Entrevista publicada originalmente pelo Tribuna do Norte.
Marcelo Navarro: 'É preciso levar em conta os padrões que vêm da Constituição'
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Marcelo Navarro Ribeiro Dantas afirma que a principal contribuição que o Judiciário pode assegurar para a melhoria da segurança pública do país é aplicar a lei com rigor aos autores de crimes. Ao mesmo tempo, faz uma defesa dos parâmetros da Constituição para que se evite injustiças. “A sociedade, já tão sofrida pelo crime e pela violência, normalmente não se preocupa com isso. Quando se ouve ou se lê que alguém praticou um crime, o povo nem liga se isso é verdade: já exige não apenas a condenação como a imediata execução da pena. E só admite prisão. Se seguirmos esse rumo, não vamos reprimir o crime nem pacificar a sociedade, mas apenas fortalecer o arbítrio e causar mais revolta, somando às vítimas da criminalidade outras tantas da injustiça. É preciso levar em conta padrões que vêm da Constituição”, destaca.
Professor de Direito, o potiguar Marcelo Navarro Ribeiro Dantas tem uma ampla vivência profissional na Justiça. Integrou o Ministério Público, como promotor de Justiça e procurador da República. Antes de integrar um Tribunal Superior, foi desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Nesta entrevista, ele comenta o trabalho da Comissão que presidiu para elaboração de uma proposta de modernização da Lei de Entorpecentes e do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Ele também destaca que um pacto nacional não só é viável, como já funcionou como no firmado para enfrentamento à violência contra as mulheres.
O senhor presidiu uma comissão que trabalhou uma proposta de modernização da Lei de Entorpecentes e do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Como foi este trabalho e em qual etapa está a discussão?
Nós nos reunimos, inicialmente, a convite da Câmara dos Deputados, para estabelecer a estrutura do trabalho, que começou com a ouvida de experts no tema e se prolongou com audiências públicas de entidades da sociedade civil e instituições interessadas, que apresentaram suas diferentes visões e experiências sobre o assunto. Depois, fizemos muitas reuniões sobre os vários trechos da proposta, sendo tudo democraticamente votado. Finalmente, o relator fez a sistematização de todo o texto, que foi novamente submetido a voto, revisto e acrescido de justificação para ser entregue à Presidência da Casa.
Quais mudanças foram propostas em relação à Lei atual que trata de entorpecentes e combate às drogas?
Prefiro não tratar disso antes da entrega oficial do texto e do contato oficial da Comissão com a imprensa. De todo modo, é apenas um anteprojeto de lei, que vai, espera-se, ser discutido pelos Deputados e, quiçá, posteriormente, pelos Senadores. Eles é que são os legisladores, os que detêm a legitimidade da representação popular. Nós somos apenas técnicos a quem o Parlamento pediu para dar, não a última, mas uma primeira palavra no tema. Evidentemente, se essa proposta vier a tramitar, o Congresso haverá de constituir suas comissões internas e fazer suas audiências públicas, porque essa questão, com as imensas e variadas repercussões que tem, interessa a toda a sociedade. A Comissão, mesmo sendo eclética e multidisciplinar, formada por homens e mulheres de vários lugares do Brasil, por magistrados e membros do Ministério Público de várias instâncias, estaduais e federais, por advogados, professores, servidores e um médico — o Doutor Drauzio Varella, que todos conhecem e cuja participação muito nos honra —, não é a mesma coisa do Legislativo. Só ele é legítimo para tal tarefa. Dito isso, posso adiantar que tentamos aperfeiçoar as medidas protetivas e preventivas aos usuários e dependentes, separar o uso próprio de pequenas quantidades do tráfico, e, em relação a este, dividir o crime — que na lei atual é composto de um único tipo penal com 18 núcleos verbais — em vários subtipos, alguns dos quais punidos de modo mais grave, outros com a mesma gravidade, e outros ainda, mais brandamente do que o faz a legislação vigente: o caso da “mula”, por exemplo. Estabelecemos situações em que o uso é ilícito, mas não ilícito criminal, além de muitas normas de procedimento, para tornar o processo mais ágil. Buscamos diminuir a discricionariedade judicial na fixação das penas, para que o mesmo tipo de conduta seja alvo de sanções similares em todos os juízos. Nossa ideia é que a repressão se volte principalmente para o grande tráfico e que se faça por meio de ações de inteligência contra as organizações criminosas que operam esse comércio nefasto, e deixe de ser exercida apenas por meio de flagrantes de vendedores de droga de pouca expressão, como hoje, motivo pelo qual não se consegue romper a cadeia do tráfico nem cortar seu financiamento, e apenas se fornecem soldados rasos para as facções ao mesmo tempo em que se favorece a corrupção dos agentes da repressão.
