciplina contida no texto legal aprovado pelo Parlamento com a decisão judicial adotada para a solução de conflitos reais e que surgem nas mais diversas relações de direito privado.
Nesse contexto, surge o relevante papel desempenhado pelo Superior Tribunal de Justiça, desde sua instalação em 7 de abril de 1989. Consoante já mencionado, quis o destino que o Tribunal da Cidadania, intérprete final da legislação federal, fosse o verdadeiro guardião dos princípios insculpidos no então Novo Código Civil de 2002.
Ética, boa-fé objetiva, socialidade e a operabilidade são conceitos abertos cujo guardião é o STJ.
O Código Civil é, no âmbito da vida privada, o equivalente à própria Constituição Federal.
Destarte, é a própria Carta Magna que outorga ao Superior Tribunal de Justiça a função de intérprete máximo do estatuto das relações sociais, adequando os inúmeros conceitos abertos ao contexto econômico, social e político da nossa realidade democrática, operacionalizando sua aplicabilidade no sentido de indicar condutas e dirimir conflitos de interesses.
Tamanha importância do papel de superposição exercido pelo STJ na interpretação do Código é revelada pela evolução legislativa ocorrida a reboque dos seus julgados.
A hermenêutica desenvolvida pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, em seus milhares de julgamentos, resultou em muitas das dezenas (53) leis aprovadas pelo Parlamento desde 2003, com o objetivo de modificar e atualizar o diploma Civil.
A difícil tarefa foi sistematizar e escolher julgados do Superior Tribunal de Justiça que tenham referenciado dispositivo do Código Civil de 2002, um por cada ano, em razão da ampla quantidade de temas regulados – parte geral, obrigações, responsabilidade civil, contratos, empresarial, coisas, família e sucessões.
Além da leitura de farto e denso material de pesquisa, avaliou-se o impacto das decisões na vida social, política, econômica e jurídica brasileira, assim também o interesse do público em acessos ao sítio eletrônico do tribunal, assim também a recorrência de pesquisas em revistas especializadas.
Seguem os julgados, a contar de 2003 – ano da instalação do Superior –, um de cada ano, destacando-se o tema e o trecho principal da ementa:
2003 |
Os avós podem ser instados a pagar alimentos aos netos por obrigação própria, complementar e/ou sucessiva, mas não solidária. (REsp nº 366.837-RJ, relator para acórdão ministro Cesar Asfor Rocha, 4ª Turma, julgado em 19/12/2002, DJ de 22/9/2003, p. 331.) |
2004 |
É incabível a internação forçada de pessoa maior e capaz sem que haja justificativa proporcional e razoável para a constrição da paciente. Ainda que se reconheça o legítimo dever de cuidado e proteção dos pais em relação aos filhos, a internação compulsória de filha maior e capaz, em clínica para tratamento psiquiátrico, sem que haja efetivamente diagnóstico nesse sentido, configura constrangimento ilegal. (HC nº 35.301-RJ, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 3/8/2004, DJ de 13/9/2004, p. 231.) |
2005 |
É possível a alteração do regime de bens do casamento, mesmo aquele ocorrido sob a égide do código anterior, pois o art. 2.039 do CC/2002 não representa óbice razoável à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/1988, mas, ao revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com efeitos imediatos. (REsp nº 730.546-MG, relator ministro Jorge Scartezzini, 4ª Turma, julgado em 23/8/2005, DJ de 3/10/2005, p. 279.) |
2006 |
A circunstância de o segurado, quando aconteceu o sinistro, apresentar dosagem etílica superior àquela admitida na legislação de trânsito não basta para excluir a responsabilidade da seguradora, pela indenização prevista no contrato. Para livrar-se da obrigação securitária, a seguradora deve provar que a embriaguez causou, efetivamente, o sinistro. (REsp nº 685.413-BA, relator ministro Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, julgado em 7/3/2006, DJ de 26/6/2006, p. 134.) |
2007 |
Não há como ser conferido status de união estável a relação concubinária concomitante a casamento válido. (REsp nº 931.155-RS, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 7/8/2007, DJ de 20/8/2007, p. 281.) |
2008 |
No regime da comunhão universal de bens, as verbas percebidas a título de benefício previdenciário resultantes de um direito que nasceu e foi pleiteado durante a constância do casamento devem entrar na partilha, ainda que recebidas após a ruptura da vida conjugal. (REsp nº 918.173-RS, relator ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, julgado em 10/6/2008, DJe de 23/6/2008.) |
2009 |
Não há falar em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico decorre do reconhecimento espontâneo de paternidade mediante escritura pública (adoção “à brasileira”), pois, inteirado o pretenso pai de que o filho não é seu, mas movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza, sua vontade, aferida em condições normais de discernimento, está materializada. (REsp nº 709.608-MS, relator ministro João Otávio de Noronha, 4ª Turma, julgado em 5/11/2009, DJe de 23/11/2009.) |
