Artigo de autoria do presidente da Ajufe, Fernando Mendes, e da diretora da Ajufe, Clara Mota, publicado originalmente pelo Estadão.
A proposta de reforma da previdência aprovada, em primeiro turno, pelo Senado Federal na semana passada contém uma alteração relevante e necessária para que se alcance uma melhor divisão de atribuições entre os vários ramos do Poder Judiciário brasileiro. A PEC permite a atualização do dispendioso mecanismo que delega parte da competência federal em matéria previdenciária para varas da justiça estadual.
A ideia contida na proposta trata de um problema antigo: como deve se operacionalizar a litigância previdenciária movida pelos segurados mais vulneráveis, que residem em locais distantes?
Ao mesmo tempo em que interfere em diversas políticas públicas, o Poder Judiciário precisa desenvolver, ele próprio, uma política de acesso à justiça que seja democrática, eficiente e sintonizada com o seu tempo. Lá atrás, nos debates da assembleia constituinte, não interessava apenas que fossem afastadas barreiras temáticas quanto ao que poderia ou não ser judicializado, mas também que as pessoas conseguissem chegar às dependências da justiça para expressar os seus inconformismos. Em determinado momento das discussões foi descrito o périplo real do “nosso camponês, homem simples, analfabeto, que mora no mato já com dificuldades, vai à cidade mais próxima, ou até mesmo à sede da Comarca mais distante, muitas vezes a pé e, chegando lá, vai correndo à Justiça do Trabalho, que é a mais popular”.
A justiça federal era vista, naquele momento, segundo uma fotografia que não existe mais: a de uma força de trabalho extremamente reduzida, centrada nas grandes capitais e com vocação exclusiva para a análise de causas complexas ou que envolvessem elevadas somas. Foi nesse cenário que, para facilitar a judicialização das questões previdenciárias, surgiu o engenhoso esquema de delegação de competência da justiça federal para a estadual. Diz a Constituição que, na ausência de vara federal em uma determinada localidade, os segurados da previdência podem ajuizar os seus processos perante uma unidade da justiça estadual. Os recursos das decisões proferidas pelos juízes estaduais, no entanto, devem ser julgados pelos Tribunais Regionais Federais, ou seja, por Cortes perante as quais eles não respondem funcionalmente.
Alguns resultados desse desenho incongruente estão na mesa. Em 2018, um relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União demonstrou que a falta de especialização dos juízos estaduais em matéria previdenciária faz com que tenham dificuldade para arregimentar peritos médicos, aumentando substancialmente os gastos com esta atividade. Enquanto na justiça federal uma avaliação médica custa em média R$ 263,98, na justiça estadual ela tem saído 33% mais cara, ao valor unitário médio de R$ 395,37. Assim, a justiça estadual consome 27% do orçamento reservado para o pagamento de perícias, embora receba apenas 15% dos casos novos ajuizados.
Além disso, as entrevistas conduzidas pelo TCU revelaram dificuldades em se detectar processos simultaneamente ajuizados nas duas justiças, a baixa observância dos precedentes e a possibilidade de que sejam “escolhidos” juízos que concedem mais ou menos benefícios, numa abertura demasiada à possibilidade de manipulação das regras de competência.
Por fim, com o passar do tempo, os potenciais ganhos que a delegação poderia proporcionar em termos de acesso à justiça se mostram cada vez mais diluídos pela interiorização massiva da justiça federal, pelo uso do processo eletrônico e de estruturas adaptáveis, como mutirões e itinerâncias.
Diante dos indicativos de ineficiência e anacronismo, a proposta de reforma confirma o acerto da recente alteração legislativa que limitou a delegação, permitindo a alternância de foros por parte dos segurados apenas quando estes residem a uma distância de mais de setenta quilômetros de uma sede da Justiça Federal.
Não é simples pensar a distribuição de acesso à justiça num país marcado ao mesmo tempo por desigualdades acentuadas e pressões por redução de gastos públicos. Porém, se algo tem ficado claro após sucessivas tentativas de reforma é que se busca uma porta que não seja só de entrada. O gerenciamento da gigantesca logística do Poder Judiciário brasileiro não pode ser feito em bases estanques, que não considerem as mudanças sofridas pela instituição ao longo dos últimos trinta anos de experiência constitucional. Ao novo perfil capilarizado da justiça federal deve corresponder uma atribuição de poder que tenha a mesma medida. É assim que chega em boa hora esta possibilidade de se refletir sobre a equação da competência delegada.