O senhor considera que a descriminalização do uso de drogas seria a melhor alternativa?
As soluções dadas pela Comissão não são necessariamente as que eu, pessoalmente, proporia em todos os casos. Assim, como seu Presidente, não me parece apropriado que eu as publicize como considerações particulares minhas. Parece-me certo, porém, que a abordagem tradicional da chamada guerra das drogas exauriu-se. É necessário, a meu ver, partir para uma repressão inteligente ao tráfico, crime gravíssimo, que nossa Constituição define como hediondo. E isso a lei ordinária não muda, não pode nem deve mudar.
A segurança pública está entre as principais preocupações hoje do brasileiro, como mostram as pesquisas de opinião. Como o Judiciário pode contribuir para enfrentar este problema?
Aplicando a lei com rigor aos autores de crimes. Acontece que só se sabe se alguém realmente praticou um crime após um processo no qual sejam garantidos o contraditório e a ampla defesa, com a produção de provas por ambas as partes, o acusador e o acusado. Só que a sociedade, já tão sofrida pelo crime e pela violência, normalmente não se preocupa com isso. Quando se ouve ou se lê que alguém praticou um crime, o povo nem liga se isso é verdade: já exige não apenas a condenação como a imediata execução da pena. E só admite prisão. Se seguirmos esse rumo, não vamos reprimir o crime nem pacificar a sociedade, mas apenas fortalecer o arbítrio e causar mais revolta, somando às vítimas da criminalidade outras tantas da injustiça. É preciso levar em conta padrões que vêm da Constituição. E a realidade dos fatos depois de provados, não a grita de uns e outros. No mais, a maior parte das medidas ordinárias de segurança pública, a prevenção do crime, o policiamento ostensivo, a investigação, o trabalho de inteligência, a logística e a estrutura disso tudo, compete ao Executivo e não ao Judiciário. Finalmente, há gente que se revolta com o magistrado que conferiu dada benesse a um condenado, como a progressão de regime ou algum tipo de saída. Não adianta, nesses casos, culpar o Judiciário. Ele só está aplicando a lei, que foi o Legislativo que fez...
Alguns apontam que ao instituir a audiência de custódia, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) dificultou a punição de quem comete crime e é preso em flagrante. O senhor concorda com quem faz esta avaliação?
Não. A audiência de custódia nada mais é do que o direito que todo preso tem de ser apresentado, em tempo razoável, à autoridade judicial. Existe, ainda que com outros nomes e detalhes procedimentais, em praticamente todos os países civilizados, inclusive naqueles em que a repressão ao crime é mais rigorosa. Figura em normas internacionais. Não é nenhuma jabuticaba. O problema é que, se, numa audiência de custódia, for liberado alguém que não deveria tê-lo sido, tal fato é divulgado à exaustão, para criar a impressão de que a existência em si da audiência é benéfica aos criminosos e, portanto, à violência. Mas em quantas audiências de custódia pessoas que poderiam ter sido liberadas não o foram? Disso não se fala. Erros específicos acontecem porque os juízes são humanos. No momento da audiência de custódia há ainda muito poucos elementos, às vezes apenas o flagrante e a palavra dos policiais que o efetuaram. Não se pode tomar um exemplo aberrante para dizer que tudo é aberração.