2010 |
É possível a adoção por casal homoafetivo (pessoas do mesmo sexo), independentemente da idade da criança a ser adotada. (REsp nº 889.852-RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 27/4/2010, DJe de 10/8/2010.) |
2011 |
Possibilidade jurídica de casamento entre pessoas do mesmo sexo. (REsp nº 1.183.378-RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 25/10/2011, DJe de 1/2/2012.) |
2012 |
A desconsideração da personalidade jurídica é admitida em situações excepcionais, devendo as instâncias ordinárias, fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de sua finalidade ou confusão patrimonial desta com a de seus sócios, requisitos objetivos sem os quais a medida torna-se incabível. (REsp nº 1.259.066-SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 19/6/2012, DJe de 28/6/2012.) |
2013 |
Na união estável, vigente o regime da comunhão parcial, há presunção absoluta de que os bens adquiridos onerosamente na constância da união são resultado do esforço comum dos conviventes. Desnecessidade de comprovação da participação financeira de ambos os conviventes na aquisição de bens, considerando que o suporte emocional e o apoio afetivo também configuram elemento imprescindível para a construção do patrimônio comum. (REsp nº 1.295.991-MG, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 11/4/2013, DJe de 17/4/2013.) |
2014 |
Tendo os conviventes estabelecido, no início da união estável, por escritura pública, a dispensa à assistência material mútua, a superveniência de moléstia grave na constância do relacionamento, reduzindo a capacidade laboral e comprometendo, ainda que temporariamente, a situação financeira de um deles, autoriza a fixação de alimentos após a dissolução da união. (REsp nº 1.178.233-RJ, relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 6/11/2014, DJe de 9/12/2014.) |
2015 |
De regra, o reconhecimento da existência e dissolução de concubinato impuro, ainda que de longa duração, não gera o dever de prestar alimentos a concubina, pois a família é um bem a ser preservado a qualquer custo. Nada obstante, dada a peculiaridade do caso e em face da incidência dos princípios da dignidade e solidariedade humanas, há de se manter a obrigação de prestação de alimentos a concubina idosa que os recebeu por mais de quatro décadas, sob pena de causar-lhe desamparo, mormente quando o longo decurso do tempo afasta qualquer risco de desestruturação familiar para o prestador de alimentos. (REsp nº 1.185.337-RS, relator ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, julgado em 17/3/2015, DJe de 31/3/2015.) |
2016 |
É possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical. É a afetação do bem a uma finalidade pública que dirá se pode ou não ser objeto de atos possessórios por um particular. (REsp nº 1.296.964-DF, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 18/10/2016, DJe de 7/12/2016.) |
2017 |
Responsabilização subsidiária de sócios não se aplica a associação civil. (REsp nº 1.398.438-SC, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 4/4/2017, DJe de 11/4/2017.) |
2018 |
Cláusulas de impenhorabilidade ou incomunicabilidade não impedem alienação de bem doado. (REsp nº 1.155.547-MG, relator ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 6/11/2018, DJe de 9/11/2018.) |
2019 |
É ilícita a disposição condominial que proíbe a utilização de áreas comuns do edifício por condômino inadimplente e seus familiares como medida coercitiva para obrigar o adimplemento das taxas condominiais. (REsp nº 1.699.022-SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 28/5/2019, DJe de 1/7/2019.) |
2020 |
É possível a realização de acordo para exonerar devedor de pensão alimentícia das parcelas vencidas. (REsp nº 1.529.532-DF, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 16/6/2020.) |
2021 |
Após Estatuto da Pessoa com Deficiência, incapacidade absoluta só se aplica a menores de 16 anos. (REsp nº 1.927.423-SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 4/5/2021.) |
2022 |
É necessária a exigência geral de outorga do cônjuge para prestar fiança, sendo indiferente o fato de o fiador prestá-la na condição de comerciante ou empresário, considerando a necessidade de proteção da segurança econômica familiar. (REsp nº 1.525.638-SP, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 21/6/2022.) |
10. As contribuições para o direito privado realizadas pelas Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal
As Jornadas de Direito Civil foram concebidas pelo gênio do saudoso ministro Ruy Rosado de Aguiar para permitir um diálogo organizado e salutar, mesmo que entre teses e pensamentos contrariados.
Organizadas desde 2002 pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, órgão vinculado ao Superior Tribunal de Justiça, as Jornadas têm o objetivo de debater os temas mais relevantes e controvertidos relacionados ao Direito Civil e explicitam, principalmente, os posicionamentos mais atualizados e relevantes, em franca e profunda atividade dialógica entre doutrina e jurisprudência.
