Conhecendo as Juízas Federais #10 - Leda de Oliveira Pinho

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    Dando continuidade ao “Conhecendo as Juízas Federais”, a Ajufe apresenta, nesta décima edição, a juíza federal aposentada Leda de Oliveira Pinho, da Seção Judiciária do Paraná, na 4ª Região. Leda ingressou na Magistratura Federal em 1995, somando mais de 14 anos de jurisdição.

    Durante a conversa, a juíza relembra os desafios de carreira que viveu dentro da Justiça Federal para aumentar a celeridade e eficiência do serviço prestado pelo Judiciário. “A sobrecarga de trabalho, muitas vezes excedendo em muito o padrão de 40 horas semanais, avançando no descanso de final de semana e convertendo parte do período de férias em dedicação exclusiva aos processos conclusos. Essa era uma realidade de uma época com um número diminuto de Varas, de Juízes e de Servidores, com instalações e equipamentos inadequados ao volume de trabalho e à própria tecnologia disponível”, declarou.

    Leda ainda analisou a situação do mercado de trabalho entre mulheres e homens, acreditando haver a necessidade de uma reflexão da sociedade sobre os comportamentos que valorizam a forma desigual entre os sexos. “Sonho, assim, com um modelo de igual valorização de ambos os sexos, de modo que o fator aleatório de ter nascido homem ou mulher não interfira na igualdade de oportunidades e de direitos de qualquer deles. Esse modelo de igual valorização é possível, depende da sociedade, de que tomemos, para cada um de nós, a tarefa de perceber (olhar), compreender (ver) e superar (reparar) os prejuízos coletivos da barreira cerrada de reserva de vagas em favor do sexo masculino ainda presente no espaço público”, destacou a juíza federal.

    Com uma mensagem positiva para mulheres que pensam em seguir a carreira da Magistratura Federal, a magistrada concluiu. “Criamos hoje o amanhã e poderemos transmudar as dificuldades em oportunidades de crescimento, aceitar novas responsabilidades e desafios, fazer o nosso melhor e inspirar outras mulheres a fazer o mesmo”.

    Leia a entrevista completa.

     

    1) Onde a senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

    Ingressei na Magistratura federal em 1995. Minha primeira lotação foi na cidade em que já morava, Curitiba. No final de 1998, depois de deixar passar a primeira oportunidade de promoção, fui para Maringá. Lá permaneci até a aposentadoria, com um recorte de 2 anos nos quais exerci a jurisdição em Curitiba, na Turma Recursal.

     

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    Posse em maio de 1995, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre; foto: Acervo pessoal.

     

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    Em atividade de instrutoria em curso de atualização. Juíza Federal Substituta. Edifício Bagé, Curitiba; foto: Acervo pessoal.

     

     2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

    Quando assumimos em Curitiba recebemos, eu e cada um dos novos colegas lá lotados, o acervo de 200 processos antigos para sentenciar. Os meus eram todos da própria Vara em que fui lotada. Era uma Vara antiga, com casos complexos, que atraíam a competência de um volume grande de processos e geravam um volume ainda maior de autos. Na época, eram comuns os litisconsórcios ativos multitudinários nos quais, por vezes, os únicos elementos comuns eram a causa de pedir e o pedido, mas os autores e os réus estavam vinculados a diferentes instituições. A ideia inicial deve ter sido usar a faculdade do litisconsórcio para acelerar o processamento das demandas repetitivas, mas o elevado número de litigantes surtiu justamente o efeito contrário. Um ou outro processo do acervo tinha alguma questão pericial ou de direito complexa, mas o maior desafio foi mesmo conhecer, entender e relatar tudo o que se passara ao longo dos anos.

    Em Maringá fui designada para uma Vara nova. A maior parte dos servidores era recém-concursada. Volume de processos também grande e de competência geral. O começo foi mais difícil porque demandou estruturação e formação da equipe. Para mim, o mais marcante dessa fase foi justamente esse aspecto coletivo que a titularidade plena me permitiu impulsionar.