O senhor considera que é preciso uma mudança no Código Penal? Quais seriam estas mudanças?
O Código Penal precisa, sim, de mudanças. Mas elas vêm sendo feitas pontualmente. Precisamos, no entanto, e a meu ver com urgência, de uma lei que puna criminalmente o terrorismo, seja no corpo da codificação ou fora dela. Agora, o Código de Processo Penal, esse sim precisa de uma grande mudança e é para ontem. O CPP em vigor está completamente defasado e penso que não há mais como remendá-lo. Há um projeto de novo CPP no Congresso, mas tem avançado lentamente. Na esfera criminal, é a área formal, de procedimentos e recursos, muito mais do que a substancial, em que se definem crimes e penas, que necessita modificações mais profundas.
Punições mais rígidas e redução da prescrição de penas seria o melhor caminho?
Em alguns casos, sim. Noutros pode ser o contrário. Essa ânsia por punições é o resultado de um Estado em que o crime é mal investigado e menos ainda punido. A maior parte dos homicídios, por exemplo, sequer tem a autoria descoberta pela polícia. Isso não tem nada a ver com uma lei que diga que a pena por matar alguém é de 10, 30 ou 50 anos. Se nem mesmo a autoria é apurada, de que adiantam penas altas? A certeza — ou ao menos a alta probabilidade — da punição é mais importante do que o estabelecimento de uma punição rigorosa que quase nunca é infligida. O que há nesse campo são muitas discussões equivocadas e conduzidas por quem não entende do assunto. Fala-se em aumento de penas, diminuição da idade em que a pessoa se torna penalmente imputável, redução da prescrição e afins, mas não se discute — ou se discute muito pouco — a absoluta ineficiência do nosso sistema investigatório, a ausência de polícia de ciclo completo, o absurdo burocrático e ineficaz do inquérito policial da forma como previsto no CPP, os procedimentos arcaicos de ação penal que ele estabelece, seus recursos destituídos de efetividade, que levam a uma utilização abusiva do habeas corpus, a qual por sua vez conduz ao abarrotamento ainda maior do Judiciário, etc., etc., etc. A questão criminal no Brasil, enfim, está meio fora de foco.
Como vê a proposta redução de maioridade penal, algo defendido pelo atual presidente?
Sou contra, porque entendo que ela teria muito pouco efeito prático. Se hoje as facções criminosas usam adolescentes de 16, 17 anos para cometer ilícitos, no momento em que a maioridade penal fosse de 16, elas iriam mandar garotos de 14, 15, e assim por diante. Onde iríamos parar? Nas Filipinas, acabam de propor 9 anos como idade-limite. É isso que se deseja? Institucionalizar de vez as cadeias como escolas do crime em que matricularíamos crianças junto com adultos? A única coisa que eu reconheço nessa redução da idade penal é que ela, e apenas num primeiro momento, daria a impressão — eu disse impressão — de maior segurança, e iria oferecer à família de alguém que teve um ente querido morto ou agredido por um menor a sensação de que a justiça foi feita. Mas acho que o caminho é outro. Por exemplo: aumentar significativamente o período de internação de menores que cometam crimes violentos. Mas segregá-los sempre separados dos maiores.
A prisão a partir de segunda instância deve voltar à discussão neste ano e será apreciada novamente no plenário do STF. O senhor considera correto o entendimento atual de que a prisão pode ser a partir da segunda instância?
Sim, e o disse já na minha sabatina ao Senado Federal, quando fui indicado ao Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, reconheço que há argumentos fortes em ambos os lados da discussão e que uma solução legislativa seria a melhor para resolver de vez esse tema.
O decreto que flexibilizou a posse de arma o preocupa ou avalia que a medida foi acertada?