Durante a vacatio legis do então novel Código Civil, o CEJ/CJF – com a participação do Superior Tribunal de Justiça – promoveu em setembro de 2002 a Primeira Jornada de Direito Civil, estabelecendo-se como importante marco para o estudo dos institutos civilistas no país. Essa primeira edição contou com a conferência inaugural do ministro José Carlos Moreira Alves – um dos sete membros da mencionada “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, criada em maio de 1969. Foram aprovados nessa Jornada 119 enunciados e 18 proposições de modificação de dispositivos no Código Civil de 2002.
Desde então, foram organizadas nove jornadas de direito civil, a última delas no mês de maio de 2022 – em comemoração dos 20 anos da Lei nº 10.406/2022 e da instituição da jornada de direito civil –, tendo sido aprovados nelas o total de 693 enunciados, dos quais 624 verbetes expressamente referenciam interpretação de algum dispositivo do Código Civil de 2002.
Somente para a IX Jornada (2022), última realizada, foram 915 propostas de enunciados Cuida-se de um crescimento exponencial, em relação às Jornadas anteriores, cuja média gira em torno de 300 propostas.
Os enunciados aprovados nas Jornadas, ao longo de toda a sua história, servem como norte interpretativo, orientando julgadores de todas as instâncias.
Elaborando-se um diálogo com os importantes precedentes destacados acima, relembro alguns enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil que foram utilizados como fundamentos para a construção das decisões.
Como exemplo, o Enunciado 531, aprovado na VI Jornada, cuidou do artigo 11 do Código Civil e dos danos provocados pelas novas tecnologias de informação, tratando, em síntese, do direito ao esquecimento: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.
O Enunciado nº 633 do CJF (VIII Jornada de Direito Civil) prevê a possibilidade de utilização da técnica de reprodução assistida póstuma por meio da maternidade de substituição, condicionada, sempre, ao expresso consentimento manifestado em vida pela esposa ou companheira.
Os exemplos são inúmeros, influenciando o debate e os precedentes da Corte da Cidadania.
Por outro lado, foram reunidos – seguramente o maior evento jurídico do país na atualidade – os principais nomes do Direito Civil contemporâneo. Todos os ministros da Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça, além dos professores, juristas, especialistas e estudiosos mais festejados e reconhecidos do Brasil.
O êxito da experiência é visto na expansão para outras áreas do direito, tendo sido organizadas 3 jornadas de direito comercial, 3 de processual civil, 2 de prevenção e solução extrajudicial de litígios, e a primeira edição de notarial e registral, administrativo, penal e processual penal, tributário, da seguridade social e do patrimônio cultural e natural – um total de 23 jornadas jurídicas.
As jornadas jurídicas do Centro de Estudos Judiciários do CJF já integram o calendário jurídico nacional, em vista de sua metodologia inovadora e cada vez mais aprimorada.
11. Conclusão
O histórico brasileiro para a criação de um código civil demonstra o desejo dos mais diversos segmentos de possuir regras claras que serão aplicadas nas mais rotineiras questões da vida, e, para alcançar esse anseio, sempre se contou com a expertise de dedicados e talentosos juristas interessados na elaboração de um texto que refletisse os principais valores de cada época.
As rápidas transformações na sociedade, por variados motivos, e o surgimento de novas tecnologias, indicam a necessidade de atualização do estatuto civil, adequando-o às novas necessidades e desafios, especialmente em face da revolução digital.
Entre os marcos de modernização da legislação, o Poder Judiciário – sobretudo o Superior Tribunal de Justiça a partir de 1989 – tem exercido um papel fundamental para assegurar a uniformização na interpretação das regras infraconstitucionais de direito civil, consolidando-se ainda mais como “Tribunal da Cidadania”.
Por fim, a expectativa é que a atual Comissão de Juristas, de 2023, apresente ao Parlamento anteprojeto que corresponda ao anseio por uma legislação civil contemporânea e adaptada às mudanças dos últimos anos, sendo certo que a ampla e notória participação da sociedade galvaniza ainda mais os pilares da democracia brasileira.
Tenho absoluta certeza de que os juristas e parlamentares convocados para essa missão não faltarão à responsabilidade que o desafio lhes impõe.
Referências Bibliográficas
ALVES, João Luiz. Codigo civil da Republica dos Estados Unidos do Brasil. Promulgado pela Lei nº 3071, de 1 de janeiro de 1916. Annotado pelo Doutor João Luiz Alves. 1ª ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet e Cia, Editores- Livreiros, 1917.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Revista das jornadas do CJF: direito civil, direito comercial, direito processual civil, prevenção e solução extrajudicial de litígios / Superior Tribunal de Justiça, [Gabinete do Ministro Diretor da Revista], Conselho da Justiça Federal. – Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2018.