     

    Primeira formao da equipe da 2a Vara Federal Maring menorPrimeira formação da equipe da 2ª Vara Federal de Maringá; foto: Acervo pessoal.

     

    No gabinete da 2 Vara Federal de Maring menorNo gabinete da 2ª Vara Federal de Maringá; foto: Acervo pessoal.

     

    Como na Justiça Federal a administração da Vara é atribuída ao Juiz que está na titularidade, esse conjunto – Juízes e Servidores, Gabinete e Secretaria, tem que estar afinado para fluir bem. Tenho boas lembranças e muita gratidão. Trouxe de lá afetos para a vida e creio ter conseguido propiciar um ambiente de colaboração e de proximidade com a equipe. Foi justamente essa harmonia que me permitiu participar de projetos inovadores que foram implantados na Vara, tais como:

    - Projeto “Cópia de Decisões e Despachos – Dois em Um”: iniciado em outubro de 2003, envolvia as decisões em que houvesse necessidade de comunicação às partes, por mandado, ofício ou carta de intimação ou de citação. Os Juízes determinavam que se extraísse cópia da decisão e assinalava que ela estaria apta à comunicação oficial (Ex: “Cópia desta decisão servirá como Ofício”). A numeração era obtida em tempo real e até as atas que estivessem sendo elaboradas em audiência poderiam se prestar a essa finalidade. Com isso, deixamos de elaborar um significativo número de expedientes, o que reduziu a datilografia em mais de 80%, eliminou toda uma cadeia de atividades de emissão, remessa, conferência e assinatura e liberou tempo de Juízes e Servidores para o contingente de processos em trâmite na Vara e para as metas de produtividade.

    - Projeto de “Qualificação Integrada - QI”: visava incrementar a capacitação dos servidores, estagiários e voluntários, pelo compartilhamento de conhecimentos e habilidades, promover um ambiente propício à comunicação eficiente e apto a maximizar o fluxo de ideias inovadoras, buscar um padrão de excelência e o comprometimento com os resultados almejados. Era operacionalizado por três práticas realizadas no contrafluxo do atendimento ao público. Primeira, o estudo em grupo na sala de audiências, tendo como instrutores, em regra, os próprios Juízes e Servidores da Vara e, como grade, conteúdos teóricos e estudo de casos. Segunda, a formação de duplas de orientador e orientando, para que aqueles que exercessem tarefas mais repetitivas tivessem a oportunidade de desempenhar outras que permitissem o progresso do raciocínio jurídico e a troca de experiências nas diferentes atividades. Terceira, a multiplicação de conhecimentos, mediante a reprodução de conteúdo aprendido pelos servidores que houvessem saído para fazer algum curso.

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    O projeto "Qualificação Integrada" foi destaque da revista da Justiça Federal do Paraná (JFPR), em espaço destinado às notícias internas da Instituição; foto: Recorte da revista "JUSTIÇA FEDERAL em revista", ano VIII, nº 73, junho/2015.


    Com Juiz Federal Jos Carlos Fabri parceiro da fase de inovao menor
    Na foto, a magistrada posa com o também juiz federal José Carlos Fabri, parceiro da fase de inovação; foto: Acervo pessoal.

    - Projeto “Papel é Vida”: tinha por objetivo conscientizar os públicos interno e externo para a adoção de uma postura racional, ecológica e econômica, quanto ao uso do papel no âmbito judicial. Pautava-se pela busca na objetividade do conteúdo, na impressão em frente e verso e no cuidado para evitar a duplicação de peças já juntadas aos autos ou a juntada desnecessária de textos legais, jurisprudenciais ou doutrinários. No âmbito externo, sua implantação envolveu o diálogo com advogados, procuradores, colaboradores e professores sobre a importância do projeto. Diferentemente dos demais projetos, deste participavam as demais Varas da Subseção Judiciária. Ele inspirou muitos outros, até fora do Estado e da Justiça Federal, em especial um desenvolvido pela Seção Judiciária de Santa Catarina o qual, se não me falha a memória, foi premiado.

    Da experiência na Turma Recursal o que mais me marcou foi o repertório das histórias de vida que estavam expressas naqueles autos, boa parte em torno de reconhecimento do serviço nas atividades no campo ou em busca da averbação de um tempo urbano não registrado ou do abrigo de um benefício assistencial diante da vulnerabilidade socioeconômica.

    Engana-se quem diz que a Justiça Federal é uma Justiça de entes; ela é de gente e de muita gente, desde os litígios concernentes ao sistema de seguridade social até a disputa sobre direitos indígenas ou os casos compreendidos nas hipóteses especiais de graves violações aos direitos humanos, isso sem contar o vultoso volume de recursos que carreia pela via da execução fiscal.

     

    3) Quais as dificuldades que a senhora já enfrentou?

    A sobrecarga de trabalho, muitas vezes excedendo em muito o padrão de 40 horas semanais, avançando no descanso de final de semana e convertendo parte do período de férias em dedicação exclusiva aos processos conclusos.

    Essa era uma realidade de uma época com um número diminuto de Varas, de Juízes e de Servidores, com instalações e equipamentos inadequados ao volume de trabalho e à própria tecnologia disponível.

    Não sou do tempo do “juntado por linha aos autos”, mas meu primeiro monitor era de fósforo verde, substituído meses depois por um mais moderno que eu comprara, o gabinete pouco maior que as mesas, a jurisprudência era recortada do DOU e os relatórios tinham poucas informações para uma análise gerencial e qualitativa direta. O acesso à bibliografia e à legislação também tinha lá suas dificuldades, seja pela restrição do orçamento ou pela tecnologia disponível.


    4) A senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

    Na Magistratura, nada em especial ou diretamente, apenas os reflexos daqueles comportamentos que perpassam o tecido social, tendo como agentes tanto homens como mulheres, na medida em que todo o sistema é pensado na perspectiva masculina, tomando o sexo masculino como métrica e referência. Uma boa medida para se saber se o fato de ser mulher faz diferença em um dado espaço, em uma dada situação, é usar a “regra do inverso”.

    Quando se está montando uma banca de concurso com candidaturas de ambos os sexos é compatível com o princípio da igualdade material que ela seja composta exclusivamente por mulheres? O acesso dos homens aos postos de autoridade e de liderança será afetado se as oportunidades de visibilidade e de reconhecimento profissional e associativo forem majoritariamente reservadas às mulheres? Quando se monta um Seminário apenas com palestrantes do sexo masculino, significa que eles estão ocupando cotas, ainda que implícitas?

     

    5) O que foi, a partir da experiência da senhora, ser juíza federal?

    A mais realizadora experiência profissional de toda minha vida. Sempre tive clareza de que a minha missão de vida era servir a coletividade. Ciente desse perfil, certa feita um professor questionou minha opção pela Justiça Federal, para ele mais voltada aos organismos públicos e menos às pessoas. Discordei. Ainda que aqueles entes induzam a competência da Justiça Federal, a matéria trazida ao juízo impacta a vida de gente, de muita gente, como no caso dos mutirões de conciliação do SFH.

     

    6) Na opinião da senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

    Faço parte de um contingente de meninas e de moças que se viram diante do desafio da luta pela subsistência e pela superação do que parecia ser um destino inexorável: concluir o ginásio (atual ensino fundamental) para trabalhar no comércio e aprender a cuidar de uma casa para casar. Justamente por isso, minha formação levou um tempo a mais do que o padrão: um ano de intervalo para, por minha conta, me matricular em uma escola pública e fazer o colegial, dois anos para trabalhar em três turnos e juntar o recurso para iniciar Ciências Econômicas, mais dois anos para passar no primeiro concurso público.

    Foi um longo caminho de muitos “nãos”: “já estudou o suficiente para uma moça”, “a vaga não está disponível para mulheres com filhos”, “a atividade não é própria para mulheres”, “já passou no concurso quer estudar mais o quê?” Os “músculos” adquiridos naquelas batalhas me preparam para outras mais desafiadoras e, em especial, para ingressar e evoluir nas carreiras que abracei.

    Nelas, acredito que o maior desafio foi o malabarismo do tempo na rotina diária - cuidado pessoal, família, trabalho, estudo e lazer – e as inevitáveis consequências da opção pontual, ao longo de 35 anos de serviço, pelo trabalho em face das outras áreas da vida. O caminho para o equilíbrio possível, tomando de empréstimo a metodologia “Mindfulness”, reside na qualidade da presença plena no espaço efetivamente dedicado a cada uma daquelas áreas. Esse milagre da multiplicação é, em geral, fruto de organização do tempo, objetividade no trabalho, afinco no estudo e cooperação familiar, tudo temperado com boas doses de afeto, resiliência e bom humor.

     

    7) O que a senhora sonha enquanto mulher magistrada?

    Gostaria muito que as pessoas refletissem sobre as consequências de seguirmos balizando nossos comportamentos e escolhas, conscientes ou não, em uma estrutura de pensamento arcaico dominante que valoriza de forma desigual os sexos, que mantem sobre-representadas as forças de influência da perspectiva masculina e ainda produz e reproduz uma regulação moral e legal das relações sociais baseadas na diferença sexual, em especial nas relações de poder. De uma forma ampla, é esse desequilíbrio na distribuição de poder que explica a quebra de paridade de remuneração ou prestígio pelo mesmo serviço, a desigualdade no respeito ao comportamento individual e social e, no limite, a tolerância social para com a violência doméstica. De uma forma estrita, é essa construção social de valorização diferencial de ambos os sexos que explica o fato da sub-representatividade da mulher nos espaços públicos de poder e liderança, como os cargos e funções próprios da Magistratura.

    Sonho, assim, com um modelo de igual valorização de ambos os sexos, de modo que o fator aleatório de ter nascido homem ou mulher não interfira na igualdade de oportunidades e de direitos de qualquer deles. Esse modelo de igual valorização é possível, depende da sociedade, de que tomemos, para cada um de nós, a tarefa de perceber (olhar), compreender (ver) e superar (reparar) os prejuízos coletivos da barreira cerrada de reserva de vagas em favor do sexo masculino ainda presente no espaço público.

    Para isso, é preciso desvelar os preconceitos para apreender e traduzir em novas práticas a nova realidade social e chegar à paridade de representação da mulher na Magistratura e levar essa realização da igualdade a todas as esferas constitucionais de competência e a todos seus cargos e funções.

     

    8) Qual a mensagem a senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

    Os grandes sonhos começam a se concretizar com um pequeno passo, como estudar com afinco e foco já na graduação e aproveitar as oportunidades de estudo e de progresso acadêmico. Hoje, olhando para trás, me dou conta do esforço despendido para fazer as graduações e pós-graduações em Economia e em Direito e o Mestrado, da ginástica para acomodar a atividade profissional e acadêmica, família e cuidado pessoal. Valeu cada gota de suor ou de lágrima.

    Criamos hoje o amanhã e poderemos transmudar as dificuldades em oportunidades de crescimento, aceitar novas responsabilidades e desafios, fazer o nosso melhor e inspirar outras mulheres a fazer o mesmo.

    Eu diria, sobretudo, que “é possível”, que ainda há muito por fazer até substituirmos aquele modelo de pensamento dominante, mas “é possível” abraçar as carreiras jurídicas, como a Magistratura, “é possível” nelas progredir e participar do processo de elaboração das normas a serem construídas no espaço do Poder Judiciário, aportando a elas também a compreensão de mundo das mulheres e não só dos homens.

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