O decreto flexibilizou a posse de armas, o direito de tê-las em casa; não o porte, o direito de levá-las consigo. Não sou um entusiasta do desarmamento total, concordo que armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas... Mas me preocupa, sim, e bastante, a liberação de armas numa sociedade com os níveis de violência que a nossa tem. É muito fácil dizer que na Suíça todo mundo tem armas e quase não há crimes. E a educação suíça? E a civilidade suíça? E o respeito suíço aos direitos? E o patamar de igualdade social suíço? Ou seja, esse tema tem de ser discutido e avaliado com racionalidade. Infelizmente virou um Fla-Flu. Para não falar nos imensos interesses econômicos e políticos ocultos sob a capa de boas intenções.
O senhor considera que o Poder Judiciário precisa passar por uma reforma?
É impressionante a quantidade de reformas por que passou e vem passando o Judiciário, ao longo da história republicana do Brasil. A última grande reforma não tem 15 anos. Claro que há muitos aspectos desse Poder que precisam de alterações substanciais, mas também nessa questão não adianta nos iludirmos com palavras de ordem. O Judiciário é um órgão do Estado brasileiro, e se o Estado brasileiro não presta educação de altíssimo nível, nem saúde de altíssimo nível, nem segurança de altíssimo nível... como queremos esperar que a prestação jurisdicional seja de altíssimo nível? Nenhuma corrente é mais forte que seu elo mais fraco, e o Judiciário é apenas um elo na corrente estatal.
A reforma da Previdência deve implicar em mudanças significativas para a magistratura, se for adotada a proposta de unificar as regras do sistema público e privado. Concorda que o Judiciário, particularmente os magistrados, devem ter suas regras de aposentadorias submetidas a estas mudanças?
Sim, desde que sejam respeitados os direitos adquiridos e que seja estabelecido um regime de transição razoável para quem está dentro da magistratura. Não é justo que alguém que ingressou no sistema há 20 ou 30 anos e deixou de buscar uma carreira e um patrimônio, por exemplo, na advocacia, seja agora surpreendido com regras draconianas. Feitas essas observações, sou inteiramente favorável à reforma da Previdência e a compreendo como necessária e imprescindível.
O presidente do STF, Dias Toffoli, disse que o diálogo entre os Poderes será a marca da gestão dele. Como vê esta declaração?
Com grande satisfação. A Constituição diz que os Poderes são independentes mas harmônicos, e me parece que é essa harmonia que um diálogo interinstitucional republicano deve buscar sempre, sem que para isso seja necessário abdicar da independência.
O presidente do STF também defendeu a formação de um pacto pela união nacional para o país não ter instabilidade e superar a crise. O senhor considera este pacto viável?
Não somente é viável: já foi feito mais de uma vez e funcionou, ainda que alguns objetivos não tenham sido alcançados inteiramente. Em 2004, 2009 e 2011 esses pactos foram assinados e muita coisa boa nasceu deles. Pesquisem e vejam.
Tivemos, no início deste ano, a aplicação do reajuste aos ministros do tribunais superiores. Em um momento crítico, a magistratura não deveria dar um exemplo de austeridade e evitar aumentos de remuneração?
Não houve aumento de remuneração, mas sim a aprovação de parte do reajuste anual que a Constituição prevê e há anos não era feito. As pessoas só veem os salários dos juízes. Esquecem os de muitas outras corporações, conselhos e órgãos da administração direta ou indireta, e que sequer têm as restrições que a atividade judicial está submetida, como somente poder ter uma outra atividade profissional, a de professor.
Depois de um ano eleitoral de tanto acirramento, antecedido de impeachment e de um governo que bateu recordes de impopularidade, vê que o país pode entrar em um outro ciclo, com retomada do desenvolvimento e um ambiente institucional mais equilibrado e estável?
Espero e torço para que o país volte a crescer e a trazer bem-estar a seu povo e estabilidade a suas instituições. Afinal é aqui onde eu vivo e esta é a terra que eu amo.