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[1] GONÇALVES, Luís da Cunha. Tratado de direito civil: em comentário ao Código civil português. Coimbra: Coimbra, 1929, p. 113.
[2] In: Codigo civil brasileiro: annotado á luz dos documentos parlamentares e da doutrina. São Paulo: Pedro de S. Magalhães Filho e Irmãos, 1917, p. XIX.
[3] In: Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 7, n. 26, p. 37-39, abr.-jun. 2004.
[4] VAMPRÉ, Spencer. Codigo civil brasileiro: annotado á luz dos documentos parlamentares e da doutrina. São Paulo: Pedro de S. Magalhães Filho e Irmãos, 1917, p. IX.
[5] MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 80.
[6] Op. cit., p. X.
[7] COELHO, A. Ferreira. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil: comparado, comentado e analysado. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do “Jornal do Brasil”, 1920, p. 255.
[8] Op. cit., p. 255.
[9] VAMPRÉ, Spencer. Codigo civil brasileiro: annotado á luz dos documentos parlamentares e da doutrina. São Paulo: Pedro de S. Magalhães Filho e Irmãos, 1917, p. XI.
[10] COELHO, A. Ferreira. Codigo civil dos Estados Unidos do Brasil: comparado, comentado e analysado. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas do “Jornal do Brasil”, 1920, p. 260, 264.
[11] In: Teixeira de Freitas, o Jurista Excelso do Brasil e da América. Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, Ano XVII, n. 61, p. 98, 2º semestre de 1983.
[12] Op. cit., p. 99.
[13] Op. cit., p. XII.
[14] Op. cit., p. 100-102.
[15] MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 80-82.
[16] VAMPRÉ, Spencer. Codigo civil brasileiro: annotado á luz dos documentos parlamentares e da doutrina. São Paulo: Pedro de S. Magalhães Filho e Irmãos, 1917, p. XVIII-XXVIII.
[17] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de sociologia jurídica. São Paulo: Atlas, 2019, p. 29.
[18] MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 4.
[19] ALVES, João Luiz. Codigo civil da Republica dos Estados Unidos do Brasil. Promulgado pela Lei nº 3071, de 1 de janeiro de 1916. Annotado pelo Doutor João Luiz Alves. 1ª ed. Rio de Janeiro, F. Briguiet e Cia, Editores- Livreiros, 1917.
[20] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo 6. Campinas: Bookseller, 1955, p. 101
[21] DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito [1942-1945]. Rio de Janeiro: Rio, 1977, p. 30.
[22] GONÇALVES, Luís da Cunha. Tratado de direito civil: em comentário ao Código civil português. Coimbra: Coimbra, 1929, p. 107.
[23] FERREIRA, Aparecido Hernani [org.]. O novo código civil: discutido por juristas brasileiros. Campinas: Bookseller, 2003, p. 48.
[24] MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes teóricas do novo Código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 45, 46.
[25] FERREIRA, Aparecido Hernani [org.]. O novo código civil: discutido por juristas brasileiros. Campinas: Bookseller, 2003, p. 28.
[26] FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, p. XI-XII.
[27] Sobre a tramitação legislativa do Código Civil de 2002 e as substanciais mudanças empreendidas no texto, importante conferir Edilenice Passos João Alberto de Oliveira Lima, Memória Legislativa do Código Civil. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/mlcc/pdf/mlcc_v1_ed1.pdf. Acesso em: 10 jan. 2024.
[28] Revista de Informação Legislativa, nº 146 (abril/junho de 2000)
[29] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32016R0679. Acesso em: 15 jan. 2024.
[30] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32022R2065. Acesso em: 15 jan. 2024.
[31] Ordonnance nº 2016-131 du 10 février 2016 portant réforme du droit des contrats, du régime général et de la preuve des obligations. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/download/pdf?id=uNpE2icpAZrhs7GxvVHBoeNldSv3V6deoj07JYZtOrw=. Acesso em: 10 jan. 2024.
[32] Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/dossierlegislatif/JORFDOLE000032036173/. Acesso em: 10 jan. 2024.
[33] Link da Comissão de Juristas no site do Senado Federal: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630
[34] Todos os sub-relatórios e as inovações propostas estão no link: https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7935&codcol=2630
[35] Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rdpcp/article/view/59662/58007. Acesso em: 19 dez. 2023.
[36] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 13ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2015, p. 78.
[37] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Recurso extraordinário e recurso especial: do jus litigatoris ao jus constitutionis. São Paulo: Revista dos tribunais, 2020, p. 98.