Faz-se necessário um debate interinstitucional, incluindo a sociedade civil*
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Desembargador e presidente do TRF2, é coordenador nacional do Grupo de Juízes de Enlace para a Convenção da Haia de 1980; professor da Uerj
Inês Virgínia Prado Soares
Doutora em direito e desembargadora no TRF3, é juíza de enlace da 3ª Região para a Convenção da Haia de 1980
A mobilidade das pessoas entre países, a discussão sobre o bem-estar dos filhos na separação dos pais e a denúncia de violência doméstica e sua repercussão na vida familiar, com afetação direta às crianças, já são temas difíceis quando considerados separadamente, mas assumem imensa complexidade quando analisados em conjunto.
A tríade — necessidade de migração, alegação de violência doméstica e ausência de consenso sobre a guarda das crianças— é veiculada na maioria dos julgamentos baseados na Convenção de Haia de 1980, um documento internacional do qual o Brasil é signatário e que versa sobre aspectos civis da subtração internacional de crianças por um dos genitores sem autorização do outro.
Esses processos discutem o retorno da criança ao país de residência habitual para que sejam resolvidas questões de guarda, visitas e pensão alimentícia. Como Estado signatário da convenção, o Brasil também pode acionar outros países para pedir a determinação judicial de volta da criança.
Por previsão constitucional, essas ações tramitam na Justiça Federal em razão do interesse da União na solução do caso. Podem ser propostas tanto por advogados como pela Advocacia-Geral da União por se tratarem de convenção internacional com a qual o Brasil se comprometeu a cumprir. A defesa do genitor que trouxe a criança, a depender da sua situação financeira, pode ser feita pela Defensoria Pública da União.
No Brasil, o tema tem um viés de gênero, pois cerca de 80% dos casos de subtração de filhos são pelas mães que voltam do exterior sem a autorização do pai. Com a judicialização, não é possível uma discussão acurada sobre as razões do retorno irregular ou acerca das condições de vida no exterior, embora deva-se considerar a violência doméstica como exceção de retorno e ainda observar a indicação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de aplicar a técnica de julgamento sob a perspectiva de gênero.
A Convenção de Haia de 1980 já foi analisada pelas Cortes Regionais de Direitos Humanos, como a europeia e a interamericana, sendo considerada uma norma que viabiliza ou incrementa os direitos humanos. A partir do destaque da criança como sujeito internacional de direitos, as cortes regionais têm trazido para a arena de discussão a lente de gênero, sem descuidar da proteção dos direitos de ambos os genitores.
O Brasil se comprometeu a observar a cooperação entre os povos. E o olhar regional assume relevo no cenário contemporâneo. A violência de gênero; a vulnerabilidade parental, que se agudiza pela intersecção gênero, raça e classe social, afetando em especial as mulheres; os refugiados e as comunidades culturalmente diferenciadas; e a fragilidade na cooperação regional para acolhimento, visto de permanência e outras medidas de apoio ao genitor subtrator são preocupações comuns entre Estados latino-americanos.
Os desafios estão postos. Para tanto, faz-se necessário um debate interinstitucional com o envolvimento de entidades públicas e privadas, mas também a participação da sociedade civil e de organizações internacionais de direitos humanos.
*ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/02/subtracao-internacional-de-criancas-e-questoes-de-genero.shtml?pwgt=1bsjptk2y7jg2u1nnt3ahwus52s64rw48xjueqxlpvfb96v6&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift