Laicidade e Escola sem Partido: concepção do movimento é equivocada

    Artigo originalmente publicado pelo ConJur, escrito pelo desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Paulo Gustavo Guedes Fontes.

    A laicidade do Estado, isto é, sua neutralidade em termos religiosos, deriva da própria liberdade de religião e da necessidade de convivência pacífica e igualitária entre todos os credos e entre os que não professam religião ou adotam crenças religiosas. A laicidade é como que a outra face da moeda em relação à liberdade de religião[1].

    A Constituição traz ainda dispositivo específico, o artigo 19, I, que veda aos entes federativos estabelecer cultos ou igrejas, subsidiá-los ou com eles manter aliança, o que seria nosso correspondente da establishment clause do Direito Constitucional norte-americano, constante da Primeira Emenda da Constituição daquele país.

    Pretendo debater neste artigo concepção presente nos textos e declarações dos líderes do movimento Escola sem Partido a respeito do princípio da laicidade. A assertiva do movimento é de que a laicidade estatal abrangeria não apenas a neutralidade do Estado diante das religiões, mas também o respeito pelo Estado à moralidade decorrente da religião, ou de determinada religião, e adotada por seus adeptos, considerando que a moralidade derivada de uma religião seria indissociável dela própria.

    Tal concepção fundamentaria a vedação, defendida pelo movimento, no âmbito do ensino fundamental e médio, de temáticas como a ideologia de gênero e a educação sexual, que poderiam contrapor-se à moralidade religiosa. O movimento defende ainda a precedência dos valores familiares em temas morais, invocando o artigo 12, IV, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

    Concede-se sem dificuldade que as religiões possuem sempre uma metafísica e uma ética, como afirmou Clifford Geertz[2]; isto é, além de uma compreensão sobre a divindade e a natureza do mundo, toda religião postula preceitos éticos ou de moralidade, fixando um modo de vida e regras para as relações sociais.

    No entanto, estender a noção de laicidade como desejado parece-nos um equívoco teórico, capaz de levar, ao contrário, à ofensa desse mesmo princípio.

    O princípio da laicidade impede que o Estado e seus agentes, no exercício de suas funções, privilegiem uma religião em detrimento de outras, prejudiquem determinada confissão e, em geral, adotem manifestações explicitamente religiosas. Refere-se, pois, à exigência de neutralidade por parte do Estado em termos religiosos. Mas tal princípio não inclui o dever suplementar do Estado de abster-se de atos e manifestações que possam de alguma forma contrapor-se ou ofender determinada moralidade religiosa.

    Com efeito, se assim fosse, a legislação e a atuação estatal como um todo deveriam sempre coadunar-se com os preceitos religiosos. A rigor, o Estado não poderia permitir o divórcio, pois isso feriria a moralidade das religiões que não o admitem; não poderia reconhecer as uniões homoafetivas, como fez o STF na ADPF 132; ou, nos EUA, não poderia admitir o aborto, como fez a Suprema Corte na decisão Roe x Wade de 1973.

    O Estado estaria completamente manietado em sua ação, impedido de aplicar suas próprias regras e princípios jurídicos, para evitar contrapor-se às éticas ou moralidades religiosas.

    Sabe-se que os filósofos do Direito divergem sobre as relações entre Direito e moral. Alguns, como os jusnaturalistas, defendem a existência de uma conexão conceitual entre essas realidades, isto é, em algum ponto da reflexão o Direito e a moral se confundiriam. Já os positivistas adotam a tese da separação entre Direito e moral; mas, mesmo eles, e queremos destacar esse aspecto, admitem a existência de uma conexão histórica ou contingente entre os conceitos. Isto quer dizer que o Direito efetivamente abriga boa parte da moral social e, nas mãos do Estado, preceitos morais tornam-se normas jurídicas, de observância obrigatória para todos os cidadãos. Não matar é uma regra moral e também jurídica, e de certa forma toda norma jurídica alberga um valor moral[3]. Dissente-se sobre a amplitude com que os juízes podem lançar mão de argumentos morais, mas parece pacífico que os legisladores podem tranquilamente adotar pontos de vista morais na elaboração das leis, desde que não ofendam princípios e regras constitucionais.

    Sendo assim, o Estado, por meio do Direito, consagra posições morais, selecionando-as entre as concepções morais, frequentemente divergentes, existentes no meio social. Quando adota normas civis, penais, trabalhistas, ambientais, admite ou não as uniões homoafetivas etc., o Estado está fazendo escolhas morais.

    Portanto, na sua função legislativa, e em geral, o Estado faz escolhas morais e valorativas e não tem qualquer obrigação de fazê-las sempre em conformidade com os preceitos de qualquer moralidade religiosa, ou se abstendo de não as ofender. O contrário é que está vedado: o Estado não pode fazer escolhas que sejam inspiradas de forma direta e exclusiva na moralidade religiosa, justamente para não ferir o princípio da laicidade. Uma lei contra o aborto que se inspirasse explicitamente em preceito de moralidade religiosa incorreria em inconstitucionalidade.

    Nesse sentido, a atuação estatal deve orientar-se pelo que já se chamou de “razão pública”, argumentos que buscam ser válidos para a generalidade dos cidadãos, independentemente de suas crenças religiosas, filosóficas, políticas etc. Ainda que o fundamento de determinada lei resida na moralidade, esta há de ser a moralidade comum, capaz de ser defendida sem o recurso a concepções religiosas. Nesse sentido, de afastarem-se razões ou fundamentos religiosos das políticas públicas, foi o voto do ministro Marco Aurélio na ADPF 54 que autorizou o aborto do feto anencéfalo.

    Diga-se, também, que a política e os programas e posições dos variados partidos e seus adeptos estão sempre impregnados de concepções morais, mais uma razão pela qual o Estado, nas suas diversas formas de manifestação, acabará veiculando posições morais. Cite-se como exemplo a recente campanha do governo francês contra a homofobia nas escolas públicas[4]. E, como dito, o Estado não está nisso limitado por concepções ou moralidades religiosas.

    Ainda que o suposto dever de “respeitar a moralidade religiosa” fosse restrito à postura do professor em sala de aula, tal concepção não se mostra viável. Tomemos a proposição: “os homossexuais têm o direito de se casar”. Segundo a assertiva em debate, o professor não poderia dizer isso em sala de aula, se tal afirmação for capaz de contradizer ou ofender a moralidade de alguma religião. Mas a proposição é chancelada pelo Estado brasileiro, por meio da decisão do Supremo que a reconheceu como decorrente do princípio constitucional da isonomia. Estaria o professor, pois, tolhido de repassar aos alunos uma informação relevante sobre a sociedade e o ordenamento jurídico para não ferir preceitos religiosos?

    A concepção em discussão acaba por conferir à liberdade de religião posição de supremacia diante de outros direitos fundamentais. O direito à educação, a liberdade de expressão e científica, todo e qualquer direito deveria recuar diante dos óbices impostos pela religiosidade. E, como sabemos, é característica dos direitos fundamentais não estabelecerem entre si uma hierarquia prévia; do ponto de vista abstrato, dois princípios colidentes obrigam da mesma forma, isto é, não guardam qualquer relação de precedência um sobre o outro, o que vem a ser justamente o que Robert Alexy definiu como o caráter prima facie dos princípios[5].

    Por fim, concluindo o raciocínio, fica claro que essa pretendida capitulação do Estado diante da moralidade religiosa é, sim, capaz de configurar ofensa ao princípio constitucional da laicidade, trazendo as considerações religiosas do âmbito privado, onde devem permanecer, para a esfera pública.

    Deixaremos para outro escrito a refutação do argumento segundo o qual o artigo 12, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos imporia, por sua vez, a abstenção do Estado diante das convicções morais dos alunos e de seus familiares.


    [1] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Laicidade e proibição do véu islâmico na França. Revista Direito Mackenzie, v. 10, n. 1, 2016, p. 180-187.
    [2] GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. New York: Basic Books, Inc, Publishers, 1973, pp. 126/127.
    [3] FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Filosofia do Direito. São Paulo: Método, 2014, 158 p.
    [4] http://br.rfi.fr/franca/20190128-franca-governo-lanca-campanha-contra-transfobia-nas-escolas
    [5] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 96.

    Tags:
    Dúvidas, sugestões ou mais informações?

    Fale Conosco

    Dúvidas, sugestões ou mais informações? Entre em contato com a Ajufe. Queremos melhorar cada vez mais a qualidade dos serviços prestados.

    Os campos com asterísco (*) são de preenchimento obrigatório.
    4 + 3 = ?

    Ajufe.org.br

    A Ajufe utiliza cookies com funções técnicas específicas.

    Nós armazenamos, temporariamente, dados para melhorar a sua experiência de navegação. Nenhuma informação pessoal é armazenada ou capturada de forma definitiva pela Ajufe. Você pode decidir se deseja permitir os cookies ou não, mas é necessário frisar que ao rejeitá-los, o visitante poderá não conseguir utilizar todas as funcionalidades do Portal Ajufe. Enfatiza-se, ainda, que em nenhum momento cria-se qualquer tipo de identificador individual dos usuários do site. Para demandas relacionadas a Tratamento de Dados pela Ajufe, entre em contato com privacidade@ajufe.org.br.